22 de março de 2023

CADA MITRA SUA SENTENÇA


 

Há sempre casos que levam o seu encaminhamento para o enfado, tal a menção dos mesmos factos, às resmas, numa repetição irritante, tanto nos jornais diários, como nas notícias televisivas: dias, semanas e meses seguidos; em suma, na comunicação social, integralmente, onde as fotos ou imagens filmadas têm predominância.

Ainda existem muitos profissionais desta área que não sabem, não querem, ou não os deixam encontrar o antídoto para debelar aquele espaço fastidioso que afasta as pessoas da leitura de um jornal, ou na rejeição de levar para segundo plano um noticiário televisivo. Dou, como exemplo, as dezenas e dezenas de vezes que já vi a mesma imagem filmada da Alexandra Reis, na RTP, a tomar posse de Secretária de Estado do Tesouro (que já não é), a propósito da já mais que conhecida polémica sobre o recebimento dos 500 mil euros, que, penso, vai devolver ao Estado, ou se viu constrangida a tal conduta. E também da ex-CEO e presidente da TAP, Christine Ourmières-Widener. Que é isto?! Em vez da irritabilidade que causam aquelas imagens, nas inúmeras aparições (este um dos muitos exemplos de outros casos), é o sintoma de quem não tem mais nada para preencher no espaço de um telejornal, pelo que não seria preferível seguir o caminho da criatividade para encontrar outras imagens não similares, ou então evitar as constantes repetições?

Não posso negar as honrosas exceções, onde o jornalismo é assumido na autenticidade dos factos, indo de encontro à linguagem do povo, preferencialmente pela via do papel, ou numa entrevista apelativa, com aquelas figuras bem conhecidas do pequeno  écrã que nos atraem pelo respeito que nos transmitem a honestidade das suas intervenções,  num canal televisivo  não sensacionalista, e não na vertente de um intelectualismo que não abarca todos. Obviamente que há que respeitar o pluralismo opinativo.

Agora são também as muitas vezes que se fala nos mesmos números sobre as vítimas do caso dos abusos sexuais ocorridos na Igreja: a validação pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica: “512 dos 564 testemunhos recebidos, apontando, por extrapolação, para um número mínimo de vítimas da ordem das 4815”. Quantas vezes se fala nisto?

O tão badalado caso das vítimas dos abusos sexuais na Igreja, que há muito deveria merecer dos bispos portugueses a melhor atenção; mesmo antes do relatório da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), é outro dos casos que prolifera nas mentes dos portugueses, não só os católicos, como mesmo na dos ateístas ou agnósticos; vistos na vertente de um mau serviço dos representantes da Igreja. As desculpas de cada bispo são nalguns casos aberrantes. A tentativa de encobrir os abusadores foi notória em vários bispos, que deveriam estar na linha da exemplaridade da Igreja Católica, Apostólica, Romana. Só depois do alarido da Comunicação Social, não só a falada como a escrita, os senhores da mitra como que se envergonharam (alguns pediram desculpa, desculpas esfarrapadas) e lá foram tentando deitar um “remendo em pano velho”.

A recente transmissão da RTP1 da série do romance de Eça de Queirós – “O Crime do Padre Amaro”, terá vindo a contribuir para esta teia de desconforto entre os católicos que mais confiam na sua Igreja.

E, assim, só agora se começam a ver os afastamentos de padres suspeitos (o que deveria ter sido feito há muito mais tempo), uma conduta tardia que leva à responsabilidade da hierarquia católica portuguesa (é neste caso que me interessa falar) do afastamento dos católicos das igrejas, quando a sua redução já era evidente há tempos.

A conclusão extraída das várias informações recolhidas de tudo o que lemos e ouvimos é desoladora. Quando os católicos esperavam confiar na hierarquia dos representantes da sua Igreja, que também é a minha como católico, acabam por assistir à deceção dos elementos da extinta Comissão Independente para o Estudo dos Abusos de Menores na Igreja –, e não só, que recolheu testemunhos de vítimas e apurou que pelo menos 4815 menores terão sido alvo de abusos nos últimos 70 anos, já amplamente referido. Estava à espera de uma resposta “muito mais clara”, face aos dados apurados, no âmbito da entrevista dada, a título pessoal, por Daniel Sampaio, psiquiatra e membro daquela extinta Comissão.

Segundo a antiga governante, Alexandra Leitão, “A Igreja entendeu que não se deve responsabilizar pela reparação dos danos causados às vítimas”. “A Igreja Católica que decidiu não afastar as pessoas que estão indicadas na lista, entende que não se deve responsabilizar pela reparação dos danos. Há aqui uma situação de encobrimentos. Podia ser um movimento de viragem da Igreja, não foi, não só não deu dois passos em frente, como deu dois passos atrás, acho que revitimizou aquelas vítimas”.

