30 de julho de 2004

EMBANDEIRADOS

As gentes andavam cabisbaixas, deprimidas, duma melancolia por vezes aterradora. Nunca tanto se olhou para o chão. Nalguns casos até parecia que andavam a contar as pedras da calçada.
De quando em vez lá se ia coçando a orelha, ou melhor, contactando o invisível; aí, surgiam por vezes gestos exuberantes, risos, vozes de negócios programados, concretizados ou frustrados, do salário que já tardara, da factura que não foi paga, mas também um cumprimento alargado ao amigo ou familiar, um recado não recatado mas bem apalavrado.
A retoma tarda, o Zé-Povinho, farto de esperar, inspira-se de novo em Rafael Bordalo Pinheiro e faz o manguito.
Até que, depois de tanto berrar por ver os estádios que andaram a construir com o nosso dinheiro, com tantas pessoas na pobreza, na miséria, no desemprego, e com o acréscimo de resultados pouco conseguidos, e não convincentes, na preparação para o Euro, eis que surge o primeiro dia.
A “scolarização” não foi palavra vã, e o brasileirão, inspirado nas suas ideias, é um mobilizador e transmite esperança. Com as suas palavras de ordem, as gentes das cidades, das vilas, das aldeias ou burgos revestiram-se das cores nacionais, cores físicas mas também as cores dum forte ânimo, dum sentimento de dar o pontapé de saída, de raiva na malfadada crise.
Bandeiras, muitas bandeiras, nas janelas, tanto voltadas para as ruas principais como para qualquer travessa ou beco; nos automóveis ou servindo de lenço na cabeça, à cintura, ao peito e sei lá que mais!
Jamais isto foi visto em tempo algum, nem mesmo na época dos “magriços”, há 38 anos, onde outro brasileiro, com um consagrado seleccionador português, nos dava enormes alegrias. Nessa altura, em tempo de guerra no Ultramar, era a época das vedetas Eusébio, Coluna, Torres, Simões, José Augusto, Hilário, Vicente, José Pereira, entre tantos outros.
Hoje, os meus netos, já sabem o Hino Nacional, os nomes de todas as vedetas, do Figo, Rui Costa, Ricardo, Nuno Gomes, todos eles!
Os jogos do Euro 2004 foram seguidos por 2,5 mil milhões de pessoas, no total, com a final vista por cerca de 130 a 150 milhões, com uma audiência média feminina de 30%, é o que nos diz a comunicação social.
Apesar de tudo, um estado de espírito bastante diferente, para melhor, daquele que se viveu em 1966, também em tempos difíceis, de alguma penúria, assolados com a Guerra do Ultramar.
Recorda quem escreve estas linhas, o célebre 0-3 do Portugal – Coreia, que o “pantera negra” ajudou a dar a reviravolta para 5-3, visto da esplanada do Primor, quando foi, com alguns Colegas, a casa do Prof. Passas – o mestre Passas, que morava num dos andares do mesmo edifício, saber o resultado do exame de Dactilografia, pois era o único que restava para podermos fazer o exame final de Aptidão Profissional, para se concluir, na sua plenitude, o Curso Geral do Comércio. Era o João Nunes, o Manuel José Torrão, o Nina Duarte, o Tomé, de Abrantes.
Mas a festa de Junho de 2004 foi boa, foi feita contra a adversidade, contra o medo. Andavam todos em pânico. Valeu a pena esta transformação momentânea, que ainda perdura, esperando agora pelos Olímpicos da Grécia.
Esquecemos o termos sido os primeiros a perdermos o jogo inaugural, como anfitriões, contra a Grécia; e, bem assim, contra a mesma selecção (que raio de sina!) a sermos igualmente o primeiro anfitrião a cair na final. Todas as anteriores selecções que jogaram em casa atingiram o jogo decisivo levantando o troféu.
Os brasileiros, como povo alegre, apesar das dificuldades e muitas vezes excessivo nas suas exaltações, vieram trazer, através de Felipe Scolari, a alegria que já não existia, ao povo português, que já parecia ter recuado ao tempo do povo de marinheiros, habituado outrora à nostalgia, ao hábito dos fatos pretos, pelo infortúnio.
No fim de contas, a festa do futebol aliviou a tristeza. Descrito pela UEFA como “o melhor Europeu de sempre”, houve fair play, muito civismo e bom convívio entre os milhões de adeptos que se deslocaram a Portugal.
O Euro 2004 correu muito bem naquilo que mais importava para a imagem de Portugal: organização, segurança, acolhimento de estrangeiros. Desportivamente foi um campeonato bem disputado, sem “casos” de arbitragem, com desafios emocionantes e vencedores inesperados.
A selecção portuguesa não ganhou mas foi bem mais longe do que se esperava, depois dos decepcionantes jogos de preparação e do jogo inaugural.
Resta-nos agora, o jogo futebolístico da política em que a sorte de Portugal foi decidida por uma grande penalidade a cargo do Presidente da República, face a uma falta, na grande área, por Durão Barroso, por ter rasteirado os seus concidadãos, após ter recebido o cartão amarelo dos portugueses nas eleições para o Parlamento Europeu.
Desta rasteira, em vez de ser o povo a mostrar-lhe o cartão vermelho, foi o próprio que o mostrou a si mesmo, mas, desta vez, saiu do rectângulo político a rir-se.


(In “Notícias da Covilhã”, de 30/07/2004)