Desde o portão de entrada na
nossa interioridade, onde podemos ouvir ou ver algo que não desejamos, ou não
concordamos, até à porta do nosso íntimo, onde se encontra bem instalado o
lugar do nosso valor e da nossa coragem, há uma enorme distância. Tanto mais
distante quanto maior for esse valor e essa coragem. E, por isso, mesmo longe
das muralhas que nos protegem do exterior.
Não é fácil manter essas
distâncias quando, por vezes, amiúdas vezes em várias fases da vida, somos
confrontados com situações em que nos custa saltar da distância que nos separa
da porta da nossa intimidade para o portão que dá obviamente para o exterior.
Comigo já sucedeu algumas
vezes. Não consigo abrir a porta do meu íntimo, dos valores que eu reconheço tradicionais
de uma educação transmitida, ainda que não totalmente concordante, para aquela enxada
que pretende cortar a raiz do pensamento. Dou, por isso, muito valor à
liberdade de expressão, pois já vivi no tempo em que tal situação, a
exprimir-se contrária aos ventos políticos dominantes, traziam-nos
preocupações.
Lembro-me de, nesse famigerado
tempo, quando pela noite tinha que baixar o rádio para poder ouvir a Rádio
Portugal Livre, de Argel, proibida, pela voz da mulher de Piteira Santos. E do
Manuel Alegre. De ser obrigado a assinar declarações como uma que guardo
religiosamente, aquando de acesso a promoções de carreira na função pública (“Declaro, por minha honra, que estou
integrado na ordem social estabelecida pela Constituição Política de 1933, com
ativo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas. – Covilhã, 29 de
Maio de 1965”). Recordo-me que numa reunião da Comissão Democrática
Eleitoral, em 1973, em que participei, viemos a saber, quando, felizmente,
raiou o 25 de Abril de 1974, que o secretário das reuniões era informador da
PIDE.
Mas, já antes, no serviço
militar obrigatório, denunciei uma atitude corrupta dum superior, embora
reformado, que, por interposta pessoa me pretendia ludibriar num favorecimento
ilícito a um recruta.
Mais recentemente, não
obstante ter sido objeto de uma homenagem de uma coletividade, de um pedido de
colaboração municipal de âmbito literário, e de reuniões de associações culturais,
onde havia amigos, não deixei que a porta da minha intimidade pudesse deixar vandalizar
os valores da expressão livre do pensamento. Discutível, como é óbvio, mas é o
meu pensamento. Não o vendo por preço algum. Como humano, objeto de erros, mas,
para isso, há os pedidos de desculpa, se entendidos como aceitáveis.
Repudio veementemente todos os
vira-casacas, os que voltam com a palavra atrás sem justificação, os
chicos-espertos, os falsos amigos.
Prefiro ficar à porta que ao
portão.
Podemos ouvir ou ver algo e
não querer o que ouvimos, ou vimos, que venha ferir o nosso coração.
Esta voz secreta que só se
pode escutar no total recolhimento não está sempre acessível.
O lugar do nosso valor e da
nossa coragem, estando longe das muralhas que nos protegem do exterior, está
ainda dentro de uma fortaleza interior bem guardada, até de nós mesmos.
É que aceitar, sem prudência,
tudo de todos é algo tão imbecil como dar tudo a todos, sem sensatez. Importa
guardar as distâncias que nos protegem dos ataques do exterior. Há assim um
caminho que vai do portão de nós mesmos até à porta do nosso íntimo.
No início deste ano, Assunção
Cristas, presidente do CDS-PP defendeu que o acesso á saúde divide os utentes
em “portugueses de primeira, segunda e terceira”, conforme os recursos
financeiros que dispõem e o espaço geográfico onde vivam. De acordo com a líder
centrista, esta divisão corresponde aos que podem pagar um seguro de saúde e
escolher entre público e o privado, os beneficiários da ADSE, e a população sem
recursos que lhe permita escolher.
Mas Assunção Cristas
esquece-se que, apesar de tudo, todos têm acesso ao Serviço Nacional de Saúde,
ninguém fica sem assistência médica.
Mas eu já fui “português de
terceira”, nos anos 60 do século passado, quando o funcionalismo público não
tinha acesso aos cuidados, ainda que primários, de saúde. Tinha que pagar do
seu próprio bolso as consultas e medicamentos, retirados dos seus míseros
vencimentos, ou então, lamuriar-se junto dos médicos para que lhe perdoassem a
consulta, o que resultava muitas vezes a ficarem com as receitas no bolso por
não haver recursos para pagar nas farmácias. Os remédios caseiros nem sempre
eram solução e, assim, muitas mazelas ficaram.
Não havia ainda a ADSE. Não
havia subsídios de férias nem de Natal. Comia-se o pão que o diabo amassou e
tinha que se andar sorridente porque a repulsa redundava em ter à porta, no dia
seguinte, ou próximos, um dos homens da maldita polícia política. A caterva de
informadores, desde o sacristão, ao homem que atrás falei, ao funcionário de um
Sindicato, ao 35 ou ao 23, ao pároco de São Martinho, e a outros mais, ocultos
na tentativa de anonimato, obrigava a ter que haver bastantes reservas.
Convém assim guardar bem a
porta e espreitar o portão.
(In "fórum Covilhã", de 13/03/2018)
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