José Mendes, no DN, num seu artigo de opinião, diz: “Basta, senhores Bispos! Não há outra forma de o dizer! A Conferência Episcopal Portuguesa e o Bispo José Ornelas devem estar a brincar com os portugueses. A conferência de imprensa de sexta-feira sobre os abusos sexuais sobre menores ficará na História como um  dos pontos mais baixos, miseráveis mesmo, da Igreja em Portugal. A cúpula religiosa continua convencida de que, mais uma vez, o tempo funcionará como a esponja que absorve e apaga os seus pecados, como tantas vezes aconteceu no passado. Só que estes não são já os tempos da Inquisição. Agora, a informação flui e a indignação não se abafa facilmente no perdão beato e gratuito”.

Segundo Daniel Sampaio, “A Igreja não se colocou do lado das vítimas. Foi assim uma conferência de imprensa dececionante. Esperava uma resposta “muito mais clara” da Igreja, como já cima foi referido. E lamentou que padres suspeitos não sejam afastados preventivamente.

Já Marcelo Rebelo de Sousa, como presidente da República afirmou que a Conferência Episcopal Portuguesa “ficou aquém ao não assumir a responsabilidade” e também por “não tomar medidas preventivas”.

O colunista do Público, João Miguel Tavares, num excelente artigo –”Um desenho sobre a pedofilia para os bispos portugueses” – , na parte final do mesmo diz que “As coisas mudaram? Mudaram. O espaço da Igreja é hoje mais seguro do que há 50 anos. Mas mudaram por causa da sociedade. Não mudaram por causa da Igreja, onde o discurso eclesial continua poluído pelo clericalismo, pela falta de empatia e, com boa probabilidade, pelas dores de consciência de alguns bispos ainda no ativo que também ocultaram e silenciaram, e a quem hoje falta a coragem para fazer o que se impõe: entregar o anel episcopal e renunciar ao cargo. Este é o maior escândalo da Igreja desde a Inquisição.

No meio do baralhado em que o bispo José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa  se encontrou, acabou por, mais tarde, afirmar: “Não fui feliz”, fazendo mea culpa. José Ornelas mostrou incómodo perante os abusos, mas nenhuma empatia com as vítimas. Pediu perdão, mas não se comprometeu com reparação.

A poucos meses da anunciada e muito atribulada Jornada Mundial da Juventude, a prosápia e o conluio da hierarquia da Igreja, esforça-se por tentar diminuir e desvalorizar a gravidade dos testemunhos, substituindo a responsabilidade e a reparação dos danos das vítimas pelo perdão gratuito e deixando os lobos no meio do rebanho.

Consta que há uma guerra pelo barrete de cardeal. O relatório final da comissão independente que investigou abusos sexuais a menores na Igreja dividiu a Conferência Episcopal. Mas esta guerra entre os bispos, segundo o Tal & Qual, esconde uma outra – a da sucessão de D. Manuel Clemente como cardeal-patriarca de Lisboa.

Quatro bispos foram os primeiros a erguer a voz, próximo da doutrina do Papa, contra a aparente condescendência com a Conferência Episcopal, e o seu presidente, D. José Ornelas, receberam o relatório final da comissão que investigou o abuso de menores da Igreja. Assim, tudo poderá contar na hora do Papa escolher o novo bispo de Lisboa e a quem historicamente também é devido o barrete cardinalício. Entre os 25 bispos portugueses – desde diocesanos e auxiliares, mais o do Ordinariato castrense – D. Nuno de Almeida, D. Francisco Coelho e D. Armando Domingues, deram um passo de gigante no reconhecimento por parte da Santa Sé. Mas já um quarto bispo, auxiliar de Lisboa e responsável pela Jornada Mundial da Juventude, juntou-se aos três na linha de partida para a corrida ao patriarcado. Será? A ver vamos.

 

 

João de Jesus Nunes

                                                                                                                                jjnuns6200@gmail.com

 

(in “Jornal Fórum Covilhã”, de 22-03-2023)

 

18 de março de 2023

CONTE-NOS A SUA HISTÓRIA JOÃO SALVADO – COVILHÃ

 







Inserimos neste número uma figura sobejamente conhecida da Cidade, que, apesar dos seus 85 anos, na sua humildade mantém uma disposição de espírito vigorosa na simpatia com que a todos trata. Deixa cair uma ponta do véu da felicidade que vive pelo orgulho que sente das vidas profissionais dos seus três filhos.

Por duas vezes foi chamado para cumprir o serviço militar obrigatório, sendo que a segunda vez se destinou à mobilização para a Guiné logo no início da Guerra do Ultramar.

Natural da freguesia de Santa Maria Maior, da Covilhã, nasceu em 19 de abril de 1937. Começou a trabalhar aos 13 anos como aprendiz numa serralharia. Volvido um ano passou a exercer outra atividade, como aprendiz de marceneiro, até ser chamado para o serviço militar, tendo assentado praça em 14 de abril de 1958, no Grupo de Artilharia Costa Antiaérea (GACA), onde fez a recruta; e a especialidade na Escola Prática de Engenharia, em Tancos, como radiotelegrafista. Veio a tomar parte nas manobras anuais em Santa Margarida, no ano de 1959. Como ainda não tinha surgido a guerra colonial, passou à disponibilidade em 11 de agosto de 1960, regressando assim à Covilhã.

