10 de maio de 2016

DO SIMPLEX DA LINGUAGEM AO (DES)ACORDO ORTOGRÁFICO

Naqueles dias, os chefes do povo, os anciãos e os escribas, vendo a firmeza de Pedro e de João e verificando que eram homens iletrados e plebeus, ficaram surpreendidos (Livro dos Actos dos Apóstolos 4,13-21).
Era uma vez… Assim se iniciavam muitas das leituras da Instrução Primária, do meu tempo dos anos cinquenta do século passado, ou se começavam algumas redações.
Se os apóstolos Pedro e João, que eram iletrados, mas pelo poder do Espírito Santo a inspiração divina deu-lhes o “doutoramento”, já nos tempos de outrora, que eram os nossos, apesar da falta dos meios tecnológicos, naquela altura, em relação aos tempos atuais, havia a aquisição de um saber que não era assim facilitado, em contraste com os dias de hoje.
Escrevia-se da mesma maneira (acordo ortográfico de 1945) embora dos nossos pais e avós, os poucos que não eram iletrados, lá víamos escrever pae e mãi, e, nalgumas publicações já amareladas pelo tempo, as palavras pharmácia ou Covilhan (Acordo de 1911).
E se seguirmos com atenção alguma parte do jornalismo, a dificuldade em entender boa parte do vocabulário que se produz e difunde em Portugal é evidente. Nisto, o jornalista Adelino Gomes tem chamado à atenção para esse facto. É que o cidadão comum desconhece o significado da maioria das palavras com que as notícias são apresentadas em público.
Vejamos, por exemplo, na rede de transportes públicos frases como “é obrigatório obliterar o bilhete”. O mesmo acontece nas bulas dos medicamentos assim como nas informações de diversos serviços como os seguros, bancos, eletricidade, entre outras, para já não falar do modo arrogante como as finanças se dirigem aos contribuintes.
É certo que a sociedade se tornou mais complexa e se especializou em vários domínios, cada qual com a tendência do seu próprio linguajar. No entanto, quem tem a responsabilidade da informação para o público deve ter a capacidade de traduzir os conceitos e os termos técnicos, como, por exemplo, as palavras e expressões em inglês.
O conjunto de programas de simplificação a que se designou chamar simplex, mormente nos serviços públicos, é de grande utilidade. Obviamente que também deve envolver a simplicidade e clareza da linguagem utilizada pelos funcionários.
Que isto de linguagem, noutra vertente, por vezes são aquelas bocas que saem dos políticos que dão azo a aproveitamento, quantas vezes duma forma exagerada, para que no jornalismo se gaste muita tinta.
Vejamos o caso mais recente das “salutares bofetadas” oferecidas pelo ex-ministro da Cultura, João Soares, ao crítico literário Augusto M. Seabra e ao colunista Vasco Pulido Valente, que foram um tiro no pé para a sua saída do executivo governamental. Isto faz-me lembrar o tempo das reguadas, na instrução primária (hoje ensino básico). Tive um professor, na segunda classe – professor Raul – no Asilo, em que as reguadas eram dadas no rabo, fazendo ajoelhar os alunos. Resultado: uma acusação de maus tratos, feita por um pai, levou a que o professor fosse obrigado a ir para a reforma compulsiva.
Mas já antes, em 1993, uma piada de mau gosto do então ministro do Ambiente, Carlos Borrego, sobre a morte de 25 doentes sujeitos a hemodiálise que ficaram intoxicados em Évora, levou também à sua demissão do governo de Cavaco Silva. Ainda neste ano, Mário Soares era Presidente da República e fazia uma Presidência Aberta por Lisboa. Nessa altura fazer o trajeto entre Vila Franca de Xira e a capital era um tormento rodoviário de “pára-arranca”. Mário Soares decidiu minorar o problema indo de autocarro com uma comitiva, mas sem batedores, nem escolta policial. A dada altura, um elemento da GNR prepara-se para abrir trânsito ao autocarro, o que não correspondia aos objetivos de Soares. Num impasse, referiu-se ao guarda como “gajo indesejável” e depois passou à ação. “Abre-me aqui uma janela”, disse Soares, acrescentando depois: “Ó senhor guarda, desapareça. Diga ao seu colega para desaparecer. Não queremos polícias”. Em 1994, o então presidente regional da Madeira, Alberto João Jardim, em dois artigos de opinião, descreveu o socialista António Fernandes Loja como “homenzinho”, “ordinarote” e “tira-casaca”; e ainda: Loja era “tão pirado que não vê as próprias grosserias e descobre-as aos outros”, “ao ler isto caem-lhe mais três dentes, dois de raiva e um de senilidade”. Em 1995, o falecido Carlos Candal (PS) lançou o “Breve Manifesto Anti-Portas em Português Suave”. Portas (CDS) é descrito como “garnisé cantante” e Pacheco Pereira (PSD) como “pavão de mono caído”. Mais recentemente foi o ex-ministro da Economia de José Sócrates, Manuel Pinho, que saiu do seu primeiro governo depois de ter feito um gesto impróprio. Em pleno debate no Parlamento, em resposta à bancada comunista, juntou os dedos indicadores à cabeça a imitar cornos, tendo a cena sido captada pelas câmaras da televisão. Ainda podemos recordar, em 2010, a vez de José Sócrates utilizar termos inapropriados. No Parlamento, Francisco Louçã disse que o primeiro-ministro “estava mais manso”. Sócrates não gostou e disse, embora não se tenha ouvido: “manso é a tua tia, pá”.
Pois é, segundo um estudo divulgado em Lisboa, o perfil médio de escolaridade dos portugueses adultos é “bastante baixo” a nível da Europa e com pouca vontade de melhorar.
No dia em que se comemorou a língua portuguesa em todos os Estados-membros da CLP, voltou a reinstalar-se na sociedade portuguesa, duma forma definitiva, a discussão em torno do Acordo Ortográfico de 1990 (AO). Foi o próprio Presidente da República que relançou a discussão em torno do AO, mas ninguém prevê o seu seguimento. Os opositores ao mesmo estão divididos entre os que o querem rasgar e os que o admitem melhorar.
Certo é que a reintrodução do tema pelo Presidente da República obriga a sociedade civil a uma reflexão.
O linguista covilhanense, Malaca Casteleiro, natural do Teixoso, que participou há 30 anos nos primeiros encontros que deram origem depois ao acordo de 1990, desvaloriza as críticas.
Depois dos computadores já estarem preparados a praticar o novo acordo ortográfico, será que vamos voltar atrás? E as crianças e jovens estudantes como vão adaptar-se a este imbróglio entre o antigo e novo Acordo Ortográfico?

Sabemos que o AO tem erros crassos que até os seus apoiantes reconhecem, sem que se tenham preocupado em os corrigir nestes anos. Isto, sim, é que parece mesmo uma geringonça.

(In "fórum Covilhã", de 10-05-2016)

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