27 de março de 2019

O SISMO DE PORTUGAL DE 1969 FOI HÁ 50 ANOS


Entre o alfa e o ómega das nossas vidas sempre houve, e haverá, acontecimentos marcantes. Os da minha geração não deixarão de recordar o susto por que todos passámos, de norte a sul do país, naquele dia 28 de fevereiro do ano da graça de 1969.
As zonas mais atingidas foram o sul de Portugal e região de Lisboa. O sismo atingiu a magnitude de 8,0 na escala de Richter e viria a ocasionar 13 mortos, na sua maioria por efeitos cardíacos.
Cada qual tem a sua história para contar como sentiu este sismo, porquanto quase todos deram conta, quase todos digo eu.
Encontrava-me a cumprir serviço militar obrigatório no Regimento de Artilharia Ligeira nº 4, em Leiria, onde tirara a especialidade e aí acabara por ser colocado após terminar o Curso de Sargentos Milicianos.
Estava de serviço de Sargento de Dia, e, como habitualmente, no sorteio das rondas a efetuar durante a noite, calhavam-me horas altas. Desta vez fui sortudo para o período da meia-noite e meia às duas e trinta da madrugada.
De regresso ao quartel, vindo da rua, sozinho, da ronda à zona de aquartelamento de uns obuses obsoletos, a cerca de um quilómetro do quartel, na antiga estrada que vai para a Marinha Grande, tentei acordar o colega que me substituía na próxima ronda a fim de lhe entregar a pistola parabellum. Ao mesmo tempo descalçava as botas e preparava-me para me meter na cama.
Eram 2 e 40 da madrugada. Num ápice sinto um ruído estranho como que de uma fortíssima ventania se tratasse, tudo a abanar e as portas guarda-vento da caserna onde nos encontrávamos bateram com grande violência umas contra as outras. Num instinto, gritei: É um tremor de terra!... Peguei nas botas e na arma e fugi, descalço, para fora da caserna. Enquanto descia as escadas de cimento do antigo convento que era o RAL 4, já alguns soldados e outros militares, uns meio vestidos, outros com cobertores nas costas, ou até em cuecas, também faziam o mesmo. Eram pouco mais de meia dúzia os primeiros a chegar à parada.
Passados os primeiros momentos do susto, e conversando com o oficial de dia, também assustado, na parada, voltámos aos aposentos de cada um, mas de imediato o comandante da unidade dava ordens para que fossem evacuados todos os militares das casernas pois que poderia haver réplicas do sismo.
Era uma sexta-feira. Os militares que podiam ir de fim de semana à hora do almoço, foram autorizados a partir de imediato para as suas terras, logo a seguir ao pequeno almoço, aí pelas 8 horas da manhã, em vez de vaguearem pela parada.
Mas eu tinha então voltado à caserna. O colega que me substituía, ainda assarapantado, sentado na cama, perguntava: Mas o que é que aconteceu?
Fiquei revoltado: “Ó meu basbaque, levanta-te e foge para a rua como os outros, não vês que há um tremor de terra!?”.
Ainda não havia telemóveis, nem sequer a existência da Internet. As chamadas telefónicas eram interurbanas, e nos correios havia muita gente a querer telefonar. O sismo havia provocado alarme e pânico entre a população, cortes nas telecomunicações e no fornecimento de energia elétrica.
Lá consegui um contacto telefónico, tardiamente, para a minha namorada, hoje a minha mulher, através duma chamada diferida nos CTT, já que ainda pouca gente possuía telefone nas suas casas. E os telegramas não conseguiam ser expedidos. Tudo era moroso. Os contactos geralmente faziam-se por carta. Longe dos tempos de hoje. Sosseguei-os e fiquei mais tranquilo. Só haviam caído umas ameias do castelo de Leiria, que se encontrava sediado a poucos metros do quartel.
E eu não podia ir de fim de semana porque, como éramos poucos, no dia seguinte já estava escalado para acompanhar alguns soldados ao Mosteiro da Batalha, para a guarda de honra ao túmulo do Soldado Desconhecido, serviço alternado mensalmente entre as duas unidades militares de Leiria – RAL 4 e RI 7.
Como atrás referi, nessa altura ainda não existiam as novas tecnologias, nem mesmo algumas que já estão ficando obsoletas, como o fax. Ainda era o tempo do papel químico e do papel parafinado, usado para tirar cópias com um duplicador, depois de nele se ter escrito – o estêncil – com que se escreviam as ordens de serviço, em substituição das fotocopiadoras, que surgiriam mais tarde. Os telemóveis estavam a décadas do seu tempo, e nem sequer sabíamos o que era um computador. Existiam as máquinas de escrever, no tempo da dactilografia, e era exatamente esse serviço de que me encarregaram de ministrar aos soldados-recrutas que para ali iam tirar a especialidade de escriturário.
Entre a bruma das memórias podemos encontrar, ao longo dos tempos, variadíssimos sismos em Portugal, uns mais graves que outros, desde a Antiguidade até aos anos mais próximos.
Refiro alguns dos principais:
- Sismo de Lisboa, no ano de 1356, com a magnitude de 8,5;
- Sismo de Lisboa, no ano de 1531, com a magnitude de 7,0 – 7,5, tendo ocasionado 30.000 mortos;
- Sismo de Lisboa, no dia 1 de novembro de 1755, às 9,30, com a magnitude de 8,7 – 9, tendo ocasionado 90.000 mortos;
- Sismo em Benavente e Salvaterra de Magos, no dia 23 de abril de 1909, às 17,05, na magnitude de 6,3, tendo ocasionado 42 mortos e 75 feridos.
Depois do sismo de 1969, felizmente só temos a lamentar o sismo dos Açores de 1980, no dia 1 de janeiro, às 15,42, na escala de 7,2, tendo ocasionado 73 mortos; e em 31 de julho de 1998, em Arraiolos, às 10,27, na escala de 4,1, sem vítimas mortais.

