26 de maio de 2021

AQUELA BREVE TERTÚLIA COM O PROFESSOR ARNALDO SARAIVA


 

Esplanada do Centro Comercial da Estação, na Covilhã. Corria o dia onze de junho do ano da graça de dois mil e dezanove. A pandemia ainda não se fazia sentir em Portugal. Na mesa já me encontrava com os amigos comuns: Pedro Batista, natural de São Jorge da Beira, e Sérgio Saraiva, natural de Casegas. Um telefonema do professor para o seu primo Sérgio avisava que a sua deslocação do Porto retardaria um pouquinho o encontro. Afinal, sempre gostaria de conversar com o filho daquele que foi seu professor da primária em Casegas – o falecido José Martins Nunes que, posteriormente, fora funcionário da Biblioteca Municipal da Covilhã até à sua aposentação. Da parte da tarde teria de participar numa conferência no Fundão. Daí que, volvido algum tempo, surgem Fernando Paulouro Neves e Jorge Torrão.

A chegada do professor Arnaldo Saraiva surge com aqueles cumprimentos enlevados em sorrisos. Entre uns cafés e umas águas a conversa não se confina só nos principais interessados na memória do seu antigo professor da primária mas também na vivência de quase todos terem tido a sua passagem pelo Seminário do Fundão. A conversa, entretanto, é interrompida por um grupo de professoras aposentadas que se encontrava numa outra mesa e que o identificam. Entre elas, Maria do Céu Brás, de Casegas.

O professor doutor Arnaldo Saraiva descreve-nos então, dos tempos da sua infância, a alegre disputa dos jogos da bola, nas ruas de Casegas, onde alguns miúdos de então jogavam descalços, e, dentro da escola, naqueles longínquos anos de meados da década de quarenta do século XX, uma cena hilariante entre o prof. Martins Nunes e um dos alunos, seu colega da escola caseguense. Pedira então este, por duas vezes seguidas para ir à casa de banho. Perante a estranheza e o questionar do prof. Martins, o aluno responde com uma justificação em autêntico calão: “Da outra vez fui fazer ‘aquilo’… e agora vou fazer ‘isto’…” Longe estava eu de pensar que esta faceta contada há muitos anos por meu pai, durante o início do seu ensino no magistério primário, ainda seria recordada por um seu ilustre antigo aluno. Ele, Martins Nunes, que foi ainda professor da 4.ª classe, em Casegas, de três alunos que vieram a ser conhecidos dentre os padres jesuítas – José Gaspar Pires e António Costa e Silva. Também outro seu aluno, nesta classe – José de Almeida Geraldes, foi cónego sobejamente conhecido, chegando a ser diretor do Notícias da Covilhã.

Como algumas vezes referi, nasci na Pousadinha, freguesia de Aldeia do Carvalho, mas estive na iminência de nascer em Casegas. Para aqui veio o prof. Martins com minha mãe, e o seu primeiro rebento – Rita Fátima.  Meu pai, natural de Bogas de Baixo, não pôde continuar os estudos no Seminário do Fundão, tendo assim optado pelo magistério primário, sendo colocado como regente escolar na Casa do Povo do Bairro do Rodrigo, na Covilhã, num curso noturno que se iniciou no dia 07/01/1938. Depois continuou cumulativamente com o Posto Escolar Masculino da Borralheira. Seguiram-se comissões de serviço na Escola Central Masculina da Covilhã, em 1944, e, no ano seguinte, em Aldeia do Carvalho. De 1945 a 1948 foi colocado em Casegas.

Aproximando-se o meu tempo para vir ao mundo, meus pais não queriam que nascesse em Casegas por estar longe dos familiares. Segundo me contaram, em Casegas, o professor Octávio e a sua mulher, Mariana, assim como o padre Nicolau, o Zeca Craveiro e a mulher, prof. Agostinha, ainda lhes sugeriram para eu ali nascer. Não querendo ali ficar, lá foi a bagagem no dorso de uma égua, e os quatro, nos quais se contavam meu pai, minha mãe, a minha irmã, de colo, e eu ainda no ventre de minha mãe, num carro de bois, atravessando a ribeira até ao Ourondo, onde pernoitaram em casa de familiares; depois foi tomar a camioneta para Aldeia do Carvalho.

