27 de fevereiro de 2004

O PARADOXO

Segundo as estatísticas, os imigrantes são já cinco por cento da população portuguesa, tendo atingido 500 mil no final do ano transacto, com supremacia para os brasileiros.
Por todas as cidades e aldeias deste nosso País encontramos também ucranianos, moldávios, romenos, russos, búlgaros, bielorussos, lituanos, georgianos, húngaros, polacos, indianos, e espanhóis; argelinos e muitos outros africanos, de várias paragens desse grande continente, e outros gentílicos.
Já não estranhamos os trajes dos muçulmanos, dos indianos e outros, por essas ruas fora, o que não acontecia há cinquenta anos. Só se via um africano, na província, geralmente ligado ao futebol.
E este número é só o respeitante aos legalizados, já que mais de 250 mil imigrantes esperam a legalização.
Esta enorme mão-de-obra tem ajudado a criar riqueza para Portugal, lucrando o Estado 128 milhões de euros só com os 92 mil imigrantes dos países de Leste, segundo nos relatam os jornais, desenvolvendo as suas actividades mormente na construção, agricultura e restauração, sectores estes com mais peso.
O que se passa nos dias de hoje, e há já uns anos atrás, é exactamente paradoxal ao que aconteceu nos finais da década de cinquenta e início da de sessenta, onde um forte índice de emigração surgiu, com muita gente a caminho de outros países da Europa, onde nos encontramos inseridos, com destinos preferenciais a França, Alemanha, Suíça e Luxemburgo.
Nas Câmaras Municipais era o andar num rodopio diário, para os que pretendiam partir legalizados, onde as vigarices nos contratos de trabalho não eram tão abundantes, contrastando com os ilegais que se aventuravam a atravessar as fronteiras, de assalto, muitas vezes em condições infra-humanas, mas que a esperança de encontrar o eldorado ultrapassava essas enormes dificuldades e sacrifícios.
O concelho da Covilhã também não ficou incólume a essa avalanche de gente a contribuir para a desertificação das suas terras, mas, por outro lado, a avolumar as remessas dos emigrantes que caíam muito bem nos cofres do Estado Novo.
Esse formigueiro humano vinha principalmente das freguesias rurais, a norte e a sul do concelho.
As funcionárias da Câmara Municipal, e um funcionário, da altura, batiam incessantemente as teclas das máquinas de escrever, tratando da documentação dos que pretendiam emigrar, os quais, algumas vezes, faziam fila pelo corredor do município, ao tempo do Dr. Baltazar e Engº. Vicente Borges Terenas.
Cá fora, havia a recompensa para as incansáveis funcionárias, pelo menos algumas... Eram alguns cabazes com produtos das terras, onde não faltavam coelhos ou galinhas, queijos ou presuntos, dos que pretendiam ver a sua documentação na frente, bem depressa, que o país das patacas, ou a terra prometida estava à espera.
Eles vinham das Minas da Panasqueira, de Cebola (hoje S. Jorge da Beira), Casegas, de Sobral de Casegas (hoje Sobral de S. Miguel), de Unhais da Serra, do Paúl e Ourondo, como também de Aldeia do Mato (hoje Vale Formoso), de Aldeia do Souto, Orjais, e, mais perto, Teixoso e Aldeia do Carvalho (hoje Vila do Carvalho), não esquecendo da própria cidade, e por aí fora.
Estas recompensas davam ânimo e um certo dinamismo às senhoras funcionárias da edilidade, encarregadas da emigração, enquanto Manuel Matias – o Sr. Matias – um dos “donos” da Câmara de então, que apenas com a escolaridade obrigatória era chefe da contabilidade, passava grande parte do tempo com os empreiteiros – de preferência o Bom Jesus – com a sua secretária de madeira, repleta de montões de facturas, ordens de pagamento, orçamentos, e um mar sem fim de papéis e mais papéis.
Pacheco Lança – o 3º. Oficial – que isto de se chegar ao poleiro não era como nos dias de hoje, preocupava-se com as actas das escrituras camarárias, e, aos domingos à tarde, “botava” notícia dos relatos do Sporting da Covilhã para os jornais de que era correspondente.
O Chefe da Secretaria, que também era o responsável pela censura, impunha respeito – o Sr. Laurentinho – e lá passava horas sem fim no seu gabinete, preparando os trabalhos para as sessões camarárias, e não só, que geralmente não eram públicas.
E outro dia chegava, nova agitação pelos corredores camarários, novo matraquear das máquinas de escrever para os serviços da emigração, mais cabazes, alcofas e sacos camuflados à porta da Câmara.
E um dia até, entusiasmado, o único funcionário encarregado da emigração, resolve também emigrar. E até o porteiro finta o Sr. Matias, a quem devia obediência, e dá o salto para França, com subtileza, prometendo ao “dono” da Câmara que regressaria... pois ia com passaporte turístico e, nessa altura, era necessária uma autorização especial para os funcionários públicos se deslocarem ao estrangeiro. Foi a risada posterior de quem já adivinhava esta cena, entre os quais o oficial de diligências, Américo Santos.
Fora das paredes do município, a emigração continuava, mesmo sem papéis legais, onde os “passadores” cumpriam a sua missão, muitas vezes a par dos contrabandistas.
E, alguma rapaziada, em vésperas de ingressar na tropa, dava também o ar da sua graça, e, fugindo à guerra, desertava, sendo hoje uns heróis.
Hoje é o reverso da medalha da migração.


(In “Notícias da Covilhã”, de 27/02/2004)