(In "Notícias da Covilhã", de 28-03-2019)

12 de março de 2019

O UMBIGUISMO


Sendo o mês de março aquele em que vim ao mundo, e talvez o facto de eu ter nascido já no período da primavera, me leva a desprezar algum pessimismo deixado das invernias. Ou seja, mais dos tempos que passaram de muitos egocentrismos. E passa a um otimismo primaveril proveniente da adição de muitas amizades.
Esta crónica estava mais direcionada para o período carnavalesco, a época do ano de que menos gosto, mas acaba por sair já em período quaresmal, pois que nem sempre as vontades podem ser satisfeitas.
Vejamos o caráter internacionalista do povo português quando se viu embrenhado em tantas greves, com os governantes a verem-se gregos, em vez de terem um problema intricado; alguns estudantes confrontados com o ranking das escolas, se não compreendiam alguma coisa, preferiram optar por dizer que “aquilo” é chinês; e já um agricultor a consultar O Borda d’Água se referia que trabalhava como um mouro, em vez de trabalhar de manhã à noite.
Duma exposição inédita em Nova Iorque explorando o design moderno da América Latina, em vez de uma invenção moderna alguém disse que era uma americanice. Se se é expressivo no falar depressa, logo se lembram de dizer que fala como um espanhol.
Aquela família que tem uma vivenda, uma casa de férias e um Mercedes, em vez de viver com luxo, vive à grande e à francesa. Mas aquele que se vestiu de fato e gravata para uma apresentação, a fim de causar boa impressão, é apelidado de que é só para inglês ver.
Nas feiras e mercados, ao regatear-se um preço, pode ser-se apelidado de que é pior que um cigano. Mas também os há de mãos fechadas, agarrados ao dinheiro, passando bem no apelido de que é pior que um judeu. Pior, pior, é quando se vê alguém a divertir demasiado pois que na mente de alguns logo surge a ideia de que está a gozar que nem um preto.
Já lá vai o tempo, quando se via alguém com um fato claro vestido, alguns ficavam a murmurar entre si: parece um brasileiro. Uma loura alta e bonita? Nalguns pensantes, logo a ideia: parece uma autêntica sueca. Poderá estar na hora dum café, um café curtinho, que outros preferem chamar-lhe uma italiana.
Nos tempos que correm, já não se vêm muito os horários a serem cumpridos, ou seja, aquela pontualidade britânica.
Vejamos tão só, por exemplo, um militar bem fardado, que logo surge um olhar atento a dizer que parece um soldado alemão. E se uma máquina funciona bem? Resposta na ponta da língua: É como um relógio suíço.
E quando alguma coisa corre mal? Diz-se que é “à portuguesa”. Se Fernando Pessa ainda fosse vivo, diria: E esta, hein!
Tendo em conta que umbiguismo é uma criação da forma vernácula umbigo, no sentido de dar demasiada importância para si próprio, egoísta, Pedro Mexia referiu, há uns anos, que essa “cicatriz abdominal, saliente ou reentrante, no ponto em que o cordão umbilical se prendia ao  indivíduo durante a sua vida fetal, é a única prova documental dessa ideia fascinante mas incompreensível de termos vivido meses dentro de alguém. É um elemento anatómico sem utilidade nenhuma, que só existe como resquício, sejam umbigos bem cortados, em orifício, ou umbigos saídos”.