As memórias perduram e esta com o amigo professor doutor Arnaldo Saraiva reforçaram o interesse nas vivências por onde andámos e algumas raízes que ficaram.

Foto: O professor Martins Nunes com a filha mais velha ao colo, Rita Fátima, e a esposa, com o segundo filho, João.


(In Jornal "Notícias da Covilhã", de 27 de maio de 2021)

19 de maio de 2021

NA RESILIÊNCIA DO SEMANÁRIO MAIS ANTIGO DA REGIÃO

Nos tempos que correm não é fácil manter um periódico a circular sem alguns períodos de inquietações. Se agora foi a pandemia que afetou também o jornalismo, já antes surgira a questão do digital com aquele receio latente em detrimento do jornal em papel. Não nos podemos desviar da futurologia e, por isso mesmo, todos os órgãos da comunicação social souberam aproveitar as oportunidades dos momentos. É numa conjuntura de trabalho híbrido que o jornalismo hoje assenta, verificando-se que já não são só os grandes títulos da imprensa que a tal aderiram como também aqueles que nos são de proximidade – os regionais.

Felizmente que há 47 anos vivemos o estado da liberdade de imprensa, sendo certo que, segundo o DN, “num contexto de degradação geral, Portugal surge nos 12 países que a organização considera terem ambiente favorável ao jornalismo”, encontrando-se o nosso país no 9.º lugar, com o trio da liderança na Noruega, Finlândia e Suécia.

Desde o primeiro jornal português; de há 370 anos, que ajudou D. João IV a consolidar o poder em 1640, e que dava pelo nome comprido de “Gazeta, em que se relatam as novas todas, que houve nesta Corte, e que vieram de várias partes do mês de Novembro de 1641”; que, até à atualidade, subsistem os mais antigos, tendo já alguns atingido o centenário. Todos eles foram parte importante na história do nosso país, sendo que muitos dos regionais, por este país fora, foram e são de primordial importância pela sua “teimosia” em vincar as necessidades das suas regiões.

Se não fosse esta proximidade da imprensa regional, os governos sentir-se-iam menos solicitados às tarefas regionais e, consequentemente, pelo não abanão a que não seriam votados. É sempre necessário insistir naquela de que “água mole em pedra dura tanto dá até que fura”. Muito se deveu às enormes quantidades de tinta que moldou os jornais para que melhoramentos acontecessem ou necessidades existentes se dissipassem nas regiões. Mas também por via do surgimento da era digital a partir de 1986, com a Internet em Portugal.

Muito poderia servir de enumeração de acontecimentos surgidos, ao longo da vida de um jornal, mas, cá por esta região, exemplifiquemos a ação da imprensa regional para que saísse da letargia a renovação e reabertura do troço da linha da Beira Baixa, entre a Covilhã e a Guarda e vice-versa, ocorrido no passado dia 2 de maio.

O que poderei agora dizer sobre a longevidade do “Notícias da Covilhã” (NC), nos seus 102 anos da existência com este título, e 108 da sua própria existência com a designação de “A Democracia”?

Tenho a honra e o prazer de escrever neste Semanário desde 1964. Conheci-lhe quatro Diretores, para além do atual. Com eles convivi. Efetivamente, o NC é o semanário mais antigo da região, e, conforme muito já escrevi sobre o mesmo, as suas páginas narram parte importante da história da Covilhã.

Longa vida para o NC porque a sua voz é imprescindível pelo seu prestígio jornalístico.

