14 de março de 2018

“O DOCUMENTO ANTIGO – UMA OUTRA FORMA DE VER OS SEGUROS”


É este o título que dei ao meu próximo livro, romanceado, a entregar ao editor até ao próximo mês de maio, fruto do convite feito, proveniente de uma forte amizade, pelo CEO e Administrador da Liberty Seguros, naquele célebre 13 de junho de 2014. Depois de muitas pesquisas e contactos, geradores do interesse não só dos profissionais da atividade, a qual deixei em 1 de setembro de 2012, mas também no emergir de novas amizades, vai surgir no âmbito do ineditismo que sempre votei às obras publicadas.
Consciente da aventura em que aceitei tal convite, uma vez que já existem variadíssimas obras congéneres, por autores consagrados, não deixou de me envolver naquele risco por que foi a minha atividade durante quatro décadas.
Entre a narrativa ficcional e a veracidade, remete para a realidade dos seguros deste a Antiguidade até ao final do Século XVII, numa primeira parte; e depois dos anos 70 até aos nossos dias, para a segunda parte.
O romance começa algures no Norte, para os lados de Valbom-Gondomar, dará continuidade na Covilhã e Fundão, Castelo Branco, Lisboa e Algarve.
E, agora fora do contexto da obra a publicar, porque amigos que vou encontrando se me dirigem desejosos de recordar facetas e acontecimentos do passado, não só da vivência dos lugares como de factos ocorridos e que já poucos recordam, vou tentar aqui trazer algumas reminiscências, sujeito a repetições de outras crónicas anteriores, quer neste periódico quer noutros onde as tivesse publicado.
O gosto pela história e demais eventos marcantes da sociedade portuguesa e do mundo, advém-me do tempo em que meu Pai nos dava conhecimento, ainda em criança, de algumas notícias dos jornais, geralmente da parte da manhã, de alguns acontecimentos vindos no Diário de Notícias ou n’ O Século, para já não falar nos extintos Novidades, A Voz ou Diário da Manhã, na Pousadinha, onde residíamos. Ainda ali não havia energia elétrica e, consequentemente, a inexistência de uma telefonia. Também a televisão só viria a nascer em Portugal em março de 1957, a preto e branco, de um só canal. Quem não tinha televisor em casa (que era impossível na Pousadinha), e eram muitos, ia para os cafés e outros locais públicos ver os programas da sua preferência. A leitura dos jornais, atrás referida, teria sempre de acontecer antes da entrada para a Biblioteca Municipal, na Covilhã, para onde ainda teria de palmilhar uns quilómetros, seu local de trabalho. O transporte nas então designadas camionetas da carreira, de José Nunes Correia & Filhos, Lda, não podia ser quotidianamente utilizado, por razões dos fracos recursos económicos, daqueles tempos salazaristas, mesmo pelos operários da indústria de lanifícios. Era daqueles tempos em que esses autocarros tinham umas grades em cima do teto para colocar os volumes maiores e, atrás, descia a grade de acesso, originando que a garotada se agarrasse às mesmas quando o autocarro partia, aproveitando uma breve boleia, breve porquanto o motorista logo que se apercebesse fazia sair o cobrador para afugentar a rapaziada atrevida.
Teria eu os meus seis anos, o segundo mais velho de um quinteto, todos nascidos na casa da Pousadinha, com o apoio da improvisada parteira, senhora Lucinda, que sempre que necessário a iam buscar à Fonte das Galinhas, na Covilhã. Mais tarde viríamos a formar um sexteto, sem música para além de alguma berraria ou choro.
Durante parte da manhã ainda o senhor professor Martins, como era conhecido por aquelas bandas, na nossa casa da Pousadinha ensinava muitos dos alunos – rapazes e raparigas – já em altura de terem que frequentar os Cursos da Campanha Nacional de Adultos.
Por ali residiam alguns vizinhos, os mais conhecidos, Mário Eufrásio e a mulher, cujas filhas mais velhas também assistiam às aulas do professor Martins.
Em 18 de abril de 1951 faleceu o então Presidente da República marechal António Óscar de Fragoso Carmona – o primeiro que eu conheci em fotos e retratos nas escolas, e nos jornais, com o meu Pai a mostrar-me as imagens do funeral do presidente. Já a Rainha Isabel II da Inglaterra, com o marido e os filhos, ainda pequenos – a Ana e o Carlos –  recordo a sua vinda a Portugal, já não residia na Pousadinha. A rainha Isabel II visitou Portugal cinco anos depois de ter sido coroada. A RTP, recém-nascida, como atrás faço referência, realizou a sua primeira grande cobertura noticiosa durante esse acontecimento, cuja visita aconteceu entre 18 e 23 de fevereiro de 1957 e concentrou as atenções do país e também do estrangeiro. Nessa altura era então Presidente da República o General Francisco Higino Craveiro Lopes e Presidente do Conselho, António de Oliveira Salazar. Gostava de ver na revista Flama e nas capas dos jornais as fotos da vinda da rainha e família a Lisboa.
O Hino Nacional, que o professor Martins (antes exercera esta atividade) também ensinava na escola aos alunos tinha três estrofes, portanto, muito mais comprido. Só mais tarde, pelo Diário do Governo de 4 de setembro de 1957 duas foram eliminadas, ficando então o hino como o atual. Tenho em meu poder uma bandeira nacional desse tempo, quando o Hino Nacional ainda tinha as estrofes seguintes:

Desfralda a invicta Bandeira,                                                   Saudai o Sol que desponta
À luz viva do teu céu!                                                                Sobre um ridente porvir;
Brade a Europa à Terra inteira:                                                Seja o eco de uma afronta
Portugal não pereceu                                                                 O sinal do ressurgir.   
Beija o solo teu jucundo                                                            Raios dessa aurora forte
O Oceano, a rugir d’amor,                                                        São como beijos de mãe,
E o teu braço vencedor                                                             Que nos guardam, nos sustêm,
Deu mundos novos ao Mundo!                                                Contra as injúrias da sorte.


