13 de março de 2018

ENTRE O PORTÃO E A PORTA


Desde o portão de entrada na nossa interioridade, onde podemos ouvir ou ver algo que não desejamos, ou não concordamos, até à porta do nosso íntimo, onde se encontra bem instalado o lugar do nosso valor e da nossa coragem, há uma enorme distância. Tanto mais distante quanto maior for esse valor e essa coragem. E, por isso, mesmo longe das muralhas que nos protegem do exterior.
Não é fácil manter essas distâncias quando, por vezes, amiúdas vezes em várias fases da vida, somos confrontados com situações em que nos custa saltar da distância que nos separa da porta da nossa intimidade para o portão que dá obviamente para o exterior.
Comigo já sucedeu algumas vezes. Não consigo abrir a porta do meu íntimo, dos valores que eu reconheço tradicionais de uma educação transmitida, ainda que não totalmente concordante, para aquela enxada que pretende cortar a raiz do pensamento. Dou, por isso, muito valor à liberdade de expressão, pois já vivi no tempo em que tal situação, a exprimir-se contrária aos ventos políticos dominantes, traziam-nos preocupações.
Lembro-me de, nesse famigerado tempo, quando pela noite tinha que baixar o rádio para poder ouvir a Rádio Portugal Livre, de Argel, proibida, pela voz da mulher de Piteira Santos. E do Manuel Alegre. De ser obrigado a assinar declarações como uma que guardo religiosamente, aquando de acesso a promoções de carreira na função pública (“Declaro, por minha honra, que estou integrado na ordem social estabelecida pela Constituição Política de 1933, com ativo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas. – Covilhã, 29 de Maio de 1965”). Recordo-me que numa reunião da Comissão Democrática Eleitoral, em 1973, em que participei, viemos a saber, quando, felizmente, raiou o 25 de Abril de 1974, que o secretário das reuniões era informador da PIDE.
Mas, já antes, no serviço militar obrigatório, denunciei uma atitude corrupta dum superior, embora reformado, que, por interposta pessoa me pretendia ludibriar num favorecimento ilícito a um recruta.
Mais recentemente, não obstante ter sido objeto de uma homenagem de uma coletividade, de um pedido de colaboração municipal de âmbito literário, e de reuniões de associações culturais, onde havia amigos, não deixei que a porta da minha intimidade pudesse deixar vandalizar os valores da expressão livre do pensamento. Discutível, como é óbvio, mas é o meu pensamento. Não o vendo por preço algum. Como humano, objeto de erros, mas, para isso, há os pedidos de desculpa, se entendidos como aceitáveis.
Repudio veementemente todos os vira-casacas, os que voltam com a palavra atrás sem justificação, os chicos-espertos, os falsos amigos.
Prefiro ficar à porta que ao portão.
Podemos ouvir ou ver algo e não querer o que ouvimos, ou vimos, que venha ferir o nosso coração.
Esta voz secreta que só se pode escutar no total recolhimento não está sempre acessível.
O lugar do nosso valor e da nossa coragem, estando longe das muralhas que nos protegem do exterior, está ainda dentro de uma fortaleza interior bem guardada, até de nós mesmos.
É que aceitar, sem prudência, tudo de todos é algo tão imbecil como dar tudo a todos, sem sensatez. Importa guardar as distâncias que nos protegem dos ataques do exterior. Há assim um caminho que vai do portão de nós mesmos até à porta do nosso íntimo.
No início deste ano, Assunção Cristas, presidente do CDS-PP defendeu que o acesso á saúde divide os utentes em “portugueses de primeira, segunda e terceira”, conforme os recursos financeiros que dispõem e o espaço geográfico onde vivam. De acordo com a líder centrista, esta divisão corresponde aos que podem pagar um seguro de saúde e escolher entre público e o privado, os beneficiários da ADSE, e a população sem recursos que lhe permita escolher.
Mas Assunção Cristas esquece-se que, apesar de tudo, todos têm acesso ao Serviço Nacional de Saúde, ninguém fica sem assistência médica.
Mas eu já fui “português de terceira”, nos anos 60 do século passado, quando o funcionalismo público não tinha acesso aos cuidados, ainda que primários, de saúde. Tinha que pagar do seu próprio bolso as consultas e medicamentos, retirados dos seus míseros vencimentos, ou então, lamuriar-se junto dos médicos para que lhe perdoassem a consulta, o que resultava muitas vezes a ficarem com as receitas no bolso por não haver recursos para pagar nas farmácias. Os remédios caseiros nem sempre eram solução e, assim, muitas mazelas ficaram.
Não havia ainda a ADSE. Não havia subsídios de férias nem de Natal. Comia-se o pão que o diabo amassou e tinha que se andar sorridente porque a repulsa redundava em ter à porta, no dia seguinte, ou próximos, um dos homens da maldita polícia política. A caterva de informadores, desde o sacristão, ao homem que atrás falei, ao funcionário de um Sindicato, ao 35 ou ao 23, ao pároco de São Martinho, e a outros mais, ocultos na tentativa de anonimato, obrigava a ter que haver bastantes reservas.
Convém assim guardar bem a porta e espreitar o portão.


(In "fórum Covilhã", de 13/03/2018)

Sem comentários: