24 de novembro de 2011

NEM SEMPRE O TEMPO SIGNIFICA MUDANÇA

Beco das Lages, nº. 6

Tão perto mas paradoxalmente tão longe…

Vai já distante, no tempo, a data de 12 de Fevereiro de 1955, altura em que vim residir para a Covilhã, com nove anos, do lugar onde nasci – Pousadinha –, bem altaneiro, muito perto do pinhal, de ares menos carregados de poluição; árvores de fruto, sossego, contacto com a natureza, ainda no tempo da malha do trigo (o pão, como se designava) com mangual.

Electricidade inexistente, durante muitos anos. Resolvia-se o problema primitivo com fogões e candeeiros a petróleo ou a carboneto; lareiras em cozinhas graníticas, de tecto muito elevado, separadas da moradia, donde pendiam grandes correntes para pendurar as panelas de ferro, sobre os cavacos a arderem. Aqui se coziam alguns alimentos e se fazia o caldo; e também se aquecia comida para os animais (o “vivo”, como linguagem popular).

A família reunia-se à noite, em redor da lareira, para conversar, mas a “civilização” era um pouco mais adiante, alguns quilómetros, para as bandas da cidade, e aí se verificava a instrução.

Viemos, algo precipitadamente, residir para uma casa modesta, de um só piso, na Covilhã, freguesia de Santa Maria – o Beco das Lajes, n.º 6.

Mas, de tão degradada, mais não nos restou que solucionar o problema, com a saída para a zona sul da cidade, juntinho à Escola Industrial, no dia 5 de Junho de 1955, ainda não eram concluídos quatro meses.

Tão perto mas paradoxalmente tão longe…por falta de vontade ou, diga-se, de não haver necessidade de visitar o local.

Na correria louca do tempo, na quase permanente utilização do automóvel em substituição da caminhada do dia, aquela zona, de ruas estreitas e casario antigo, não mais voltara a ser por mim visitada, não obstante ter o meu local de trabalho a uns trezentos metros…ainda que muitas vezes percorresse as suas redondezas.

Resolvi que surgisse a proximidade, visitando há algumas semanas aquele local, numa de nostalgia, de máquina fotográfica em punho, volvidos que foram 56 anos, mais de meio século!

Recordei-me de, criança que era, na Igreja de Santa Maria, ouvir cantar a Juventude Operária Católica (JOC) o seu hino jocista: “Sentido à voz de Cristo, avante! Jocista, em frente e sem temor; Responde em coro a voz pujante: Contigo, ó Deus Trabalhador”.

Mas também os estudantes do Liceu e da Escola Industrial, fardados da Mocidade Portuguesa, perfilados, para se integrarem na procissão que do mesmo templo saía, esperavam à porta, cantando o hino do tempo da outra senhora: “Lá vamos, cantando e rindo, levados, levados sim, pela voz do som tremendo, das tubas, clangor sem fim”.

Nem sempre com o tempo significa haver mudança…

Quando esperava já não encontrar a casa onde residi, e as do seu reduto; quando deduzi ir ver o local com as casas demolidas de tão degradadas; encontrei o mesmo com quase tudo como há mais de meio século. Lá se encontrava, bem visível, o n.º 6 do Beco das Lajes, e as casas onde vivia a D. Ritinha e os Melchiores, vizinhança simpática e acolhedora ao nosso agregado familiar de sete pessoas, naquele altura.

Efectivamente, por ser uma zona de lajes, como o próprio nome indica, conseguiu manter intacta a degradação, ao longo destes anos, em plena zona urbana da cidade, ainda que aquele Beco se encontre quase num esconderijo. Até o Padre Pina, que tão perto ali vivia, se fosse vivo, ficaria estranho. No entanto, a edilidade, na sua transformação estrutural de melhoramentos na cidade e concelho, e de inovações, substituiu, e bem, algumas lajes por escadaria em pedra.

Mesmo assim, nesta indubitável revolução, alguns espaços próximos, como aquele, ficaram incólumes de qualquer transformação.

Embora nem tudo seja possível como se pensa, lá que há coisas que são de estranhar, lá isso há.

(In Notícias da Covilhã de 24.11.2011)

17 de novembro de 2011

MALOGRADA GLÓRIA DO SPORTING DA COVILHÃ – FRANCISCO MANTEIGUEIRO

Francisco Pinto Manteigueiro

Foi a sepultar na sua terra natal, no dia de S. Martinho, o covilhanense Francisco Pinto Manteigueiro, de 78 anos, velha glória do Sporting Clube da Covilhã (SCC).
Acometido de doença, há já algum tempo, em Elvas, onde vivia há vinte e cindo anos, veio a deixar de ter a sua presença amiga, entre nós. Era encontrado, várias vezes, nos eventos da colectividade serrana, e mormente tendo como origem as boas memórias da sua passagem pelo clube serrano. Representou o mesmo durante muitos anos, duma forma quão alegre como aguerrida, deixando marcas vincadas do seu real valor de atleta de excelência.