Matriculou-se então na Escola Industrial e Comercial Campos Melo, no Curso de Eletromecânico noturno, porquanto durante o dia trabalhava. Viria então a interromper o Curso em 1961 porque voltava a ser chamado para o serviço militar, com destino à sua mobilização para a Guiné. Só o concluiria em 1968, após ter regressado do Ultramar, em 1963.

Assim, voltou novamente a ser chamado para cumprir o serviço militar em 22 de junho de 1961 até 21 de novembro de 1963, apresentando-se em Torres Novas, novamente no GACA 2. Passado algum tempo, foi para Évora a Companhia que o integrou, seguindo posteriormente para o quartel de Faro. Depois transitaram para Lisboa, para o Adidas, onde receberam todo o material para embarque. Volvidas 24 horas seguiram para o aeroporto a fim tomarem o avião com destino à Guiné, em 30 de julho de 1961, fazendo parte da Bateria, tipo Companhia de Caçadores 2401, tendo feito escala na Ilha do Sal, em Cabo Verde, e depois desembarcado em Bissau, no mesmo dia.

Chegada a Companhia à Guiné não havia aquartelamento pelo que estiveram durante 15 dias ocupando as instalações do Liceu de Bissau, ficando o quartel instalado no Quartel-General, também em Bissau. Daqui partiu, durante seis meses, para uma grande praia em pleno Oceano Atlântico – a Praia de Varela. Tinha um grande casino onde se juntavam na altura os ricos: da Guiné Portuguesa (depois Guiné-Bissau), Senegal e Guiné-Conacri.

A sua missão era a exploração rádio, com deslocações a várias localidades, pelo meio do mato, com o rádio às costas, sendo Acra a última localidade. Felizmente não teve qualquer agitação de maior importância durante a sua comissão (mas havia noutras zonas, onde ouviam os tiros, geralmente à noite). Teve a sorte de não ver mortes, não existindo quaisquer baixas em combate na sua Companhia, excetuando algumas derivadas de acidentes. Diz-nos que viveu ali um tempo de tranquilidade, era o sossego para descansar. De tal forma que dava para andarem dois jipes a percorrer toda a província, destinando-se um ao padre e outro ao médico.

E assim embarcou de Bissau num navio, no dia 15 de outubro de 1963, com destino a Lisboa, voltando a fazer escala na Ilha do Sal, desembarcando na capital em 22 de outubro de 1963.

E diz-nos que o mais importante que trouxe da Guiné foi obter lá a carta de condução civil.

Chegado à Covilhã, concluiu o Curso de Eletromecânico na Escola Industrial, que se vira forçado a interromper, passando depois a desenvolver várias atividades, como encarregado numa fábrica de lanifícios – a Laneira, e depois em Aldeia do Carvalho. Chegou ainda a ser convidado pelo Dr. Duarte Simões para mestre de serralharia, onde ainda exerceu, na Escola Industrial Campos Melo. No entanto, surgindo-lhe oportunidades para técnico de máquinas de escritório, passou a exercer esta atividade, na Olivetti, e depois como empresário, até à sua aposentação.

 

(In “O Combatente da Estrela”, n.º 130 – ABR 2023)

 

SE BEM ME LEMBRO II


A caminho do equinócio da primavera, a ocorrer às 21 h e 24 m do dia 20 de março, segundo consta no Borda d’Água, ocorreu-me plagiar o título do programa semanal na RTP, entre 1969 e 1975, do prof. Vitorino Nemésio. Durante cerca de meia hora, em horário nobre, os portugueses, encantados, deixavam o prof. abrir-lhes as fronteiras da cultura e do conhecimento.

Dou o título “SE BEM ME LEMBRO II”, porquanto, em 24 de janeiro de 2008, no Notícias da Covilhã, foi publicada uma minha crónica, também com este título, da qual respigo, por envolver o final do meu serviço militar obrigatório, o que segue:

“Em 1971 já eu estava farto de tropa obrigatória e chegava o finalmente. O adeus ao Regimento de Infantaria da Guarda. Num sopro de alegria, vai de fintar a hierarquia militar. Um segredo aos três colaboradores diretos, para marcar o meu último serviço na unidade militar: os dois Soldados, da Guarda, e o 1.º Cabo, de Lamego, saíram para a rua, em pontos estratégicos, com as botas engraxadas e os distintivos do fardamento a brilhar. Nos locais combinados (O Caçador, Cine-Teatro e Café do Bonfim), o meu ordenança, do Tortosendo, ficava surpreso quando lhe pedia para anotar os números mecanográficos dos ditos cujos: ‘O que é que vai fazer aos gajos?’. Sem saber do que se passava, só ficou dissipado das suas interrogações quando saiu a ordem de serviço: ‘Foram louvados os soldados fulano e sicrano, e o 1º cabo beltrano, por terem sido abordados pela ronda desta Unidade, devidamente ataviados, numa apresentação que se evidenciavam dos demais militares desta Unidade, sendo um exemplo a seguir’. No final, dos três militares, um ‘Felicidade meu Furriel’”.