Desde que nos anos 40 Álvaro Cunhal acusou José Régio de escrever para o umbigo que essa tem sido a ofensa máxima: umbiguista. Mas eu não estou convencido de que a metáfora seja a mais adequada pois há coisas mais íntimas que o umbigo, que, sendo este uma cicatriz, a gente em geral não gosta de o mostrar. Pois bem, o umbigo enche-se de cotão, que é desagradável.
Então, aí está, o umbiguista não está necessariamente a exibir o seu umbigo, mas a mostrar o lixo acumulado. E lá tem razão Pedro Mexia em dizer que “o umbiguista é aquele que pretende mostrar coisas pessoais e acaba a mostrar coisas desagradáveis”.
Bom, na próxima semana, dia 20 de março, entra a primavera, e já se vão vendo umas rapariguinhas de ventre elástico mostrando o umbigo, num doce exibicionismo. Mas os demais umbigos, literais e metafóricos, são um desafio, um desatino, um desaforo.
Um dos meus favoritos escritores e cronistas, o saudoso Eduardo Prado Coelho, falava há 15 anos sobre “O umbigo dos sonhos”: “As calças femininas descem vertiginosamente abaixo da cintura, deixando por vezes entrever uma peça mais íntima de roupa. Se se trata de figuras de grande elegância, o efeito da beleza é incontestável. Nos casos mais prudentes, há uma zona do corpo que ora aparece coberta, ora se descobre ousadamente”.
Sempre pensei que com os rigores do inverno se fizessem restringir as peças de vestuário, como as camisolas, que deixam ver o umbigo, mas nos dias que correm, a transgressão é ocultá-lo. O umbigo venceu o inverno. Mas por que falar do inverno se estamos a entrar na primavera?
Como referi, este texto era destinado para a época carnavalesca, que findou há poucos dias, e o tema de todos os umbigos não se pode descrever. Há o umbigo simples, sem outros atavios, convicto de que por si só suscitará os olhares, dependendo da beleza da personagem. É um umbigo sem problemas nem contradições que escapou da neurose, que evita a psicose, que não tem quaisquer marcas maníaco-depressivas. Há um segundo tipo de umbigo que se redobra num discreto “piercing”. Aqui, o corpo entrega-se aos sinais, começa a escrever-se a si próprio. O “piercing” é o começo de um processo de artificialização. Uma variação do “piercing” é a tatuagem. Estas correspondem a uma panóplia de motivos, tudo servindo para criar o que outrora era um motivo de atração e hoje é uma banalidade, que só ganha algum relevo por contígua ou envolvente do umbigo.
Bem dizia Freud, o umbigo é o lugar onde deixamos de ver para passarmos para o reverso da visão: inscrição corporal do inconsciente, ali onde a noite é cada vez mais noite e o dia cada vez menos dia.

(In "Jornal fórum Covilhã", de 12-03-2019)