Iniciou-se no futebol num clube da então FNAT (hoje Inatel) – o extinto Estrela de S. Pedro, da Covilhã.

Em 1951 inscreveu-se nos juniores do SCC, tendo efectuado um único jogo. Dando de imediato nas vistas, no ano seguinte jogou logo na primeira equipa.

Com vinte anos ganhou um lugar na equipa principal do SCC, então na Primeira Divisão Nacional, emparceirando com atletas de renome, nomeadamente os irmãos Cavem (o Domiciano iria para o Benfica), Cabrita, Carlos Ferreira, Simony, Martin, Nicolau e Lanzinha.

E, assim, nas épocas áureas do SCC na I Divisão Nacional, desde 1953/54 a 1961/62, não deixou de ser escolhido para integrar as equipas principais, inclusive, participou na Final da Taça de Portugal, com o Benfica, em 02-06-1957, sendo um dos esteios da sua equipa.

Depois, seria ainda Campeão Nacional da II Divisão Nacional, na época 1957/58, e uma das suas pedras basilares, a par de Cabrita, Suarez, Rita, e outros.

Marcou 16 golos durante a I Divisão, não obstante ter grandes goleadores como seus parceiros, nomeadamente Simonyi. Domiciano Cavem e Suarez, mas, já na fase derradeira do SCC na I Divisão Nacional, Francisco Manteigueiro ainda ajudaria a sua equipa com golos, sendo o melhor marcador, com seis, na época 1960/61.

Veio depois a dar um grande contributo na II Divisão Nacional, jogando então com colegas mais novos, a quem terá incutido a sua garra e o seu exemplo, nomeadamente ao grande goleador, durante vários anos, do clube serrano – Fazenda.

Para além da final da Taça de Portugal, já referida, integrou quase todas as equipas nos jogos da Taça, desde a época de 1954/55 a 1969/70, tendo marcado alguns golos, como o do empate, a uma bola, contra o F C Porto, no Estádio Santos Pinto, no dia 27 de Março de 1960.

Foi pretendido pelos chamados clubes grandes do futebol nacional, com os quais não chegaria a acordo. Chegou a ser-lhe prometida a internacionalização pelo seleccionador Dr. Tavares da Silva, que, entretanto, falecera.

Terminou a sua carreira de atleta, sempre ao serviço do SCC, em 1972, após 21 anos de envergar a sua camisola, pela qual sempre teve grande amor.

Manteigueiro é o último, de pé curvado

A sua acção teve papel influente no comportamento da equipa. E, com todo este grande empenhamento, duma carreira brilhante, onde conheceu bons e maus momentos com a única camisola verde-branca, não teve qualquer festa de homenagem, depois de muitos anos de bons serviços, logo após terminar a carreira, ao contrário do que aconteceu com alguns dos seus colegas.

Mas, não obstante este injusto esquecimento, Francisco Manteigueiro ainda serviu o SCC como treinador e dirigente, em vários mandatos, sempre de semblante alegre, como lhe era peculiar.

Viria ainda a treinar o Desportivo de Castelo Branco, o Belmonte, Teixosense, Benfica e Castelo Branco, Benfica do Tortosendo, Unhais da Serra e Associação Desportiva da Guarda.

Esteve também envolvido na vida autárquica e associativa, onde sempre granjeou muitos amigos..

Manteigueiro e Marcelino numa festa da APAE de homenagem

Manteigueiro e Lanzinha numa homenagem do SCC

O seu funeral, apesar de sentido pelos seus bons amigos e alguns colegas do futebol serrano, que marcaram presença – Pires, Lanzinha, Fazenda e Prata – e também duma voz do Brasil, que ocasionalmente foi objecto de um telefonema, durante o velório – Vitoriano Suarez Montero –merecia que tivesse mais covilhanenses, e por que não a edilidade covilhanense, para além de mais dirigentes antigos e actuais do clube serrano, sendo que alguns estiveram presentes e colocaram sobre a sua urna a bandeira do seu clube de sempre – o Sporting Clube da Covilhã.

( In “Tribuna Desportiva” de 15.11.2011, e no “Notícias da Covilhã” e “Jornal do Fundão” de 17.11.2011)

9 de novembro de 2011

QUANDO O PRIMEIRO AUTOMÓVEL SUBIU À SERRA DA ESTRELA



Há sempre uma primeira vez. E, assim, o primeiro automóvel a chegar a Portugal – um Panhard-Levassor, importado de Paris – ocorreu em 1895. Logo na primeira viagem, entre Lisboa e Santiago do Cacém, teve um acidente – o primeiro acidente de viação ocorrido em Portugal – tendo sido atropelado um burro.