Na minha vida profissional, aquando duma reunião de dois dias em Coimbra, nos primórdios após a Revolução do 25 de Abril, encontrava-me no hotel, à noite, quando deparo com uma pequena revista deixada no quarto, onde surgia em forma interrogatória, sugerindo concordância, e com muita esperança, o surgimento duma moeda única europeia – o ECU. Pensei cá para os meus botões: “Devem andar malucos”. O que é certo e verdade é que, na evolução dos tempos, esta unidade monetária europeia, criada em 13 de março de 1979, correspondente à média ponderada de 12 moedas da então Comunidade Europeia, utilizada inicialmente apenas em transações comerciais e financeiras, foi substituída pelo EURO em 1 de janeiro de 1999. Foram sete as moedas da Europa que foram aposentadas por causa do euro (Marco alemão, Franco francês, Florim Neerlandês, Dracma Grega, Lira italiana, Peseta espanhola e o Escudo português). Bom, muito haveria a falar, se até já existem as criptomoedas, ou seja, qualquer forma de moeda que existe digital ou virtualmente e usa a criptografia para a realização de transações. Fundada em 2009, o Bitcoin foi a primeira criptomoeda e continua a ser a mais negociada.

E agora é o ChatGPT, um programa informático acessível a toda a gente, e com a apetência dos jovens pelo mundo das tecnologias onde já há muitos milhões por esse mundo fora a utilizá-lo. Desenvolvido por uma empresa do multimilionário Elon Musk, o ChatGPT é o último de uma série de programas informáticos, com capacidade para dar respostas claras e bem informadas a todo o tipo de perguntas. Não é um simples motor de busca. O programa tem acesso aos milhões de textos publicados na Internet e consegue elaborar textos que respondem a todo o género de questões.

Mas não vou alongar-me mais no mundo evolutivo, onde a tecnologia e a inteligência artificial se impõem.

Portugal é um pequeno país com uma população equivalente à de muitas cidades do mundo. No entanto, é sempre difícil atrair pessoas para fora dos grandes centros urbanos. E quando se fala no interior, então é de coçar a cabeça. Ao longo da história sempre se destacou o êxodo rural à procura de uma vida melhor, sobretudo a partir da década de 50. “Se outrora Portugal era um país essencialmente agrícola, hoje é uma nação de serviços”, conforme refere Rosália Amorim, in Público. “Os baixos rendimentos, mas também a fraca saúde e educação, fizeram com que muitos se deslocassem para as urbes. E nada mudou durante o século XXI”. E “A dureza dos números da desertificação prova que às autarquias não basta construírem gimnodesportivos, repuxos e rotundas. O interior ainda não deu o salto qualitativo que o torne realmente atrativo e que lhe dê a capacidade de segurar os mais jovens, talentosos e letrados. Mais empregos, melhor saúde e educação, precisam-se.”

Entretanto, na Covilhã podemos contar com uma das melhores universidades do país e do mundo – a Universidade da Beira Interior (UBI) e uma excelente unidade hospitalar – o Centro Hospitalar Universitário Cova da Beira (CHUCB).

Por último, há que salientar a apresentação do livro “Macau –  Um homem dois olhares – Razões de uma Descolonização exemplar”, pelo seu autor, o Presidente da Liga dos Combatentes, Tenente-General Chito Rodrigues, ocorrido no dia 13 de janeiro na Biblioteca Municipal de Castelo Branco. Refira-se que o TG Joaquim Chito Rodrigues é albicastrense e antigo aluno do Liceu Nacional Nuno Álvares, onde foi colega do poeta António Salvado, que fez algumas considerações sobre o livro. Dos semanários albicastrenses “Reconquista” (R) e “Gazeta do Interior” (GI) extraio alguns registos: “Militar que ajudou a abrir caminho a uma descolonização exemplar. Macau – Chito Rodrigues desempenhou funções no território entre 1975 e 1978 e diz que é o exemplo ‘da forma portuguesa de estar no mundo’. Em Macau, Joaquim Chito Rodrigues, o militar natural de Castelo Branco, então à beira dos 40 anos, chegou ao território cerca de um mês depois de Portugal reconhecer o governo da República Popular da China. Desempenhou aqui as funções de chefe do Estado-Maior do Comando do Chefe, comandante das Forças de Segurança, mas também Governador de Macau em exercício. Em 1999, vinte e três anos depois de a bandeira portuguesa ter sido arriada, Chito Rodrigues olha para Macau  como um exemplo ‘da forma portuguesa de estar no mundo’. ” (R). A carreira do general Chito Rodrigues é de originalidade única. Foi o melhor aluno da Academia Militar. A sua carreira foi também marcada por vários teatros de guerra nos territórios portugueses. Mas, a personalidade do General Chito Rodrigues reveste-se ainda mais de variadas facetas, pois foi diplomata, enquanto adido militar em várias embaixadas, doutorou-se numa universidade brasileira, foi articulista de ideias, bem como escritor, e preside à Liga dos Combatentes; foi poeta, tendo um livro publicado; e também é campeão olímpico de esgrima. Muito próximo do general Rocha Vieira, o general Chito Rodrigues assistiu a todas as peripécias que envolveram ao ato de entrega do território de Macau” (GI).