(In "Notícias da Covilhã", de 20 de maio de 2021)


12 de maio de 2021

EM LIBERDADE

 

Os dias em que mais se falou em liberdade e trabalhador já lá vão, na espuma do tempo, esta ainda dominada pelos números da pandemia e pelos resultados provisórios do processo mais mediático da justiça portuguesa. Certo é que, quanto à doença infeciosa, já quase é um tormento ouvir-se falar de epidemiologias, virologias, pneumologias, infeciologias, e outras “logias”. Mas é indubitável que se torna necessária a literacia neste domínio.

Se o 25 de Abril será para sempre memorizado como o Dia da Liberdade, quer queiram quer não, já o 1º de Maio se repercute no Dia do Trabalhador. Sobre este último não deixa de ser confrangedor, no estudo divulgado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, o retrato que se apresenta sobre a pobreza em Portugal: 17,2% da população portuguesa, o que significa 1,7 milhões de pessoas, vivem em risco de pobreza. Sendo certo que este estudo se baseia em dados de 2018, não é difícil prever que estes números já terão sido superados na atual situação. E continuarão a subir. Tal como Eça de Queirós referiu, em Os Maias, “para aí apareceu o Satanismo, o Naturalismo e o Bandalhismo, e outros esterquilínios em ‘ismo’…”

Num artigo lúcido e acutilante de Joana Amaral Dias, in DN, refere o distanciamento de tantos da vida partidária e da intervenção pública face ao delapidar do bem comum por “um punhado de sociopatas e videirinhos cujo único objetivo é servirem-se a si mesmos”. São às resmas neste país de brandos costumes, à beira-mar plantado, sobejamente conhecidos, pelo que me dispenso de aqui nomear alguns, pois não caberiam nesta página. Mas não posso deixar de nela fazer referência a uma afirmação da diretora do DN, Rosália Amorim, de que “se o enriquecimento ilícito preocupa os portugueses, julgo que o empobrecimento ilícito preocupa ainda mais”.

Voltando ao dia da liberdade, Leonete Botelho, in Público, realça o consenso neste 25 de Abril – palco constante de disputas políticas e pretexto para frequentes ajustes de contas com a história – em torno do discurso do Presidente da República: “No dia da liberdade, Marcelo Rebelo de Sousa, filho de um governante do império e um dos artífices da constituição democrática, quis pôr o dedo na ferida da guerra colonial que começou há 60 anos e dali partiu para um apelo à reconciliação com a história”. – “Não há, nunca houve, um Portugal perfeito”. E o Parlamento aplaudiu o Presidente de pé. Alguns historiadores, como Manuel Loff, no entanto, divergiram e criticaram essa visão reconciliadora, nomeadamente no que concerne ao facto de Marcelo, em 2017, no Senegal, ter elogiado a precocidade portuguesa na história da abolição da escravatura, pretendendo que Portugal a teria abolido em 1761, pois não só sabia que o Estado português o não fez antes de passados mais de cem anos.

Nas palavras de Fernanda Câncio, in DN, num notável discurso, o presidente abordou enfim o passado como ferida, pedindo que saibamos assumir o olhar dos colonizados e entender que há várias histórias na história, incluindo a sua, filho do último ministro das colónias (Baltazar Rebelo de Sousa), príncipe imperfeito deste regime e do outro. Uma mensagem claro escuro como o país que interpela. “Nas leis, os negros classificados com ‘indígenas’, ou seja, a maioria da população de Moçambique, Angola e Guiné, eram excluídos da cidadania e tratados como sub-humanos”.

Dois dias após o 25 de Abril, pouco se falou duma efeméride que merecia destaque – os 500 anos da morte do navegador português Fernão de Magalhães, nas Filipinas, às mãos de Lapu Lapu, o chefe dos guerreiros que escusadamente Magalhães desafiou, em 27 de abril de 1521.

Falta cumprir uma liberdade, refere Rosália Amorim – a de movimentos. A Avenida da Liberdade, em Lisboa, encheu-se de portugueses para assinalar o dia da Revolução dos Cravos. Eram pessoas a mais para distâncias a menos. A pandemia ainda não desapareceu e os portugueses não atingiram a imunidade de grupo. A liberdade não é uma justificação para tudo, nunca foi, pelo que o melhor é aguardar, manter a prudência e não correr o risco de morrer na praia.

