30 de maio de 2018

A USURA E A IGREJA


Embora na origem usura signifique juro, o seu conceito jurídico é mais alargado. Em direito, a usura “é um crime cometido por quem, com intuito de obter um benefício patrimonial, conseguir que outra pessoa se obrigue a conceder-lhe uma vantagem pecuniária desajustada à contraprestação, aproveitando-se da necessidade, inexperiência, incapacidade ou dependência dessa pessoa”.

Para quê estar a falar, mais uma vez, de corrupção, de fraude, de roubo ou de furto? Deixemos estes substantivos descansados, estas quatro palavras, das mais referidas na comunicação social, num fartar desta linguagem, que vai da política ao futebol, do ensino à religião, num etc. alongado. Deixemos esta desgraça! Que tal desgraça não passa de um euromilhões para muitos, como nos temos vindo a aperceber. Até parece já não se poder dar sentido a outras formas honesta de vivermos neste planeta.

São casos e mais casos só no nosso país, que não acontecem somente nas grandes urbes, mas também no nosso meio, no nosso distrito, no nosso concelho, na nossa cidade.

Mas vamos ao assunto que dá força ao título desta crónica.

O combate da usura não foi uma luta exclusiva da Igreja, mas as autoridades católicas foram, sem dúvida, as que mais persistentemente se opuseram à usura, que foi a maior preocupação da Igreja medieval no domínio económico.

A condenação da usura prolongou-se por muitos séculos. Ainda hoje, embora raramente, surgem iniciativas visando limitar juros e lucros.

A preocupação muito antiga de proibir ou limitar a remuneração (juro) do mutuante explica-se pela natureza particular dos empréstimos em tempos mais recuados, geralmente destinados a fazer face aos gastos entre duas colheitas. Se o juro não fosse limitado, os camponeses ficavam à mercê dos usurários que podiam, com as suas exigências, levar os mutuários ao extremo de se venderem como escravos para pagar dívidas.

A legitimidade ou ilegitimidade do juro é, portanto, assunto que vem desde a Antiguidade e que teve, aos longo dos séculos, oscilações e posições muito diferenciadas.

Os filósofos gregos começaram por se manifestar contra o juro. Aristófanes desaprova-o, Platão (428 a 347 a. C.) e Aristóteles (384 a 322 a. C.) consideram o juro contrário à natureza das coisas.

Os Romanos tomaram posições idênticas. Catão (234 a 149 a. C.) equipara o juro ao homicídio, Séneca (3 a. C. a 65) e Plutarco (35 a 120) condenaram igualmente o juro.

Mas as posições dos filósofos nem sempre foram as definidas nas leis ou as seguidas na prática corrente. Mais tarde, a Lei das Doze Tábuas (449 – 479 a. C.) limitou o juro máximo dos empréstimos a 12% ao ano. É que houve mesmo épocas em que os especuladores romanos chegaram a cobrar juros de 48% ao ano. Marcus Julius Brutus (84 a 42 a. C.), líder político militar romano, um dos assassinos de Júlio César, foi um dos prestamistas que emprestava a este juro.

Foi a Igreja que moveu uma luta mais persistente e mais continuada contra a usura. Para a Igreja, usura era toda a operação que implicava o pagamento de um juro. Assim sendo, o comércio e a banca, intimamente relacionados com o juro, eram atividades interditas, ficando os mercadores e os banqueiros sujeitos à excomunhão, o que na Idade Média era uma penalização muito mais temida pelos cristãos do que seria mais tarde.

A Igreja baseava a sua posição nas Escrituras, tando do Antigo como do Novo Testamento. Dos textos do Antigo Testamento: no Êxodo, cap. XXII,25; no Levítico, cap. XXV, 35 a 37; no Deuteronómio, cap. XXIII, 19 e 20. No Novo Testamento: Evangelho de S. Lucas, cap. VI, 34-35. Até ao século IV, os Doutores e Chefes da Igreja mantêm esta posição, considerando o juro contrário à misericórdia e ao humanismo. Daí em diante a situação vai mudar e o que começa a ser condenação nos Concílios de Arles (314), Niceia (325) e Elvira (305 ou 306) é apenas um juro cobrado por clérigos. Só a partir do Terceiro Concílio de Latrão (1170) e de Lyon (1274) é que a repreensão seria também aplicada aos leigos. A Igreja partia de dois pressupostos: um ligado à noção de tempo e outro ligado à profissão de comerciante.

Quanto ao primeiro, considerava a Igreja que sendo o tempo pertença de Deus não era suscetível de ser vendido. E como o juro era associado à ideia de venda do tempo, tinha de ser condenado. O segundo pressuposto estava relacionado com o conceito em que eram tidos os comerciantes. Os pensadores cristãos consideravam o comércio como associado à fraude e à avareza, causador da luxúria e potencial fonte de corrupção e de deterioração das boas maneiras e das virtudes, fonte de contacto com mercadores e estrangeiros.

Os jurisconsultos da época terão especulado acerca dos contornos do conceito de usura, permitindo depois chegar às soluções que justificaram uma flexibilização das posições da Igreja. Com uma nova expansão económica e, com ela, um maior desenvolvimento do comércio, começam a surgir interrogações quanto à doutrina da Igreja nesta matéria e fazem-se ouvir as primeiras vozes discordantes. Para essa flexibilização contribuíram também as opiniões de São Tomás de Aquino quanto à usura e aos comerciantes. O motivo que mais determinou a mudança de posições da Igreja foi que os mercadores a financiavam largamente quando disso havia necessidade. É assim que, a partir de determinada altura, vemos os mercadores a serem considerados pela Igreja como bons cristãos e a serem dispensados da Comunhão, do descanso dominical e do jejum, por imperativos de profissão.