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In “O Combatente da Estrela”, nº. 130 ABR/2023)

 

16 de março de 2023

VÍCIOS E RISCOS DO CÉREBRO HUMANO


Na arrumação que periodicamente faço aos arquivos acumulados de folhas soltas selecionadas, algumas já a amarelecer pelo tempo, apontamentos registados para que a memória não me atraiçoe, páginas de jornais ou revistas que vou retirando a algumas publicações após a sua leitura, não evito uma acumulação de assuntos de interesse que me incomoda deitar fora, mas que não posso abarcar nos espaços já exíguos da minha biblioteca, onde também o meu escritório se encontra sobreposto de livros aqui e acolá, na brandura de poder chegar ao fim da leitura de duas obras na simultaneidade.

De permeio não posso deixar de evitar os hiatos necessários para a colaboração nos excelentes periódicos que há muito me dão a honra de ter um espaço próprio para o vício da escrita.

E foi assim que, já com um saco repleto de papel do que da minha parte remanesce, me vejo forçado, contra a minha vontade, a ver partir memórias de vários tempos (para além do que já foi lido, de todos os jornais que assino, sem contar os digitais) com destino ao Banco Alimentar Contra a Fome, recolha destinada a ajudar Instituições de Caridade. Foi então que encontrei umas páginas interessantes, de autoria do Médico Neurocirurgião, Raimundo Fernandes.

Transcrevo parte do seu interessante texto, ao qual vou entremeando com vivências do meu tempo, contadas por quem viveu ainda no século transato.

“O cérebro humano é uma fábrica de produtos químicos que aceita, transforma e controla tudo. Quase tudo... E até chega a transformar lícitos em ilícitos. Trazemos os exemplos do álcool e do chocolate.

Dois amigos, ainda jovens, conversavam animadamente numa sala de espera de um serviço de sangue no Centro do país. Manhã invernosa, em pleno janeiro dos anos 60, com um frio de rachar na rua, mas confortável naquela sala meia despida e sem grande movimento. Florentino, com um ar descontraído, corpulento e de mãos sapudas, abria-se num sorriso fácil enquanto falava. Foi retirado da escola bem cedo, não chegando a fazer a 3ª classe. Sendo o mais velho de uma família de sete, com quatro cachopas e três rapazes, foi chamado em tenra idade ao trabalho do campo, atrás de um arado puxado por uma mula que pachorrentamente abria o coração da terra da sementeira.

Para dar força comia, quando havia, sopas de cavalo cansado. Por volta dos 15 anos ficou maltês, porque segundo dizia, o salário do velho não dava para tanta boca. A independência no trabalho e no ganho era uma imensa responsabilidade, acrescida da vigilância que tinha de fazer aos namoros das irmãs, todas elas iletradas como se usava na altura. Este adulto jovem, agora com 25 anos, envelhecido na côdea da terra ribatejana, tirou um dia de trabalho para dar sangue, em prol de um conterrâneo, vítima de acidente com uma máquina.

O Florentino, quando chamado pela médica de bata branca, foi questionado: - “Diga-me que doenças já teve. Os remédios que está a tomar. Se já foi operado. E a razão por que quer dar sangue”. Respondeu sem grandes pressas, enquanto a médica escrevinhava numa folha.

- Então e tabaco e bebidas?

- Senhora Doutora, tabaco nunca fumei, agora vinho bebo como toda a gente da minha terra. De preferência às refeições, mas às vezes ao fim de semana a jogar à malha, ou às cartas, sempre vão uns copos sem acompanhamento...

- De que quantidades é que estamos a falar?

- Bom não é uma coisa certa, mas talvez aí uns dois litros...

- (Surpresa) ... Por semana?

- (Riso aberto) ... Senhora doutora o trabalho é pesado e só um litro está incluído no contrato. Por dia. Estamos acostumados, mas realmente bebe-se bem...

A jovem clínica, que nunca tinha emborcado um copo, não acrescentou mais linhas aos antecedentes pessoais e mandou deitar o jovem na marquesa para dar início à colheita”.

Na Alemanha, durante a festa da cerveja, qualquer alemão médio bebe 10 litros de cerveja num fim-de-semana. Por cá, sem regras, e, por vezes sem decoro, também acontece cada vez mais em jovens, com cérebros imaturos. Rapazes e raparigas. Sem distinção. Até cair...

