12 de fevereiro de 2014

VIVÊNCIAS DE OUTROS TEMPOS

Greves proibidas em Portugal. Vive-se um regime de ditadura. Falar contra Salazar é um perigo que espreita à esquina, não esteja por ali um informador da PIDE. Tempos de miséria. Quando se recebem os salários, pouco dá para as despesas. Nas casas particulares não há televisões. Quanto muito, uma telefonia. A rapaziada joga na rua com uma bola de farrapos. E brinca ou troca cromos de jogadores de futebol. Outros, ao berlinde; ou com um arco e um guiador improvisado de arame, correndo com ele pela rua fora. Lá surge um qualquer anunciando que lhe saiu a bola de cauchu, nos rebuçados do concurso. As raparigas brincam, nos pátios ou à porta das casas, jogando às pedras ou saltando à corda.
Os mancebos idos às sortes e incorporados no “Batalhão de Caçadores 2” veem que o seu pré nem sequer dá para o tabaco. Os homens passeiam com os amigos, aos domingos, e visitam as capelinhas (tabernas), já que as mulheres têm o destino em casa, cuidando das tarefas domiciliárias, depois de terem vindo da missa. O Sporting da Covilhã singra pelos caminhos da Primeira Divisão, e, então, o futebol é um pouco do tempo onde se desanuvia do contacto com os teares. Há os operários (homens do fato macaco) e os empregados (homens do fato e gravata), sendo que os salários de ambos fazem a diferença.
Fumam-se “Definitivos e “Provisórios”, enquanto alguns, mais antigos, nas lides do campo, desfiam o tabaco de onça; outros o “Português Suave” ou “Três Vintes”. Só mais tarde chegam os cigarros com filtro: Sagres, Porto, SG Gigante, SG Ventil. A monoindústria – lanifícios - sustenta a cidade. Formigueiros humanos à saída das fábricas. Dos arredores, os agricultores vão à Covilhã pagar a décima.
Muitos bebés nascem em casa. A Sr.ª Lucinda faz de parteira. Dá uma ajudinha nas aldeias e lugarejos. Onde não chegam os automóveis chega o Manuel do cavalo. Vende roupas aos domingos. E Celeste Ranito faz chinelos. Vende também pão cozido a lenha. O homem da carqueja vem com o burro carregado porque o inverno está chegado. No estio, o homem com a palha para encher os colchões que carecem de substituição. Oportunidade também para o homem que chega e cola pratos e alguidares de barro partidos. Mais adiante, o amolador com a sua bicicleta e o aviso caraterístico. Quem quiser afiar facas, tesouras, e também dar o guarda-chuva para substituir as varetas, é de aproveitar.
Durante a semana, é de dar à sola aquele que anda ali a construir uma casa ou reparar um pardieiro sem licença municipal, ao avistar, ao longe, os dois homens da GNR, com as “mausers” ao ombro. O gaseado solta gritos contra Salazar. Não há problema com ele. Os transeuntes não se riem. O vizinho que está no hospital já faleceu, e, vai daí, há que arranjar o avisador, de bastão na mão, percorrendo casa a casa a dar a infausta notícia. Ladram os cães. O funeral, a pé, segue para a igreja. Depois, para o cemitério. A carreta é puxada por quatro ou mais homens. No regresso, chegam contentes a casa. Visitaram várias “capelinhas” que lhes sanou a sede nas suas goelas.
Pela Covilhã, a carroça do Painço faz os transportes das anilinas para as fábricas. Pelas seis da manhã já chiam as rodas dos carros de bois com os produtos agrícolas para a praça. No Pelourinho, os ardinas vendem os jornais do dia, e gritam anunciando “O Século”, “A Bola”…
Aos domingos, dias santos, ou mesmo durante a semana, surge o “Zé do pífaro” (José Januário), de Unhais da Serra, irmão do padre António, de Vale Formoso. Várias gaitas debaixo do braço e uma sacola de serapilheira às costas. Conversador. Não pede nada mas sempre vai recebendo alguma coisa. Outros surgem à porta das casas e, de imediato, começavam a rezar o Padre-Nosso, em voz alta, à espera duma esmola, para a sacola que trazem às costas.
Aos domingos, à saída da missa da Igreja de Aldeia do Carvalho, o velho António Vicente, coxo, de açafate na mão, depois de ter vindo da taberna do Zé Patareco, leiloa os cabritos a favor da igreja paroquial.
O Padre António de Oliveira Pita, terminada a Eucaristia, monta-se na moto. Rapidamente avança para a Igreja de S. José, nos Penedos Altos.

