23 de abril de 2004

30 ANOS DE ABRIL

Após três décadas muitas coisas mudaram no nosso país. No dia da grande reviravolta ainda não tínhamos 30 anos mas não esquecemos o longo período antecedente à Revolução dos Cravos.
Para os jovens de hoje, o 25 de Abril talvez seja apenas uma data histórica de âmbito escolar, como a Implantação da República, a Restauração de Portugal, a Fundação da Nacionalidade.
Se do “antes”, alguns quadros das empresas privadas tinham remunerações sustentáveis, o operariado fugia do país ou limitava-se a uma vida de fortes dificuldades económicas, refugiando-se nas tabernas, durante os seus tempos livres, ou pelos clubes de bairro, como o Campos Melo, o Rodrigo, o Oriental, o Estrela de S. Pedro, o Arsenal, o Águias de Santa Maria, os Leões (onde, nalgumas destas colectividades, se destacaram pessoas simples, mas grandes de índole cultural e humana); e, aos domingos, pelos campos de futebol, onde o Sporting da Covilhã também sofria de maleita, entre as subidas e descidas da 2ª. à 3ª. Divisão, de permeio com os Torneiros de Competência. O “Pina Bicho”, ou o Cine-Centro, era outro ponto de distracção.
Chegada a idade militar, os jovens iam-se conformando com as contrariedades que se avizinhavam, não só pelos muitos meses que iam passar nos quartéis, atrasando a sua vida profissional e constituição de família, como o espectro de serem integrados nos contingentes militares para combater nas Colónias.
Quanto aos emigrantes, só mais tarde, quando alguns regressavam para férias, dos países para onde emigraram, já com as algibeiras recheadas, pronunciavam de forma exibicionista um francês macarrónico, e se expressavam, antes, de revolta, agora quase num ar de “vingança”: “Vamos tomar uma boisson ao Montalto. Agora já tenho argent. Os patrões não são mais do que eu!”.
Mesmo os que tinham ocupações na função pública – “os chamados empregos seguros, para toda a vida” – só poucos anos antes começaram a beneficiar da assistência médica, com a criação de CATs e ADSE, que até então era inexistente.
Mas, talvez pior que a penúria de muitos, e a necessidade de recursos financeiros da maioria, a falta de liberdade de expressão, aliada à chamada “guerra subversiva no Ultramar Português”, em tempo de guerra fria no mundo, eram vivências de constante insatisfação, neste Portugal “orgulhosamente só”, na expressão do ditador.
Quando surgia um pequeno aumento salarial, logo o Diário de Notícias, o Diário Popular, o Diário da Manhã, A Voz, o Novidades, o Comércio do Porto, o Diário de Lisboa, bem como outros periódicos da época, anunciavam os aumentos em letras garrafais.
O servidor do Estado, ao fazer as suas contas, comparando o aumento de salário, duma forma aberrante, da sua categoria de letra com a dos quadros – os primeiros – desabafava ironicamente: “Dai-me, Senhor, o vosso aumento, que eu dou-vos o meu vencimento”.
Algumas vezes, chegados aos empregos, logo nos surgiam as notícias: “Ontem a Pide levou o fulano, ou o sicrano”.
Além do Café Montalto, frequentado por uma determinada classe social, havia outros, como o Café Leitão, onde predominava a classe de oposicionistas ao regime (por detrás do balcão, às escondidas, alguns molhavam a palavra, com uma taça de tinto); assim como a ainda Pastelaria Lisbonense, com a peculiar simpatia do proprietário, Sr. José; o Café Montanha, do Laranjo; assim como o Danúbio, do Caninhas.
Frequentávamos algumas vezes o desaparecido Café Central, do Neve Hotel, e recordamos que estávamos vendo o telejornal, quando o locutor José Gomes Ferreira anunciava a morte súbita de Nasser, presidente do Egipto, nos acontecimentos da Guerra dos Seis Dias, com Israel contra os países árabes. Ao ouvido chegava-nos o recado, de pessoa avisada: “cuidado com as conversas porque há aqui bufos da Pide”.
À noite, em segredo, podíamos ouvir a “Rádio Liberdade” ou “Rádio Portugal Livre”, de Argel, que teve a sua primeira emissão em 12 de Março de 1962, pela voz de Stela Piteira Santos.
O temor da guerra levava alguns jovens a arranjar subterfúgios para conseguirem livrar-se da tropa, além dos “amparos de mãe”, tomando, alguns, o rumo da deserção.
Nas longas viagens de comboio, no regresso aos quartéis, após um pequeno fim-de-semana com a família e namorada (quando era possível), não faltavam as imagens de abraços e choros dos que se despediam dos familiares e namoradas, nas estações de caminhos-de-ferro, já com a guia de marcha para a Guiné, Angola, Moçambique, ou outras “Províncias Ultramarinas”. Alguns regressaram sem vida.
Nem o “adeus, até ao meu regresso”, nas mensagens de Natal e Ano Novo, nem as madrinhas de guerra, nem as senhoras do Movimento Nacional Feminino, organização feminina que acompanhou os treze anos de guerra colonial, fundada em 28 de Abril de 1961, em dia de aniversário de Salazar, que mais não fosse para distribuir aerogramas, ou fazer algumas visitas aos soldados, eram suficientes para fazer afastar a grande saudade e os tempos terríveis duma guerra da qual não se conhecia o fim.
Aos quartéis, perto das fronteiras, como o RI 12, da Guarda, frequentemente surgia a polícia política entregando “compelidos e refractários”, algemados, que apanhavam nas fronteiras. Os desertores, esses, geralmente eram mais difíceis encontrá-los.
Os regressados do serviço militar, muitos deles das colónias, após 3 ou quase 4 anos penosos, deparavam-se com problemas de integração na vida profissional, como primeiro emprego, mas alguns lá se iam encaixando nos bancos e na segurança social (mesmo com cursos industriais).
Aproximava-se o 25 de Abril mas, já antes, a oposição ao regime salazarista e marcelista preparava-se para não participar em eleições fantoches e havia vindo do Congresso de Aveiro com ânimo. Estávamos em 1973 e a oposição enviava uma moção de repúdio pela morte de Salvador Allende, presidente Argentino, face ao golpe militar do general Pinochet.
No Teatro-Cine, os homens e as mulheres afectos ao regime de Marcelo Caetano ouviam as vozes vibrantes dos seus oradores, entre os quais o entusiasta deputado pelo círculo de Castelo Branco, Dr. Rui Pontífice de Sousa, do Tortosendo, que pouco depois viria a falecer num acidente de viação, em Ponte de Sor. Num raio de alguns metros, também no Pelourinho, num andar perto do Neve Hotel e onde mais tarde arderam os prédios aí existentes, mais conhecidos dos partidos políticos, reunia-se um grupo de oposicionistas, da Comissão Democrática Eleitoral (CDE). Para espanto geral, só conhecido após o 25 de Abril, quem secretariava a reunião da oposição e até se manifestava de forte opositor ao regime, era exactamente um informador da Pide.
Valeu o 25 de Abril. Fomos também envolvidos nessa alegria.
A democracia implantou-se, felizmente, mas muitos abusaram dela. Jamais desejaríamos assistir a um cortejo de desempregados e ao grassar da indigência, do consumo de drogas, do aumento da criminalidade, da continuação dos sem abrigo e de novas doenças.
Todos os sistemas políticos são sempre ocasião para os oportunistas, mormente para aqueles que mudam como um cata-vento e os que sobem para cima do muro, aguardando para que lado hão-de saltar.
Mas, 30 anos de Abril, apesar das vicissitudes e das grandes diferenças abissais que ainda subsistem, entre a pobreza envergonhada, e os que, como Saramago, se dão ao luxo de ter três casas para residir, valeu a pena; apesar de algo ir mal na intelectualidade, quando se aconselha ao voto em branco e se integra uma lista para as europeias, valeu a pena 30 anos de Abril, valeu a pena a LIBERDADE.

(In “Notícias da Covilhã”, de 23/04/2004)