A regra básica para contornar o decréscimo do declínio cognitivo, no pressuposto de evitar o risco máximo de insanidade mental ou mesmo da própria vida é a aquisição do conhecimento adequado, a preparação para os eventos e a prudência necessária.

O inglês Thomas Quincey, escritor do século XIX, experimentou o Láudano para uma dor de dentes, ficou viciado para o resto da vida e escreveu um livro sobre a sua dependência. O ópio fez a diferença. Escritores como Eça de Queirós e Garcia Márquez, conscientes dos efeitos do Láudano, imortalizaram a mistura em sórdidas conjeturas de mortes por envenenamento em “Os Maias” e “Cem anos de solidão”.

“Quanto ao chocolate, pessoas vulneráveis podem ter mudanças bruscas de humor, depois de comerem chocolate com alto teor de cacau, sobretudo na presença de inibidores da MAO, por exemplo o fumo do tabaco e antidepressivos. Cada pessoa tem um nível de excitação inicial, determinado por fatores genéticos, pela fisiologia, situação de doença, fatores ambientais ou historial de drogas. Comer chocolate é bom, dá habituação, mas é gratificante. Contudo, pode acontecer, sobretudo nos homens, grave excitação e irritabilidade, talvez relacionado com os estrogénios nele contidos. Mas.... Chocolate preto é mesmo bom... Em doses moderadas.”

Vem agora a minha contextualização, de passagens da vida real de quem permaneceu neste mundo dos vivos, nas décadas de 50 e 60 do século XX.

É sobejamente conhecida a estória daquele envinagrado, na altura em que aquelas que são agora as instalações da Universidade da Beira Interior (UBI) percorria o passeio cambaleando, sem contar com o arco que, no final do passeio teria de se sair para o continuar após a sua saída, arco esse granítico. Ao ir de encontro à parede do mesmo, tal a sua alcoolémia, volta para trás, altamente irritado, apregoando aos quatro ventos que o arco do quartel (na altura o Batalhão de Caçadores 2 (BC2), extinto) estava fechado...

Ou daquela senhora que, condoída com o estado de embriaguez dum homem, todo enrolado num dos bancos do Jardim Municipal, sussurrava para os transeuntes: “Que miséria esta!”. A resposta não tardou do homem mesmo no estado em que se encontrava: “Miséria, não, minha senhora! Fartura! Fartura!...

Sobre os homens, e, mormente, as mulheres iletradas naqueles famigerados tempos salazaristas, de milhares de operários e operárias fabris da então denominada Manchester Portuguesa, era confrangedor verificar a indiferença em aprender a ler ou escrever, que o contar lá ia indo com os trocos atados a um lenço, em substituição dum porta-moedas, só confrontados com grande dificuldade quando era para pagar a décima, já que o que produziam numas pequenas leiras por vezes remediavam para colmatar o que faltava na mísera féria semanal.

Meu Pai, entre os anos da década de 50 e 60 foi o primeiro a reger um Curso de Educação de Adultos na Cadeia Comarcã da Covilhã, sendo muitas vezes necessário ir a casa das famílias dos presos a fim de obter documento de identificação, geralmente a Cédula Pessoal, já que ainda não era obrigatório o Bilhete de Identidade. Uma vez que o acompanhei, ainda petiz, à localidade da Borralheira, freguesia de Cantar Galo e Vila do Carvalho, recebemos a resposta da esposa do preso: “Mas para que é que ele quer fazer o exame da 3ª e 4ª classe? Para ser professor?...”. Palavras para quê? Era a morbidez cultural daqueles tempos.

Por último, o que reputo de mais interessante, passado com o médico ginecologista covilhanense, antigo Deputado da Nação e Presidente da Edilidade Covilhanense, grande amigo dos pobres, José Ranito Baltazar.

Naqueles tempos da “outra senhora”, ao qual foi um grande devoto, José Ranito Baltazar, por quem os Covilhanenses sempre tiveram muita consideração, era de uma conduta temperamental em que umas vezes se irritava; outras vezes, de um comportamento muito afável, mormente quando ao serviço da sua atividade profissional de médico ou então da autarquia covilhanense, como presidente. Quando maldisposto, diziam que estava “à Ranito”; mas quando de boa disposição, atribuíam-lhe o estado de estar “à Baltazar”. Acontece que certo dia um seu trabalhador agrícola, iletrado, foi ao seu consultório pedindo-lhe uma requisição para uma carrada de estrume para uma das propriedades agrícolas. E, entretanto, aproveitou para lhe pedir medicação para umas dores que o homem vinha tendo há já algum tempo. O médico, interrompido pela sua empregada, voltou depois a atender o seu empregado, jornaleiro, e, na receita médica, esquecendo-se da medicação, receitou: “Uma carrada de estrume suficiente para os terrenos”. O iletrado jornaleiro, vai de imediato à Farmácia Pedroso, com o sentido de lhe fornecerem a medicação quando deparam com o lapso, numa situação hilariante. E, por hoje, como dizia a minha avó: bonda!