A Igreja acabou, de facto, por tolerar a usura e mais tarde admiti-la desde que não houvesse excessos. A perseguição da usura ainda se estendeu por muitos anos.

(In "Notícias da Covilhã", de 31-05-2018)











8 de maio de 2018

“RIPA NA RAPAQUECA”


Neste mês de maio do ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de dois mil e dezoito, como se escrevia nas atas municipais de outrora, já para além da Idade da Pedra e dos Metais, deu-me na tola de evocar expressões que, usadas pela minha avó materna, que partiu há muito quase centenária (o que hoje já não é novidade, mas naqueles tempos era), fazem momentos de humor entre amigos, quando sentados à mesa, principalmente de lautos apetites.
- “Anda côme, que isto não está ruim!”. Dizia a avó Rita. E, pelas bandas da Pousadinha algumas vezes a acompanhei ao curral (que isto de pocilga é mais para os tempos modernos) para “botar a vianda aos bácoros”, com o “Vaidoso” e o “Malhado” que eram também dos nossos melhores amigos, mas já esticaram o pernil, salvo seja, as patas, a contentarem-se com os dias de sol, descansando à sombra duma figueira, enquanto as galinhas e os marrecos aproveitavam o farelo que lhes davam para além do milho.  Cinco mil réis talvez não custasse um bácoro (e era preciso ver se não tinha grainha) mas o dinheiro não dava para tudo e era preciso pagar a décima, quando alguns também arrotavam com a taxa militar porque haviam ficado livres da tropa. Livraram-se, sim, porque até podiam ir parar a algum quartel longe da famelga que não fosse o Batalhão de Caçadores 2 da Covilhã, para já não falar dos desgraçados que foram obrigados a embarcar para a Índia, com Goa muito falada.
Eram os anos 50 da nossa era, mas do outro século. E entre “bota aí mais uma pinga que a comida não está somenos”, que isto de comeres e beberes é que nos dão vida, porque a própria vida são dois dias, havia por vezes aquele grito:
- “Esse bandido do Salazar é que é o culpado!...”. Lá levava um raspanete o atrevidote, que, um pouco mais avinagrado, lançava o bode expiatório da miserável féria que não dava sequer para comprar o milho painço para as pombas, quando até aos coelhos lhes chegou a malina.
E dizia o avisador cauteloso: - “Tu não sabes que por ter morrido o Carmona e lá estar o Craveiro Lopes, ainda há por aí muitos bufos?!... Ainda vais parar às grades!”
É que isto também não é para todos terem vivido em dois séculos.
E agora, já que os herdeiros bateram a bota, coube-nos a desgraça de termos de limpar o pinhal.
Mas, Ripa na Rapaqueca, porque fez agora treze anos, no dia 6 de maio, que faleceu o jornalista e locutor desportivo Jorge Perestrelo. Uma das figuras do jornalismo desportivo mais importantes da rádio portuguesa. São dele esta expressão que se tornou célebre, assim como “É disto que o meu povo gosta”, e “O que é isso, ó meu?” Relatou dois mil e um golos à boleia de gritos, de entusiasmo e de um ritmo que dava o dom de cativar todo e qualquer ouvido. Era aí, no golo, no momento em que o futebol celebra, que mais encantava. Como fez em 2004, no Estádio da Luz, quando viu Ricardo, um guarda-redes, a marcar a outro, ao da Inglaterra, quando a Seleção Nacional ganhou nos penáltis nos quartos de final do Europeu.
Jorge Perestrelo era assim mesmo: vivia e relatava tudo de alma cheia, como se de um adepto se tratasse. Fosse qual fosse a equipa. No dia anterior ao de se lhe calar definitivamente a sua voz, ainda estava de headphones na cabeça e de microfone na mão, a relatar, sem saber, o último golo da sua vida, o que Miguel Garcia marcou em Alkmaar, na Holanda, que apurou no último minuto o Sporting para a final da Taça UEFA. Aí, sim, não se cansou de gritar “Golo!”, antes de dizer “Te amo Sporting!”.
Usava a voz como um pincel para colorir o que via. Foi na SIC e na TSF onde passou largos anos da sua carreira, que celebrizou expressões como as atrás referidas. Quando via no relvado alguém a falhar um golo feito ou a fazer algum disparate, era comum questionar: “O que é isso ó meu?”, a que já aludimos.
Tinha um estilo emocionante, vibrante e muito alegre. A maneira de narrar o futebol, as palavras que inventou para descrever toda a emoção no futebol. E ainda se lhe conhecia mais esta expressão: “Eu com a minha barriguinha chegava e faturava”. Foram inúmeras as expressões evidenciando o seu fulgor.
Do 25 de Abril, do 1º de Maio e dos 50 anos de Maio de 68 já muito se falou. Voltamo-nos para política? Sobre os fantasmas do PS? Os venerandos José Sócrates, Manuel Pinho e quejandos que também participam na festa dos espertos?
Agora até temos a Coreia do Norte com a Coreia do Sul a procurarem a paz! Felizmente!... Que seja uma realidade!...
Mas desta vez não estou disposto a falar destes temas. Bonda! – Como dizia a minha avó, e Ripa na Rapaqueca!... como se expressava Jorge Perestrelo.
Entretanto, não posso deixar de me congratular com o facto do Papa Francisco ter nomeado bispo de Viseu, o padre António Luciano dos Santos Costa, que chegou a paroquiar na Covilhã e a exercer outras funções, pelo que formulo os melhores votos de sucessos pastorais, com muita pena de não passar a ser ele o Bispo da minha Diocese – a Guarda. O meu abraço amigo.




(In "fórum Covilhã", de 08-05-2018)