Sendo o mês de março aquele em
que vim ao mundo, e talvez o facto de eu ter nascido já no período da primavera,
me leva a desprezar algum pessimismo deixado das invernias. Ou seja, mais dos
tempos que passaram de muitos egocentrismos. E passa a um otimismo primaveril proveniente
da adição de muitas amizades.
Esta crónica estava mais
direcionada para o período carnavalesco, a época do ano de que menos gosto, mas
acaba por sair já em período quaresmal, pois que nem sempre as vontades podem
ser satisfeitas.
Vejamos o caráter
internacionalista do povo português quando se viu embrenhado em tantas greves,
com os governantes a verem-se gregos,
em vez de terem um problema intricado; alguns estudantes confrontados com o
ranking das escolas, se não compreendiam alguma coisa, preferiram optar por
dizer que “aquilo” é chinês; e já um
agricultor a consultar O Borda d’Água se referia que trabalhava como um mouro, em vez de trabalhar de manhã à noite.
Duma exposição inédita em Nova
Iorque explorando o design moderno da América Latina, em vez de uma invenção
moderna alguém disse que era uma
americanice. Se se é expressivo no falar depressa, logo se lembram de dizer
que fala como um espanhol.
Aquela família que tem uma
vivenda, uma casa de férias e um Mercedes, em vez de viver com luxo, vive à grande e à francesa. Mas aquele
que se vestiu de fato e gravata para uma apresentação, a fim de causar boa
impressão, é apelidado de que é só para
inglês ver.
Nas feiras e mercados, ao
regatear-se um preço, pode ser-se apelidado de que é pior que um cigano. Mas também os há de mãos fechadas, agarrados
ao dinheiro, passando bem no apelido de que é
pior que um judeu. Pior, pior, é quando se vê alguém a divertir demasiado pois
que na mente de alguns logo surge a ideia de que está a gozar que nem um preto.
Já lá vai o tempo, quando se via
alguém com um fato claro vestido, alguns ficavam a murmurar entre si: parece um brasileiro. Uma loura alta e
bonita? Nalguns pensantes, logo a ideia: parece
uma autêntica sueca. Poderá estar na hora dum café, um café curtinho, que
outros preferem chamar-lhe uma italiana.
Nos tempos que correm, já não se
vêm muito os horários a serem cumpridos, ou seja, aquela pontualidade britânica.
Vejamos tão só, por exemplo, um
militar bem fardado, que logo surge um olhar atento a dizer que parece um soldado alemão. E se uma
máquina funciona bem? Resposta na ponta da língua: É como um relógio suíço.
E quando alguma coisa corre mal?
Diz-se que é “à portuguesa”. Se
Fernando Pessa ainda fosse vivo, diria: E
esta, hein!
Tendo em conta que umbiguismo é uma criação da forma
vernácula umbigo, no sentido de dar
demasiada importância para si próprio, egoísta, Pedro Mexia referiu, há uns
anos, que essa “cicatriz abdominal, saliente ou reentrante, no ponto em que o
cordão umbilical se prendia ao indivíduo
durante a sua vida fetal, é a única prova documental dessa ideia fascinante mas
incompreensível de termos vivido meses dentro de alguém. É um elemento anatómico
sem utilidade nenhuma, que só existe como resquício, sejam umbigos bem
cortados, em orifício, ou umbigos saídos”.
Desde que nos anos 40 Álvaro
Cunhal acusou José Régio de escrever para o umbigo que essa tem sido a ofensa
máxima: umbiguista. Mas eu não estou convencido de que a metáfora seja a mais
adequada pois há coisas mais íntimas que o umbigo, que, sendo este uma
cicatriz, a gente em geral não gosta de o mostrar. Pois bem, o umbigo enche-se
de cotão, que é desagradável.
Então, aí está, o umbiguista não
está necessariamente a exibir o seu umbigo, mas a mostrar o lixo acumulado. E
lá tem razão Pedro Mexia em dizer que “o umbiguista é aquele que pretende
mostrar coisas pessoais e acaba a mostrar coisas desagradáveis”.
Bom, na próxima semana, dia 20 de
março, entra a primavera, e já se vão vendo umas rapariguinhas de ventre
elástico mostrando o umbigo, num doce exibicionismo. Mas os demais umbigos,
literais e metafóricos, são um desafio, um desatino, um desaforo.
Um dos meus favoritos escritores
e cronistas, o saudoso Eduardo Prado Coelho, falava há 15 anos sobre “O umbigo
dos sonhos”: “As calças femininas descem vertiginosamente abaixo da cintura,
deixando por vezes entrever uma peça mais íntima de roupa. Se se trata de
figuras de grande elegância, o efeito da beleza é incontestável. Nos casos mais
prudentes, há uma zona do corpo que ora aparece coberta, ora se descobre
ousadamente”.
Sempre pensei que com os rigores
do inverno se fizessem restringir as peças de vestuário, como as camisolas, que
deixam ver o umbigo, mas nos dias que correm, a transgressão é ocultá-lo. O
umbigo venceu o inverno. Mas por que falar do inverno se estamos a entrar na
primavera?
Como referi, este texto era
destinado para a época carnavalesca, que findou há poucos dias, e o tema de todos
os umbigos não se pode descrever. Há o umbigo simples, sem outros atavios,
convicto de que por si só suscitará os olhares, dependendo da beleza da
personagem. É um umbigo sem problemas nem contradições que escapou da neurose,
que evita a psicose, que não tem quaisquer marcas maníaco-depressivas. Há um
segundo tipo de umbigo que se redobra num discreto “piercing”. Aqui, o corpo
entrega-se aos sinais, começa a escrever-se a si próprio. O “piercing” é o
começo de um processo de artificialização. Uma variação do “piercing” é a
tatuagem. Estas correspondem a uma panóplia de motivos, tudo servindo para
criar o que outrora era um motivo de atração e hoje é uma banalidade, que só
ganha algum relevo por contígua ou envolvente do umbigo.
Bem dizia Freud, o umbigo é o
lugar onde deixamos de ver para passarmos para o reverso da visão: inscrição
corporal do inconsciente, ali onde a noite é cada vez mais noite e o dia cada
vez menos dia.
(In "Jornal fórum Covilhã", de 12-03-2019)
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