Embora na origem usura
signifique juro, o seu conceito jurídico é mais alargado. Em direito, a usura “é
um crime cometido por quem, com intuito de obter um benefício patrimonial,
conseguir que outra pessoa se obrigue a conceder-lhe uma vantagem pecuniária
desajustada à contraprestação, aproveitando-se da necessidade, inexperiência,
incapacidade ou dependência dessa pessoa”.
Para quê estar a falar, mais
uma vez, de corrupção, de fraude, de roubo ou de furto? Deixemos estes
substantivos descansados, estas quatro palavras, das mais referidas na
comunicação social, num fartar desta linguagem, que vai da política ao futebol,
do ensino à religião, num etc. alongado. Deixemos esta desgraça! Que tal
desgraça não passa de um euromilhões para muitos, como nos temos vindo a
aperceber. Até parece já não se poder dar sentido a outras formas honesta de
vivermos neste planeta.
São casos e mais casos só no
nosso país, que não acontecem somente nas grandes urbes, mas também no nosso
meio, no nosso distrito, no nosso concelho, na nossa cidade.
Mas vamos ao assunto que dá
força ao título desta crónica.
O combate da usura não foi uma
luta exclusiva da Igreja, mas as autoridades católicas foram, sem dúvida, as
que mais persistentemente se opuseram à usura, que foi a maior preocupação da
Igreja medieval no domínio económico.
A condenação da usura
prolongou-se por muitos séculos. Ainda hoje, embora raramente, surgem
iniciativas visando limitar juros e lucros.
A preocupação muito antiga de
proibir ou limitar a remuneração (juro) do mutuante explica-se pela natureza
particular dos empréstimos em tempos mais recuados, geralmente destinados a
fazer face aos gastos entre duas colheitas. Se o juro não fosse limitado, os
camponeses ficavam à mercê dos usurários que podiam, com as suas exigências,
levar os mutuários ao extremo de se venderem como escravos para pagar dívidas.
A legitimidade ou
ilegitimidade do juro é, portanto, assunto que vem desde a Antiguidade e que
teve, aos longo dos séculos, oscilações e posições muito diferenciadas.
Os filósofos gregos começaram
por se manifestar contra o juro. Aristófanes desaprova-o, Platão (428 a 347 a.
C.) e Aristóteles (384 a 322 a. C.) consideram o juro contrário à natureza das
coisas.
Os Romanos tomaram posições
idênticas. Catão (234 a 149 a. C.) equipara o juro ao homicídio, Séneca (3 a.
C. a 65) e Plutarco (35 a 120) condenaram igualmente o juro.
Mas as posições dos filósofos
nem sempre foram as definidas nas leis ou as seguidas na prática corrente. Mais
tarde, a Lei das Doze Tábuas (449 – 479 a. C.) limitou o juro máximo dos
empréstimos a 12% ao ano. É que houve mesmo épocas em que os especuladores
romanos chegaram a cobrar juros de 48% ao ano. Marcus Julius Brutus (84 a 42 a.
C.), líder político militar romano, um dos assassinos de Júlio César, foi um
dos prestamistas que emprestava a este juro.
Foi a Igreja que moveu uma
luta mais persistente e mais continuada contra a usura. Para a Igreja, usura
era toda a operação que implicava o pagamento de um juro. Assim sendo, o
comércio e a banca, intimamente relacionados com o juro, eram atividades
interditas, ficando os mercadores e os banqueiros sujeitos à excomunhão, o que
na Idade Média era uma penalização muito mais temida pelos cristãos do que
seria mais tarde.
A Igreja baseava a sua posição
nas Escrituras, tando do Antigo como do Novo Testamento. Dos textos do Antigo
Testamento: no Êxodo, cap. XXII,25; no Levítico, cap. XXV, 35 a 37; no
Deuteronómio, cap. XXIII, 19 e 20. No Novo Testamento: Evangelho de S. Lucas,
cap. VI, 34-35. Até ao século IV, os Doutores e Chefes da Igreja mantêm esta
posição, considerando o juro contrário à misericórdia e ao humanismo. Daí em
diante a situação vai mudar e o que começa a ser condenação nos Concílios de
Arles (314), Niceia (325) e Elvira (305 ou 306) é apenas um juro cobrado por
clérigos. Só a partir do Terceiro Concílio de Latrão (1170) e de Lyon (1274) é
que a repreensão seria também aplicada aos leigos. A Igreja partia de dois
pressupostos: um ligado à noção de tempo e outro ligado à profissão de
comerciante.
Quanto ao primeiro,
considerava a Igreja que sendo o tempo pertença de Deus não era suscetível de
ser vendido. E como o juro era associado à ideia de venda do tempo, tinha de
ser condenado. O segundo pressuposto estava relacionado com o conceito em que
eram tidos os comerciantes. Os pensadores cristãos consideravam o comércio como
associado à fraude e à avareza, causador da luxúria e potencial fonte de
corrupção e de deterioração das boas maneiras e das virtudes, fonte de contacto
com mercadores e estrangeiros.
Os jurisconsultos da época
terão especulado acerca dos contornos do conceito de usura, permitindo depois
chegar às soluções que justificaram uma flexibilização das posições da Igreja.
Com uma nova expansão económica e, com ela, um maior desenvolvimento do
comércio, começam a surgir interrogações quanto à doutrina da Igreja nesta
matéria e fazem-se ouvir as primeiras vozes discordantes. Para essa
flexibilização contribuíram também as opiniões de São Tomás de Aquino quanto à
usura e aos comerciantes. O motivo que mais determinou a mudança de posições da
Igreja foi que os mercadores a financiavam largamente quando disso havia
necessidade. É assim que, a partir de determinada altura, vemos os mercadores a
serem considerados pela Igreja como bons cristãos e a serem dispensados da
Comunhão, do descanso dominical e do jejum, por imperativos de profissão.
A Igreja acabou, de facto, por
tolerar a usura e mais tarde admiti-la desde que não houvesse excessos. A
perseguição da usura ainda se estendeu por muitos anos.
(In "Notícias da Covilhã", de 31-05-2018)