Quem Me Dera! – Termino com parte da canção de Mariza: “Quem me dera/Abraçar-te no outono, verão e primavera/Quiçá viver além uma quimera/Herdar a sorte e ganhar teu coração”.

(In "Jornal fórum Covilhã", de 12-05-2021)

 

5 de maio de 2021

DE ONTEM PARA HOJE

 

Um sonho de alguém que, como muitos do presente, ainda vão andando por aí.

Ontem ainda acariciava o tempo. E vivia a noite sem se importar de marcar os seus dias. Esses momentos de um tempo que se dissipava na contagem decrescente da sua vida. Foram mil e um projetos. Muitos deles não passaram dum contínuo sobrevoar pelo espaço sideral. As milhentas esperanças juntaram-se como que um bando de pássaros seguindo viagem para outros rumos, em mudança de estação. E ficou impávido. Esperanças então perdidas numa perplexidade constante de agir contra os ventos contrários. Que por força duma visão obscura os seus olhos, procurando o Céu, tinham, no entanto, o coração imanado na terra.

Ontem ainda se regalava com o tempo. Pensando que a vida lhe iria sempre sorrir, esbanjava esse mesmo tempo, acreditando que o podia comandar. E para que lhe pudesse imprimir a sua ordem, numa tacanhez pensante, pôs-se a correr, pensando que ia na sua frente, que o tinha ultrapassado. Começou a sentir um cansaço em demasia. Ignorou factos, mesmo do passado recente, pensando que se conduzia, por si próprio, ao futuro.

Precedia do seu egocentrismo. Rejeitava qualquer conversa sobre quem lhe aconselhava a meditar naquelas névoas que persistiam em afligir os sensatos. Permutou uma alteração da sua conduta por sorrisos irónicos. Da qual até opinava que ele queria o melhor. E, assim, por si o mundo era criticado num desplante em exuberância.

Ontem ainda não vislumbrava os erros para onde se ia direcionando. Mas, num ápice, no acordar dum sonho, não aquele que comanda a vida, sobressaltou-lhe o espírito. Tivera uma juventude insolente, atingiu o tempo de homem feito, não acompanhou o ritmo, se lancinante, também gratificante, entre esses ventos e marés da própria vida. Perdeu tempo, tempo desregrado.

A cometer loucuras, no fundo nada lhe deixa para a vida no adir dos anos, dos quais nem deu conta que iam passando. Mas não deixou de acreditar no que viu no seu espelho que lhe mostrou várias rugas no rosto, que não conseguiu disfarçar.

Ontem ainda mantinha a sua incredulidade em tudo, naquele seu indómito ceticismo.

E, assim, na morbidez do seu pensamento, naquele enfado dos continuados confinamentos, não ligou, não se importou com o que diziam, a saturação tornou-se mais do mesmo para si.

O bicho mau, que diziam existir, mas que ele jamais viu, ou sentiu, para ele não contava. Não estava no seu íntimo tapar a cara e o nariz, fugir das pessoas, deixar de se animar na copofonia.

Ontem ainda, quando acordou dum novo sonho, tinham-lhe dito que tivera uma grande sorte. Estava a sair dos cuidados intensivos. Só se lembrou, e agora indelevelmente, depois de estar fechado em quatro paredes e não reconhecer ninguém, de que, afinal, para que serviu todo este seu comportamento? Esta lição ficou-lhe bem estudada, para toda a vida! Afinal, seus amores morreram antes de existirem, e seus amigos partiram e não mais retornarão. Por sua culpa criou o vazio em torno de si mesmo.

Gastou toda a sua vida, entre o melhor e o pior, baldando-se do melhor. Já não lhe rodeiam sorrisos e verte-se em lágrimas de arrependimento.

Ontem foram aqueles seus nefastos sonhos, como castelo de cartas; hoje vive no seu isolamento que insensatamente criou.


(In "Notícias da Covilhã", de 06-05-2021)