Naqueles dias, os chefes do
povo, os anciãos e os escribas, vendo a firmeza de Pedro e de João e
verificando que eram homens iletrados e plebeus, ficaram surpreendidos (Livro
dos Actos dos Apóstolos 4,13-21).
Era uma vez… Assim se
iniciavam muitas das leituras da Instrução Primária, do meu tempo dos anos
cinquenta do século passado, ou se começavam algumas redações.
Se os apóstolos Pedro e João,
que eram iletrados, mas pelo poder do Espírito Santo a inspiração divina
deu-lhes o “doutoramento”, já nos tempos de outrora, que eram os nossos, apesar
da falta dos meios tecnológicos, naquela altura, em relação aos tempos atuais,
havia a aquisição de um saber que não era assim facilitado, em contraste com os
dias de hoje.
Escrevia-se da mesma maneira
(acordo ortográfico de 1945) embora dos nossos pais e avós, os poucos que não
eram iletrados, lá víamos escrever pae e
mãi, e, nalgumas publicações já
amareladas pelo tempo, as palavras pharmácia
ou Covilhan (Acordo de 1911).
E se seguirmos com atenção
alguma parte do jornalismo, a dificuldade em entender boa parte do vocabulário
que se produz e difunde em Portugal é evidente. Nisto, o jornalista Adelino
Gomes tem chamado à atenção para esse facto. É que o cidadão comum desconhece o
significado da maioria das palavras com que as notícias são apresentadas em
público.
Vejamos, por exemplo, na rede
de transportes públicos frases como “é obrigatório obliterar o bilhete”. O
mesmo acontece nas bulas dos medicamentos assim como nas informações de
diversos serviços como os seguros, bancos, eletricidade, entre outras, para já
não falar do modo arrogante como as finanças se dirigem aos contribuintes.
É certo que a sociedade se
tornou mais complexa e se especializou em vários domínios, cada qual com a
tendência do seu próprio linguajar. No entanto, quem tem a responsabilidade da
informação para o público deve ter a capacidade de traduzir os conceitos e os
termos técnicos, como, por exemplo, as palavras e expressões em inglês.
O conjunto de programas de
simplificação a que se designou chamar simplex,
mormente nos serviços públicos, é de grande utilidade. Obviamente que também
deve envolver a simplicidade e clareza da linguagem utilizada pelos
funcionários.
Que isto de linguagem, noutra
vertente, por vezes são aquelas bocas que saem dos políticos que dão azo a
aproveitamento, quantas vezes duma forma exagerada, para que no jornalismo se
gaste muita tinta.
Vejamos o caso mais recente
das “salutares bofetadas” oferecidas pelo ex-ministro da Cultura, João Soares,
ao crítico literário Augusto M. Seabra e ao colunista Vasco Pulido Valente, que
foram um tiro no pé para a sua saída do executivo governamental. Isto faz-me
lembrar o tempo das reguadas, na instrução primária (hoje ensino básico). Tive
um professor, na segunda classe – professor Raul – no Asilo, em que as reguadas
eram dadas no rabo, fazendo ajoelhar os alunos. Resultado: uma acusação de maus
tratos, feita por um pai, levou a que o professor fosse obrigado a ir para a
reforma compulsiva.
Mas já antes, em 1993, uma
piada de mau gosto do então ministro do Ambiente, Carlos Borrego, sobre a morte
de 25 doentes sujeitos a hemodiálise que ficaram intoxicados em Évora, levou
também à sua demissão do governo de Cavaco Silva. Ainda neste ano, Mário Soares
era Presidente da República e fazia uma Presidência Aberta por Lisboa. Nessa
altura fazer o trajeto entre Vila Franca de Xira e a capital era um tormento
rodoviário de “pára-arranca”. Mário Soares decidiu minorar o problema indo de
autocarro com uma comitiva, mas sem batedores, nem escolta policial. A dada
altura, um elemento da GNR prepara-se para abrir trânsito ao autocarro, o que
não correspondia aos objetivos de Soares. Num impasse, referiu-se ao guarda
como “gajo indesejável” e depois passou à ação. “Abre-me aqui uma janela”,
disse Soares, acrescentando depois: “Ó senhor guarda, desapareça. Diga ao seu
colega para desaparecer. Não queremos polícias”. Em 1994, o então presidente
regional da Madeira, Alberto João Jardim, em dois artigos de opinião, descreveu
o socialista António Fernandes Loja como “homenzinho”, “ordinarote” e
“tira-casaca”; e ainda: Loja era “tão pirado que não vê as próprias grosserias
e descobre-as aos outros”, “ao ler isto caem-lhe mais três dentes, dois de
raiva e um de senilidade”. Em 1995, o falecido Carlos Candal (PS) lançou o
“Breve Manifesto Anti-Portas em Português Suave”. Portas (CDS) é descrito como
“garnisé cantante” e Pacheco Pereira (PSD) como “pavão de mono caído”. Mais
recentemente foi o ex-ministro da Economia de José Sócrates, Manuel Pinho, que
saiu do seu primeiro governo depois de ter feito um gesto impróprio. Em pleno
debate no Parlamento, em resposta à bancada comunista, juntou os dedos
indicadores à cabeça a imitar cornos, tendo a cena sido captada pelas câmaras
da televisão. Ainda podemos recordar, em 2010, a vez de José Sócrates utilizar
termos inapropriados. No Parlamento, Francisco Louçã disse que o
primeiro-ministro “estava mais manso”. Sócrates não gostou e disse, embora não
se tenha ouvido: “manso é a tua tia, pá”.
Pois é, segundo um estudo
divulgado em Lisboa, o perfil médio de escolaridade dos portugueses adultos é
“bastante baixo” a nível da Europa e com pouca vontade de melhorar.
No dia em que se comemorou a
língua portuguesa em todos os Estados-membros da CLP, voltou a reinstalar-se na
sociedade portuguesa, duma forma definitiva, a discussão em torno do Acordo
Ortográfico de 1990 (AO). Foi o próprio Presidente da República que relançou a
discussão em torno do AO, mas ninguém prevê o seu seguimento. Os opositores ao
mesmo estão divididos entre os que o querem rasgar e os que o admitem melhorar.
Certo é que a reintrodução do
tema pelo Presidente da República obriga a sociedade civil a uma reflexão.
O linguista covilhanense, Malaca
Casteleiro, natural do Teixoso, que participou há 30 anos nos primeiros
encontros que deram origem depois ao acordo de 1990, desvaloriza as críticas.
Depois dos computadores já
estarem preparados a praticar o novo acordo ortográfico, será que vamos voltar
atrás? E as crianças e jovens estudantes como vão adaptar-se a este imbróglio entre
o antigo e novo Acordo Ortográfico?
Sabemos que o AO tem erros
crassos que até os seus apoiantes reconhecem, sem que se tenham preocupado em
os corrigir nestes anos. Isto, sim, é que parece mesmo uma geringonça.
(In "fórum Covilhã", de 10-05-2016)
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