29 de junho de 2020

O AMOR NO TEMPO DA GUERRA COLONIAL


“Não há comparação nenhuma entre quem foi para a guerra de África e os que estão a fazer esta guerra no Afeganistão. Nós fomos porque éramos obrigados, estes vão porque são mercenários. Estão porque querem, para ganhar dinheiro” –  Carlos Pinto Coelho, in 24 horas, 20-11-2005.
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Neste tempo pandémico, muitos dos antigos Combatentes comparam o medo, aquele impulso irracional que fez as pessoas refugiarem-se em casa, fechar escolas e comércios, com o medo sentido na guerra do Ultramar. Mais uns que outros.
Se agora há verdadeiros heróis; todos aqueles que fizeram Juramento no final do Curso de Medicina, cumprindo no maior desafio clínico suas carreiras, da forma mais altruísta e humanitária, uma dedicação sem limites, para combater o invisível inimigo do ser humano, substituindo o verde e camuflado das guerras coloniais pelo branco hospitalar, fazendo frente a um inimigo de peito aberto, sem colete à prova de bala, porque este inimigo não se localiza; podemos sentir estes momentos  como pior que um ferimento de projétil.
Veneramos estes novos Heróis (masculinos e femininos) como o fizemos com os das guerras coloniais naquele famigerado período de 1961 a 1974.
Daqui que datas célebres que invocavam homenagem aos Heróis das Guerras, e depois mais lato – o 10 de junho – Dia de Portugal – teve de ser mais um de tantos eventos suprimidos.
Assim, recordamos a nossa geração neste conceito de herói, no protagonismo de uma guerra de guerrilha que afetou a sociedade portuguesa. Neste amor dos tempos de hoje fazemos uma retrospetiva do amor no tempo da guerra colonial.
Num continente de terra vermelha e calor intenso vivia-se o medo da morte. Das emboscadas. Dentro dos camuflados, o coração batia, as gotas de suor escorriam. O cheiro era outro, o som da natureza era novo. Ao longe e ao perto ouviam-se rebentamentos. O inimigo morava por ali. Era a guerra colonial. África na sua pujança. E o tempo da carne para canhão. A aldeia portuguesa, lá longe, uma miragem distante, no pensamento de jovens com 20 anos. Portugal, anos 60. (1)
E o amor, onde estava o amor neste tempo de guerra? Sobrava a lembrança das namoradas, tantas delas arranjadas à pressa, para ficar aquele elo com a metrópole, mais por eles do que por elas, alguém que personificasse a ligação afetiva. Dos meses e meses no mato, sem ver outros senão também camuflados, chegavam palavras, por cartas, ou por aerogramas (oferecidos pelo Movimento Nacional Feminino). Quando chegavam. A hora do correio, tantas vezes lançado pelo ar, era o mais importante de tudo. Umas tinham frases de amor, promessas feitas á partida, tantas vezes a própria virgindade, como um selo para marcar o compromisso do regresso. Que por vezes era quebrado. Ainda hoje há testemunhos de mortes no mato que foram mesmo suicídios, quando a notícia chegava pelo correio: ela tinha outro. Diz, quem sabe, que para elas esperarem por eles durante dois anos (quando se tem vinte) era uma eternidade. E a traição matou.
Havia as madrinhas de guerra, gente arranjada para fazer de conta que. E os casamentos por procuração.  O afeto ou o desejo do afeto tentavam suavizar aquela interrupção brutal com a vida, numa guerra não desejada, que lhes comprometia o futuro. Ainda hoje há entre nós cicatrizes que não sararam. Andam na consulta de stress pós-traumático.
Naquele tempo, quando se partia, primeiro não se sabia para onde se ia. E, segundo, não se sabia se havia regresso. Muitas lágrimas engrossaram o Tejo quando os navios zarpavam da Rocha Conde de Óbidos. Outros amores de mãe, da família, a dizerem adeus, no cais. Nos movimentos de um lenço, seria a despedida da própria vida? Muitos soldados, que da sua experiência só levavam os horizontes da remota aldeia, viveram o que pensaram ser outra liberdade. Não era como no Vietname, conta quem lá esteve. Nem havia orgias nos quartéis, nem os abusos que se possam imaginar.
Havia mulheres negras, que os outros diziam ser a pele macia e serem afáveis. A prostituição crescia à volta e dentro dos quartéis. Quem trilhou as picadas fala das negras desvirgindadas pelos missionários católicos. E do perigo das doenças venéreas, que atingiam companhias inteiras. Não havia preservativos, as bisnagas de sulfamida dadas pelos médicos militares não eram usadas. Alguém dissera que aquilo iri tirar a potência. Houve violações. Dos inúmeros soldados analfabetos, sabe-se que levavam para África experiências sexuais estranhas. Sem ternura nem afeto. De homossexualidade fala-se esporadicamente. Gestos houve-os, nem chegaram a relação, eram mais que resistir aquele sofrimento, àquela solidão do mato africano. Nas sentinelas, na calada da noite. O combate é excitante, disseram. A masturbação foi “a instituição” dos soldados. E um homem tem de ter o “escape” para as suas “necessidades”.
Do lado de cá da guerra, as mulheres viviam outro lado do amor. O compromisso continuava inviolável. De casamentos antes, foram raros os divórcios. E também aqui se marcou a diferença com o Vietname. Mas a guerra afeta o amor do após guerra. Talvez a mulher portuguesa fosse mais passiva e resistente. Como mães dos maridos?
Na consulta do stress pós-traumático há a experiência clínica desta memória da guerra colonial. Elas continuam com eles, embora com papéis distorcidos no casal. Continuam a manter o barco à tona. Uma corda a ligar ao passado. A paixão que houve. Depois da guerra, no regresso à realidade do outro, nem sempre se (re)descobre a paixão. 