(In "Notícias da Covilhã", de 15/03/2018) * Estas últimas estrofes não foram publicadas no semanário por falta de espaço *

13 de março de 2018

ENTRE O PORTÃO E A PORTA


Desde o portão de entrada na nossa interioridade, onde podemos ouvir ou ver algo que não desejamos, ou não concordamos, até à porta do nosso íntimo, onde se encontra bem instalado o lugar do nosso valor e da nossa coragem, há uma enorme distância. Tanto mais distante quanto maior for esse valor e essa coragem. E, por isso, mesmo longe das muralhas que nos protegem do exterior.
Não é fácil manter essas distâncias quando, por vezes, amiúdas vezes em várias fases da vida, somos confrontados com situações em que nos custa saltar da distância que nos separa da porta da nossa intimidade para o portão que dá obviamente para o exterior.
Comigo já sucedeu algumas vezes. Não consigo abrir a porta do meu íntimo, dos valores que eu reconheço tradicionais de uma educação transmitida, ainda que não totalmente concordante, para aquela enxada que pretende cortar a raiz do pensamento. Dou, por isso, muito valor à liberdade de expressão, pois já vivi no tempo em que tal situação, a exprimir-se contrária aos ventos políticos dominantes, traziam-nos preocupações.
Lembro-me de, nesse famigerado tempo, quando pela noite tinha que baixar o rádio para poder ouvir a Rádio Portugal Livre, de Argel, proibida, pela voz da mulher de Piteira Santos. E do Manuel Alegre. De ser obrigado a assinar declarações como uma que guardo religiosamente, aquando de acesso a promoções de carreira na função pública (“Declaro, por minha honra, que estou integrado na ordem social estabelecida pela Constituição Política de 1933, com ativo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas. – Covilhã, 29 de Maio de 1965”). Recordo-me que numa reunião da Comissão Democrática Eleitoral, em 1973, em que participei, viemos a saber, quando, felizmente, raiou o 25 de Abril de 1974, que o secretário das reuniões era informador da PIDE.
Mas, já antes, no serviço militar obrigatório, denunciei uma atitude corrupta dum superior, embora reformado, que, por interposta pessoa me pretendia ludibriar num favorecimento ilícito a um recruta.
Mais recentemente, não obstante ter sido objeto de uma homenagem de uma coletividade, de um pedido de colaboração municipal de âmbito literário, e de reuniões de associações culturais, onde havia amigos, não deixei que a porta da minha intimidade pudesse deixar vandalizar os valores da expressão livre do pensamento. Discutível, como é óbvio, mas é o meu pensamento. Não o vendo por preço algum. Como humano, objeto de erros, mas, para isso, há os pedidos de desculpa, se entendidos como aceitáveis.
Repudio veementemente todos os vira-casacas, os que voltam com a palavra atrás sem justificação, os chicos-espertos, os falsos amigos.
Prefiro ficar à porta que ao portão.
Podemos ouvir ou ver algo e não querer o que ouvimos, ou vimos, que venha ferir o nosso coração.
Esta voz secreta que só se pode escutar no total recolhimento não está sempre acessível.
O lugar do nosso valor e da nossa coragem, estando longe das muralhas que nos protegem do exterior, está ainda dentro de uma fortaleza interior bem guardada, até de nós mesmos.
É que aceitar, sem prudência, tudo de todos é algo tão imbecil como dar tudo a todos, sem sensatez. Importa guardar as distâncias que nos protegem dos ataques do exterior. Há assim um caminho que vai do portão de nós mesmos até à porta do nosso íntimo.
No início deste ano, Assunção Cristas, presidente do CDS-PP defendeu que o acesso á saúde divide os utentes em “portugueses de primeira, segunda e terceira”, conforme os recursos financeiros que dispõem e o espaço geográfico onde vivam. De acordo com a líder centrista, esta divisão corresponde aos que podem pagar um seguro de saúde e escolher entre público e o privado, os beneficiários da ADSE, e a população sem recursos que lhe permita escolher.
Mas Assunção Cristas esquece-se que, apesar de tudo, todos têm acesso ao Serviço Nacional de Saúde, ninguém fica sem assistência médica.
Mas eu já fui “português de terceira”, nos anos 60 do século passado, quando o funcionalismo público não tinha acesso aos cuidados, ainda que primários, de saúde. Tinha que pagar do seu próprio bolso as consultas e medicamentos, retirados dos seus míseros vencimentos, ou então, lamuriar-se junto dos médicos para que lhe perdoassem a consulta, o que resultava muitas vezes a ficarem com as receitas no bolso por não haver recursos para pagar nas farmácias. Os remédios caseiros nem sempre eram solução e, assim, muitas mazelas ficaram.
Não havia ainda a ADSE. Não havia subsídios de férias nem de Natal. Comia-se o pão que o diabo amassou e tinha que se andar sorridente porque a repulsa redundava em ter à porta, no dia seguinte, ou próximos, um dos homens da maldita polícia política. A caterva de informadores, desde o sacristão, ao homem que atrás falei, ao funcionário de um Sindicato, ao 35 ou ao 23, ao pároco de São Martinho, e a outros mais, ocultos na tentativa de anonimato, obrigava a ter que haver bastantes reservas.
Convém assim guardar bem a porta e espreitar o portão.


(In "fórum Covilhã", de 13/03/2018)