As estradas, in illo tempore, estavam muito longe das comodidades de hoje.

Volvidos meia dúzia de anos, entrou na Covilhã o primeiro automóvel, em 1901, pelas mãos do comerciante João Alves da Silva, então com 21 anos, tendo nascido em Abrantes mas constituído família na Covilhã, onde se radicou.

Foi um homem de influência no meio citadino, tendo presidido à Comissão Administrativa da Câmara Municipal da Covilhã, e depois como vogal, em Janeiro de 1912. Foi delegado e sócio fundador do Automóvel Clube de Portugal e fez parte da “Sociedade de Propaganda de Portugal”, do “Turismo – Comissão de Iniciativa Estância da Serra da Estrela” e do “Grupo de Propaganda da Serra da Estrela”.

Mas é ainda João Alves da Silva que em 1906, com um automóvel, Darracq de 10 HP e 2 cilindros, sobe, pela primeira vez, à Serra da Estrela, quando não havia ainda estradas, mas antes caminhos. Foi a primeira escalada à Serra, em automóvel, sem qualquer via de acesso a “não ser alguns escabrosos caminhos de pé feito, que dificilmente se trilhavam”, conforme referiu o meu antigo colega de profissão, Vasco Callixto, na revista ACP de Novembro/Dezembro de 1965.

“Façanha com foros de sensacional, rodeada hoje de todo o pitoresco dos feitos heróicos dos primeiros tempos entre nós, ficou a dever-se a um dedicado pioneiro do automobilismo, que foi também um incansável propagandista das belezas naturais da sua região, quando o turismo era ainda letra morta em Portugal. João Alves da Silva ousou meter ombros a um cometimento de vulto, que muito boa gente não hesitou em condenar a completo malogro. Se encosta acima só havia calhaus e penedos, como poderia um “carro sem cavalos” levar a bom porto essa aventura?”, continuou assim a referir-se Vasco Callixto na revista do ACP.



Naquela viagem de automóvel, João Alves da Silva levou como passageiros três amigos: António Pereira Barata, Diamantino Henriques Pereira e António Lopes Fazendeiro, igualmente grandes entusiastas do automobilismo.

Antes de iniciar a marcha, contactou o mecânico Gregório da Fonseca Mimoso, conhecido por “Marroca”, um dos mais hábeis mecânicos da Beira Baixa.

Preparado o “Darracq”, com maior ou menor dificuldade saiu vitorioso da espinhosa missão que lhe havia sido confiada. Serra acima, através de caminhos e veredas pedregosas e havendo-se com rampas muito respeitáveis chegou como um herói às Penhas da Saúde. João Alves da Silva e os seus companheiros de aventura deram largas à sua alegria, por terem levado a bom termo a sua façanha, não se fazendo esperar as felicitações.

No entanto, não tinham contado com as dificuldades da descida, tendo o regresso à Covilhã sido a parte mais penosa da jornada, ameaçando o automóvel, a todo o momento, despenhar-se no abismo com os seus destemidos ocupantes. Foi uma odisseia que constituiu a primeira descida da Serra da Estrela em automóvel.

Em 1912, os entusiastas beirões do automobilismo fizeram disputar uma prova que ficou conhecida por “Corridas da Covilhã”, embora lhe chamassem também, mais apropriadamente, “Circuito da Serra da Estrela”. Estas “Corridas” foram integradas nas Festas da Cidade.

Mas, este jovem de 86 anos – Vasco Callixto – esteve recentemente na Covilhã, com a esposa, cujo casal tive o prazer de o acompanhar numa visita à cidade e à Serra da Estrela, e foi, para além da sua profissão, jornalista e escritor. Escreveu recentemente o seu 50º livro sobre viagens, tendo percorrido o mundo em automóvel. E, na nossa região, donde já sentia uma nostalgia, Vasco Callixto havia visitado a mesma há muitos anos, tendo pernoitado na antiga Colónia Infantil da Montanha (actualmente Pousada da Juventude), a convite do professor António Esteves Lopes que leccionou na Escola Industrial e foi um homem que se dedicou ao turismo e à Serra da Estrela.

Estava longe de saber que um antigo colega de profissão, de outros tempos, ainda se mantinha com um grande vigor pelas letras.




( In Notícias da Covilhã de 09.11.2011)

3 de novembro de 2011


(In Noticias da Covilhã, de 03.11.2011)

PRAXES ACADÉMICAS

Sempre me irritaram. Não acho piada alguma. Deixo-me rir com a estupidez das mesmas, ou seja, dos seus artistas.