(1)      Baseado num texto de Leonor Figueiredo, in DN, 27-09-1998

(In "O Combatente da Estrela", n.º 119, junho/2020)


10 de junho de 2020

CORONAVISÃO


Nunca se ouviu tanto falar no bicho. Já passei por dois séculos. Tenho muita vontade e a esperança divina de ainda poder continuar no XXI por mais alguns tempos. Se não houver ventos dominantes. Mas, neste planeta, sei que da vida tem de se pensar no aproximar do final da viagem. Paradísica que foi umas vezes. De hilariante outras. Entre familiares e amigos. Por algumas ocasiões, de permeio pequenas tempestades. Diversificadas pelos vários momentos da vida. Mas se estas são fáceis de passar, no planeta há mais teimosia. É inquebrantável. Talvez tenha razão. Revolta-se com quem se introduz nas suas entranhas. Num ápice, a Natureza dá um forte pontapé num pedaço planetário.
Clima? É um problema global! Eu quero é a minha questão local. Assim, teremos que para “palavras loucas, orelhas moucas”. Ainda que alterem as estações do ano.
O bicho estava sonolento. De repente recordou outros seus “familiares” de outras eras – 1918, 1957, 1968 – as mais evidentes. Na sua perspicácia de pezinhos de lã opta pelo seu local habitual, e aí começa a estender os seus tentáculos, qual polvo enfurecido.
Começaram a desaparecer as palavras já gastas: “Fique em casa” e “Vamos todos ficar bem”.  Outras vieram contrapor-se: “Nada vai ser igual”. Alguém se apressou a apelidar de serem vozes de “velhos do Restelo”. Tendo em conta uma das leis mais importantes do Universo, presente na essência de quase tudo o que nos cerca – a “Teoria do caos”.  Descoberta do meteorologista americano Edward Lorenz de que “fenómenos aparentemente simples têm um comportamento caótico quanto a vida”.
No dia em que escrevi este texto desci o vale de Manteigas com um amigo de longa data. Depois de tomar um cafezinho no David, nas Penhas da Saúde. Numa esplanada da vila foi a vez de uma cerveja. Havia necessidade de soltar aquele grito do Ipiranga de D. Pedro, depois de tanto tempo de confinamento. Eu e o meu amigo estivemos na mesma altura no serviço militar. A Guerra do Ultramar acabou por ter lá um de nós. Esse tempo, apesar de já a uma distância considerável, deixou marcas nas nossas vidas e nada ficou igual. Dizia-me o camarada que era a segunda vez por que passava por uma situação terrível. Como traumática foi para milhares de portugueses que ainda hoje sofrem dessa doença psicológica. As novas gerações nem sequer fazem ideia do que foi esse tormento. Também muitos poucos, ainda vivos, já centenários, passaram pela pandemia de 1918. A que mais se assemelha a esta por que estamos passando.
Naquele tempo ainda não existia a televisão nem a Internet. Nem sei se também se falava em voltar ao “novo normal”. Embora já existisse o Diário de Notícias.
A televisão só iniciaria em Portugal em 1957. De um só canal – a RTP.  A preto e branco. Os mais velhos lembram-se vagamente. Os mais novos não têm sequer ideia dos dois botões de rodar que havia na parte de trás dos televisores. E a que invariavelmente tínhamos de recorrer para ver televisão: um deles era o botão de sincronismo. Fixava a imagem na base do tempo que impedia que viajasse para cima e para baixo sem parar. O outro era o da obliquidade. Repunha as proporções certas no ecrã.
Neste ano da graça de 2020, os vários canais televisivos viram-se forçados a alterar os seus programas. Com videoconferências em vez do presencial. Por força da famigerada pandemia. Enquanto outros repetem programas. Mas o tema de todos os dias é esse – a pandemia. Os números de mortos, infetados, hospitalizados e recuperados. Em Portugal, na Europa e no Mundo, mormente Brasil e EUA. Números e mais números pandémicos. Muitas repetições ao longo do dia.
Parece que já vai abrandando. Estamos perto da época dos fogos. Mas, de quando em vez – na zona da capital – surgem agora uns novos focos. Afinal foi só mudar a letra da mesma palavra. Por sinal também uma consoante. Chegou o futebol. Os algarvios já ganharam o primeiro encontro. Tínhamos antes todos os canais saturados à noite. Não valia a pena fazer zapping. De comentadores da bola só mudavam as caras. Paradoxalmente no enfadonho de sempre as mesmas. No óbvio de cada canal. O regresso aí está. Pelo que se via com uns certos senhores dos painéis futebolísticos havia grande fervor. Chegavam às do cabo. Não vai haver problema. Porque os novos moldes de conferência assim o resolvem. Mas certamente que o enfado vai regressar.
Com este novo normal esperemos que os tempos de ocupação dos espaços televisivos possam passar a ocupar posições diversificadas de interesse geral. Há que inovar. E eliminar programas repetitivos. Como repetitivas as mesmas notícias. Sabemos que não é fácil. Tem de haver adaptações.
Pela minha parte, não vou falar mais no bicho. Outros temas esperam por mim.

(In "Jornal fórum Covilhã", de 10-06-2020)