“Não há comparação nenhuma
entre quem foi para a guerra de África e os que estão a fazer esta guerra no
Afeganistão. Nós fomos porque éramos obrigados, estes vão porque são
mercenários. Estão porque querem, para ganhar dinheiro” – Carlos Pinto Coelho, in 24 horas, 20-11-2005.
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Neste tempo pandémico, muitos
dos antigos Combatentes comparam o medo, aquele impulso irracional que fez as
pessoas refugiarem-se em casa, fechar escolas e comércios, com o medo sentido
na guerra do Ultramar. Mais uns que outros.
Se agora há verdadeiros heróis;
todos aqueles que fizeram Juramento no final do Curso de Medicina, cumprindo no
maior desafio clínico suas carreiras, da forma mais altruísta e humanitária,
uma dedicação sem limites, para combater o invisível inimigo do ser humano,
substituindo o verde e camuflado das guerras coloniais pelo branco hospitalar,
fazendo frente a um inimigo de peito aberto, sem colete à prova de bala, porque
este inimigo não se localiza; podemos sentir estes momentos como pior que um ferimento de projétil.
Veneramos estes novos Heróis
(masculinos e femininos) como o fizemos com os das guerras coloniais naquele
famigerado período de 1961 a 1974.
Daqui que datas célebres que
invocavam homenagem aos Heróis das Guerras, e depois mais lato – o 10 de junho
– Dia de Portugal – teve de ser mais um de tantos eventos suprimidos.
Assim, recordamos a nossa
geração neste conceito de herói, no protagonismo de uma guerra de guerrilha que
afetou a sociedade portuguesa. Neste amor dos tempos de hoje fazemos uma
retrospetiva do amor no tempo da guerra colonial.
Num continente de terra
vermelha e calor intenso vivia-se o medo da morte. Das emboscadas. Dentro dos
camuflados, o coração batia, as gotas de suor escorriam. O cheiro era outro, o
som da natureza era novo. Ao longe e ao perto ouviam-se rebentamentos. O
inimigo morava por ali. Era a guerra colonial. África na sua pujança. E o tempo
da carne para canhão. A aldeia portuguesa, lá longe, uma miragem distante, no
pensamento de jovens com 20 anos. Portugal, anos 60. (1)
E o amor, onde estava o amor
neste tempo de guerra? Sobrava a lembrança das namoradas, tantas delas
arranjadas à pressa, para ficar aquele elo com a metrópole, mais por eles do
que por elas, alguém que personificasse a ligação afetiva. Dos meses e meses no
mato, sem ver outros senão também camuflados, chegavam palavras, por cartas, ou
por aerogramas (oferecidos pelo Movimento Nacional Feminino). Quando chegavam. A
hora do correio, tantas vezes lançado pelo ar, era o mais importante de tudo.
Umas tinham frases de amor, promessas feitas á partida, tantas vezes a própria
virgindade, como um selo para marcar o compromisso do regresso. Que por vezes era
quebrado. Ainda hoje há testemunhos de mortes no mato que foram mesmo
suicídios, quando a notícia chegava pelo correio: ela tinha outro. Diz, quem
sabe, que para elas esperarem por eles durante dois anos (quando se tem vinte)
era uma eternidade. E a traição matou.
Havia as madrinhas de guerra,
gente arranjada para fazer de conta que. E os casamentos por procuração. O afeto ou o desejo do afeto tentavam
suavizar aquela interrupção brutal com a vida, numa guerra não desejada, que
lhes comprometia o futuro. Ainda hoje há entre nós cicatrizes que não sararam.
Andam na consulta de stress pós-traumático.
Naquele tempo, quando se
partia, primeiro não se sabia para onde se ia. E, segundo, não se sabia se
havia regresso. Muitas lágrimas engrossaram o Tejo quando os navios zarpavam da
Rocha Conde de Óbidos. Outros amores de mãe, da família, a dizerem adeus, no
cais. Nos movimentos de um lenço, seria a despedida da própria vida? Muitos
soldados, que da sua experiência só levavam os horizontes da remota aldeia,
viveram o que pensaram ser outra liberdade. Não era como no Vietname, conta
quem lá esteve. Nem havia orgias nos quartéis, nem os abusos que se possam
imaginar.
Havia mulheres negras, que os
outros diziam ser a pele macia e serem afáveis. A prostituição crescia à volta
e dentro dos quartéis. Quem trilhou as picadas fala das negras desvirgindadas
pelos missionários católicos. E do perigo das doenças venéreas, que atingiam
companhias inteiras. Não havia preservativos, as bisnagas de sulfamida dadas
pelos médicos militares não eram usadas. Alguém dissera que aquilo iri tirar a
potência. Houve violações. Dos inúmeros soldados analfabetos, sabe-se que
levavam para África experiências sexuais estranhas. Sem ternura nem afeto. De
homossexualidade fala-se esporadicamente. Gestos houve-os, nem chegaram a
relação, eram mais que resistir aquele sofrimento, àquela solidão do mato
africano. Nas sentinelas, na calada da noite. O combate é excitante, disseram.
A masturbação foi “a instituição” dos soldados. E um homem tem de ter o
“escape” para as suas “necessidades”.
Do lado de cá da guerra, as
mulheres viviam outro lado do amor. O compromisso continuava inviolável. De
casamentos antes, foram raros os divórcios. E também aqui se marcou a diferença
com o Vietname. Mas a guerra afeta o amor do após guerra. Talvez a mulher
portuguesa fosse mais passiva e resistente. Como mães dos maridos?
Na consulta do stress pós-traumático há a experiência clínica
desta memória da guerra colonial. Elas continuam com eles, embora com papéis
distorcidos no casal. Continuam a manter o barco à tona. Uma corda a ligar ao
passado. A paixão que houve. Depois da guerra, no regresso à realidade do
outro, nem sempre se (re)descobre a paixão.
(1) Baseado num
texto de Leonor Figueiredo, in DN, 27-09-1998