Há sessenta anos não havia ainda universidade na cidade. E, no País, só sabíamos da existência das mesmas em Coimbra, Lisboa, Porto e Évora. A sapiência até era outra. As oportunidades de continuar os estudos também só eram possíveis para quem tivesse possibilidades financeiras. Não havia as facilidades de hoje, com “Novas Oportunidades” pelo meio. Os estudantes do antigo 7.º ano do Liceu e do Colégio Moderno preocupavam-se também com o latim,

Mas já havia praxes no secundário, onde obrigavam os caloiros a beijar a colher de pau, e, na Escola Industrial, aos alunos nocturnos, depois de os agarrarem levavam-nos aos ombros, em algazarra, numa grande tropelia, para as râmolas da Escola, que ficavam à direita do edifício, frente à oficina de tecelagem, e aí infligiam o sacrifício ao caloiro, abrindo-lhe as calças pela portinhola e introduzindo pela abertura toda a sorte de detritos, sobretudo terra amassada com água.

A única praxe que suportei foi no Regimento de Artilharia Ligeira n.º 4, em Leiria, aquando da apresentação naquela unidade militar, juntamente com os restantes colegas “caloiros”, concretamente designados de “maçaricos”, depois da conclusão do Curso de Sargentos Milicianos, por obrigação. Para além do almoço intragável, com tomates podres de sobremesa, na messe, antecedido dum teste estúpido, que serviu para depois nos ridicularizarem, seguiu-se um exercício de campo nocturno, com fogo a apavorar os agricultores de Marrazes, que pensavam que andávamos a afugentar a caça.

Se muitos dos pais que, com sacrifício, lá longe, suportam as despesas com os seus filhos, vissem o espectáculo em que os mesmos se envolvem, muitos deles contrariados, num uníssono de asneiras e atitudes obscenas, com bebedeiras pelo meio, a que são forçados, certamente se sentiriam constrangidos.  

E são estes os homens e as mulheres de amanhã!...

As praxes académicas que, no seu sentido de práticas que se pretendem relacionadas com a integração dos novos estudantes nas instituições de ensino superior, humilham os novos alunos, no mote de Dura Praxis, Sed Praxis, baseado no latim Dura Lex, sed Lex, poderiam revestir-se, na sua tradição ancestral (com a sua génese na Universidade de Coimbra), por “sacrifícios” moderados, evitando assim atitudes comportamentais que levaram alguns caloiros à morte e alguns veteranos a serem sentenciados em tribunal, como já foi do conhecimento público, em Outubro de 2001 e Outubro de 2002, para além de lesões corporais irreversíveis noutros caloiros.

Já em 1727, devido à morte de um aluno no ano anterior, D. João V proibiu as investidas feitas pelos veteranos, deliberando: “Mando que todo e qualquer estudante que por obra ou palavra ofender a outro com o pretexto de novato, ainda que seja levemente, lhe sejam riscados os cursos”. E, já em Dezembro de 1916, no jornal “A Resistência” se lia o título, “Abaixo as praxes ridículas e inoportunas!”.

As contestações à praxe não deixaram de existir e já o antigo Presidente da República, Teófilo Braga, dizia que os estudantes do seu tempo faltavam às aulas para fugir à praxe, sendo certo que em 1903, Eça de Queirós e Ramalho Ortigão assinaram, em conjunto com outros estudantes, um “manifesto anti-praxe”.

E, mais recentemente, em 2008 e 2009, o então Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Mariano Gago, enviou uma carta a todas as universidades afirmando que “a degradação física e psicológica dos mais novos como rito de iniciação é uma afronta aos valores da própria educação e à razão de ser das instituições de ensino superior e deve pois ser eficazmente combatida (…)” e, depois, que “embora afirmando uma intenção de integração dos novos alunos, mais não são que práticas de humilhação e de agressão física e psicológica de índole manifestamente fascista e boçal, indignas de uma sociedade civilizada e inconcebíveis em instituições de educação”.

Já há universidades que apertam o cerco às praxes e admitem instaurar processos disciplinares. Dentre essas seis universidades, também se encontra a UBI, proibindo as mesmas dentro do campus universitário.

E, se em vez de muitos dos mandões bacocos das tradicionais praxes, alguns de ar boçal, envolvendo-se em bebedeiras, pensassem o quanto lhes reserva de sacrifícios este pobre País, despedaçado, e, antes de mais, se direccionassem nas preocupações de contribuir para um Portugal melhor, certamente que no amanhã poderiam evitar as mãos à cabeça, agora tonta, de terem tirado um curso para nada.


(In “Notícias da Covilhã” e “Jornal do Fundão” de 03.11.2011)