Corriam os anos da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil novecentos e cinquenta.

(In "Notícias da Covilhã", de 13.02.2014)

11 de fevereiro de 2014

PRAXISMO, SIM OU NÃO?

Tema de conversa de há umas semanas a esta parte, com páginas inteiras de jornais no enfoque do assunto; os noticiários dos canais televisivos dando ênfase ao mesmo, os online repletos de comentários nos facebooks. Debates interessantes na TV, sim, senhor, destacando-se o programa Prós e Contras, no Teatro Gil Vicente, em Coimbra; reportagens, documentários, entre notícias e artigos de opinião em vários jornais.
O tema das praxes até terá dado algum jeitinho aos homens da governação pois que, pelo menos durante alguns minutos não se falou dos males da mesma, mas, antes, se substituiu a crise financeira pela crise de valores.
Apesar da evidência do calor do momento, não tenho memória de tantas críticas ao fenómeno da praxe. A quase intocável tradição académica começou a ser posta em causa.
Só agora, depois das mortes no Meco, e mesmo depois de outras mortes e incapacidades permanentes para os praxados terem acontecido, ao longo dos anos, em memórias dissipadas no tempo para a maioria, mas não para as famílias das vítimas, é que se levanta o véu manchado pelas humilhações.
Por que raio alguém tem de ser humilhado, rebaixado e até mal tratado quando ingressa no Ensino Superior?
Não é através de rituais humilhantes que o aluno é integrado no seio escolar. Nem todos gostam ou apreciam ser expostos perante o público.
E não venham cá com a treta de que só é praxado quem quer, e que os caloiros se podem recusar. Será que a recusa permite aos caloiros usarem o traje e a participação nos eventos académicos?
É uma prática antidemocrática pois assenta na submissão, ainda que voluntária, de uns tantos, a dois ou três palermas que impõem situações infantis e ridículas. Muitos dos que impõem as praxes se se vissem ao espelho veriam o papel ridículo que fazem quando se põem a gritar histericamente para os caloiros.
Critica-se a praxe por os praxados terem necessidade de entrar neste jogo de bullying e bebedeiras para se sentirem incluídos e aceites.
Já muito se falou sobre este tema e muito do que se venha a dizer é como chover no molhado, pois que praxe, polémica e violência é uma história de séculos. Em 1727, devido à morte de um aluno no ano anterior, D. João V proibiu as investidas feitas pelos veteranos. E determinou que “a qualquer estudante que ofender outro com o pretexto de novato, ainda que levemente, lhe sejam riscados os cursos”.
As contestações às praxes jamais deixaram de existir e já o antigo Presidente da República, Teófilo Braga, dizia que os estudantes do seu tempo faltavam às aulas para fugir à praxe. Em 1903, Eça de Queirós e Ramalho Ortigão assinaram, em conjunto com outros estudantes, um “manifesto anti praxe”.
Já num artigo que publiquei num semanário desta região, em 3.11.2011, sob o título “Praxes Académicas” eu dizia “Se muitos dos pais que, com sacrifício, lá longe, suportam as despesas com os seus filhos, vissem o espetáculo em que os mesmos se envolvem, muitos deles contrariados, num uníssono de asneiras e atitudes obscenas, com bebedeiras pelo meio, a que são forçados, certamente se sentiriam constrangidos”.
De facto, segundo o jornalista José Manuel Fernandes, no Público de 31 de janeiro, “Vivemos numa sociedade onde a boa educação é vista como um coisa antiquada, onde a ideia de cavalheirismo é vilipendiada como sendo reacionária, onde o insulto grotesco é mais depressa visto como um exercício de liberdade do que como um abuso”.
Se os governos cumprissem com o legislado e punissem os infratores, muitas situações catastróficas e de vias judiciais se evitariam. Bastaria que o Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior, através da Lei n.º 62/2007, de 10 de setembro, na sua alínea b) do n.º 4 do artigo 75º, em que se refere que “constitui infração disciplinar dos estudantes a prática de atos de violência ou coação física ou psicológica sobre outros estudantes, designadamente no qudro das praxes académicas”, fosse cumprido e se agisse.
Sem dúvida que quem praxa com violência não deverá ter lugar na universidade, seja ela pública ou privada.
E, sobre este assunto, apraz-me tão só memorizar o que António Aleixo escreveu um dia: “Há tanto burro a mandar em gente de inteligência que às vezes fico a pensar se a burrice não será uma ciência”.

(In "fórum Covilhã", de 11.02.2014)