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In “Jornal O Olhanense”, de 15-03-2023)

 

 

 

 

 

 

8 de março de 2023

ENVELHECER NÃO SIGNIFICA ESQUECER

 

Este é o título que a médica neurologista, Isabel Santana, inclui na revista Olhares, um registo muito oportuno que me chamou à atenção, eu que me debato com esse problema de me surgirem muitas partidas de falha da memória, essencialmente quando mais da mesma necessito, ou seja, para o desenvolvimento de um texto, ou mesmo no discernimento de uma conversação, já que várias vezes a omissão da palavra que está debaixo da língua teima em não sair. Mas, com esforço, e uma dose de tranquilidade, as memórias ofuscadas acabam por voltar à tona da água.

A caminho de sete décadas e mais sete anos de peregrinar neste planeta, recordo-me que há precisamente sete anos (a minha tendência para o número sete, talvez induzido pela resposta de Cristo aos Apóstolos de que deviam perdoar não sete vezes mas setenta vezes sete), numa consulta a uma neurologista, no âmbito das formulações da consulta, veio a propósito o meu envolvimento na publicação de mais um livro, de grande conteúdo (perto de 900 páginas), para além de manter colaboração assídua em quatro jornais. A resposta foi perentória: “Escrever artigos moderadamente, sim! Quanto a esse livro que está a escrever, esqueça!”. Bom, aceitei parte da prescrição mas a obra em curso acabou por sair, não um “ensaio” mas um autêntico “tratado sobre seguros”, aquela que foi a minha atividade de mais de quatro décadas, e ainda mantenho um grupo de amizades em redor da mesma. Depois deste livro (que se encontra em mais de centena e meia de bibliotecas e instituições deste país, Brasil e muitos particulares), mais dois se seguiram.

“Temos 800 mil milhões de neurónios, uns mais especializados que outros – é certo – e tudo o que somos, fazemos, pensamos, imaginamos e sentimos passa por ali. A informação circula a uma velocidade próxima dos 400 Km/hora e está sempre dependente da comunicação que existe entre os neurónios, as chamadas sinapses ou pontos de encontro de trocas químicas e elétricas. Quando a idade avança, este funcionamento começa a perder alguma eficácia, mas as modificações são subtis e não interferem com a vida do dia-a-dia”.

Evidentemente que respeito as orientações clínicas mas também compreendo que é muito difícil terminar com compromissos, ainda que voluntários, das atividades cognitivas.

É certo e verdade que o esquecimento nas pessoas mais idosas nem sempre é levado a sério, conforme refere Isabel Santana, admitindo alguns serem ingredientes de um processo normal de envelhecimento, o que considera errado, já que não é apenas o risco cardiovascular que importa. “O cansaço, a desmoralização, o sofrimento e a solidão, inevitavelmente irão acelerar o défice de saúde mental e física. A falha de memória deve ser um alerta, mas há outros sintomas a que devemos dar atenção: perder o entusiasmo por atividades que eram muito apreciadas; desorientação no tempo e eventualmente no espaço; arrumar objetos no lugar errado; perda de iniciativa; perda de capacidade de resolução de problemas básicos; perda de capacidade de raciocínio; alterações de humor, comportamento e personalidade; dificuldade na utilização de palavras (fala e/ou escrita); perda de memória”.

Sem o sentido de atemorizar quem ler esta crónica, deixo, no entanto, aqui este interessante alerta (que para mim também serve) da médica neurologista Isabel Santana, para as nossas capacidades cognitivas não ficarem comprometidas.

Infelizmente lê-se pouco no nosso país, e até os jornais começam a ficar preteridos. O meu melhor ambiente entre amigos é de quem gosta de cultura, e não de quem a despreza. Felizmente ainda conto com alguns bons grupos de amigos, entre as versões apontadas, onde não faltam os prazeres da comida portuguesa, e dos bons vinhos.

Quando faço uma visita à Biblioteca Municipal, lá encontro interessados pela leitura, mormente dos jornais.

E, aqui, um antigo leitor assíduo da biblioteca, que já vem da antiga Biblioteca Municipal, ao Jardim, e agora na nova Biblioteca Municipal, de seu nome Francisco Pereira de Sousa, continua numa perene ida à sala de leitura para a consulta de jornais e livros. É um prazer ver este Homem, de 85 anos, que desde os primórdios da antiga biblioteca, na década de 50 do século passado, até aos dias de hoje, se torna o mais antigo leitor da Biblioteca Municipal da Covilhã.

Recentemente encontrámo-nos e memorizou algumas páginas dum dos meus livros que lhe ofereci, ao mesmo tempo que recordou peripécias quando, menino e moço, visitava a antiga Biblioteca Municipal, ao qual não lhe facultavam todos os livros, face à mentalidade da época, em que os livros sobre amor eram tabu. Mas era o Almanaque ABCZINHO de que mais gostava, com aquelas figuras, como o boneco Narciso Pateta. Recordou o jornal do regime salazarista Diário da Manhã em que encimava “Tudo pela Nação, Nada contra a Nação”.

Convidou-me a ver a parte de trás do seu carro, onde havia livros em vários sítios, que ia lendo. Sem dúvida, um caso insofismável de amor à cultura.

Este Leitor de mais de setenta anos de leitura na Biblioteca Municipal merece ser objeto de reconhecimento municipal. Ou será que estou equivocado. Não! Não estou!

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

 

(In “Jornal Fórum Covilhã”, de 08-03-2023)

 


2 de março de 2023

SABER ZANGAR-SE

 

Pegando no título que Joel Neto insere no texto da sua obra “Banda Sonora para um Regresso a Casa”, serve-me de fio condutor para interpor algumas passagens em várias vertentes da vida, a fim de procurar compreender situações que sempre ocorrem em cada um de nós, quando a travagem na zanga por vezes não deixa de ser disfuncional. Eis que uns são mais tolerantes, outros menos agressivos, enquanto outros deitam para detrás das costas o desaguisado e engolem sapos vivos para não se zangarem com amigos, ou mesmo familiares.

Quem ainda não se zangou, de verdade? O negativo desta questão é o não deixarem de saber dizê-lo na cara umas das outras.

Certo e verdade é que já tinha escrito três longos parágrafos sobre casos envolvendo a zanga, em várias facetas da vida, ao longo de mais de sete décadas e meia que, felizmente, já vi passar, marcantes na juventude, na vida militar por obrigação, e mais recentemente com amigo, mas optei por deixar correr na penumbra para o esquecimento.

E isto, altura em que escrevo esta crónica, na véspera do 24 de fevereiro, em que se comemora um ano da invasão russa na Ucrânia, pelo que faz mais sentido direcionar o sentido da zanga contra o déspota Putin. O tirano faz recordar (porque estamos nas competições europeias de futebol) os nazis, em que também para eles o futebol era uma fonte de afirmação e acima de tudo uma questão de Estado. Um monumento na Ucrânia, lembra a equipa do Dínamos de Kiev, de 1942. Em plena ocupação alemã, eles cometeram a loucura de derrotar uma seleção de Hitler no estádio local. O aviso foi-lhes feito com antecedência: Se ganharem, morrem... Os jogadores do “Kiev” entraram em campo resignados a perder. Todavia, nem o medo nem a fome, os impediram de serem dignos – venceram. Quando terminou a partida, os onze briosos jogadores foram fuzilados vestidos com os seus equipamentos, no alto de um barranco.

Grande povo ucraniano, que, volvido tanto tempo, ainda mantém o seu amor patriótico, numa fortíssima zanga contra o malfeitor.

Enquanto isto, outras zangas singram por este nosso país à beira-mar plantado, mas pelos nossos governantes muito maltratado. Persistem as grandes zangas dos professores, e de outras classes sociais, com os de menores recursos a ver a esperança como palavra vã, numa zanga pelo esbanjamento dos dinheiros públicos.

E que dizer dos abusos sexuais cometidos por membros da Igreja? Ainda nos zangamos muito, é verdade. “Com a maior das facilidades nos zangamos contra inimigos abstratos, como o ‘Governo’, o ‘capitalismo selvagem’ ou mesmo apenas ‘a crise’. Com a maior das facilidades nos zangamos com aqueles que entendemos como nossos subordinados, no trabalho ou na vida em geral (afinal os nossos ‘superiores ‘acabam por pôr-nos a pata em cima, alguém vai ter de pagar a conta). Com aqueles que estão, de alguma forma, em ascendente sobre nós, já não nos zangamos, amuamos, que é a forma mais cobarde de nos zangarmos. Aos nossos iguais simplesmente não dizemos nada: engolimos e tornamos a engolir, convencendo-nos de que do outro lado está, afinal, um pobre diabo, tão pobre que nem merece uma zanga – e, quando enfim nos zangamos, é para dar-lhe um tiro na cabeça, como todos os dias nos mostram os jornais”.

“Não respondas”, aconselham-nos os sábios. Não dês troco. Não ligues. Não percas a cabeça. Tens de ser superior. E, inevitavelmente, viramos todos uns diplomatazinhos de esquina, sem capacidade para dar um grito e a seguir fazer as pazes. Tornamo-nos ainda mais hipócritas do que aquilo que a nossa contraditória condição já nos obrigava.

Eu prefiro um homem que parta a loiça a um choninhas que sublima tudo e, no final, ainda me passa a mão pelo pêlo. Quem não é capaz de zangar-se também não é capaz de uma gargalhada – e, se nos zangarmos com ele, o primeiro argumento racional que utiliza é: “Não sejas assim.” Mas que diabo é isso, “não sejas assim”? “Assim” capaz de ver uma relação pessoal deteriorar-se sem dar um murro na mesa para tentar salvá-la?

Só com frontalidade, coragem e zelo podem contar comigo.

 

João de jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In “O Olhanense”, de 01-03-2023)