10 de junho de 2020

CORONAVISÃO


Nunca se ouviu tanto falar no bicho. Já passei por dois séculos. Tenho muita vontade e a esperança divina de ainda poder continuar no XXI por mais alguns tempos. Se não houver ventos dominantes. Mas, neste planeta, sei que da vida tem de se pensar no aproximar do final da viagem. Paradísica que foi umas vezes. De hilariante outras. Entre familiares e amigos. Por algumas ocasiões, de permeio pequenas tempestades. Diversificadas pelos vários momentos da vida. Mas se estas são fáceis de passar, no planeta há mais teimosia. É inquebrantável. Talvez tenha razão. Revolta-se com quem se introduz nas suas entranhas. Num ápice, a Natureza dá um forte pontapé num pedaço planetário.
Clima? É um problema global! Eu quero é a minha questão local. Assim, teremos que para “palavras loucas, orelhas moucas”. Ainda que alterem as estações do ano.
O bicho estava sonolento. De repente recordou outros seus “familiares” de outras eras – 1918, 1957, 1968 – as mais evidentes. Na sua perspicácia de pezinhos de lã opta pelo seu local habitual, e aí começa a estender os seus tentáculos, qual polvo enfurecido.
Começaram a desaparecer as palavras já gastas: “Fique em casa” e “Vamos todos ficar bem”.  Outras vieram contrapor-se: “Nada vai ser igual”. Alguém se apressou a apelidar de serem vozes de “velhos do Restelo”. Tendo em conta uma das leis mais importantes do Universo, presente na essência de quase tudo o que nos cerca – a “Teoria do caos”.  Descoberta do meteorologista americano Edward Lorenz de que “fenómenos aparentemente simples têm um comportamento caótico quanto a vida”.
No dia em que escrevi este texto desci o vale de Manteigas com um amigo de longa data. Depois de tomar um cafezinho no David, nas Penhas da Saúde. Numa esplanada da vila foi a vez de uma cerveja. Havia necessidade de soltar aquele grito do Ipiranga de D. Pedro, depois de tanto tempo de confinamento. Eu e o meu amigo estivemos na mesma altura no serviço militar. A Guerra do Ultramar acabou por ter lá um de nós. Esse tempo, apesar de já a uma distância considerável, deixou marcas nas nossas vidas e nada ficou igual. Dizia-me o camarada que era a segunda vez por que passava por uma situação terrível. Como traumática foi para milhares de portugueses que ainda hoje sofrem dessa doença psicológica. As novas gerações nem sequer fazem ideia do que foi esse tormento. Também muitos poucos, ainda vivos, já centenários, passaram pela pandemia de 1918. A que mais se assemelha a esta por que estamos passando.
Naquele tempo ainda não existia a televisão nem a Internet. Nem sei se também se falava em voltar ao “novo normal”. Embora já existisse o Diário de Notícias.
A televisão só iniciaria em Portugal em 1957. De um só canal – a RTP.  A preto e branco. Os mais velhos lembram-se vagamente. Os mais novos não têm sequer ideia dos dois botões de rodar que havia na parte de trás dos televisores. E a que invariavelmente tínhamos de recorrer para ver televisão: um deles era o botão de sincronismo. Fixava a imagem na base do tempo que impedia que viajasse para cima e para baixo sem parar. O outro era o da obliquidade. Repunha as proporções certas no ecrã.
Neste ano da graça de 2020, os vários canais televisivos viram-se forçados a alterar os seus programas. Com videoconferências em vez do presencial. Por força da famigerada pandemia. Enquanto outros repetem programas. Mas o tema de todos os dias é esse – a pandemia. Os números de mortos, infetados, hospitalizados e recuperados. Em Portugal, na Europa e no Mundo, mormente Brasil e EUA. Números e mais números pandémicos. Muitas repetições ao longo do dia.
Parece que já vai abrandando. Estamos perto da época dos fogos. Mas, de quando em vez – na zona da capital – surgem agora uns novos focos. Afinal foi só mudar a letra da mesma palavra. Por sinal também uma consoante. Chegou o futebol. Os algarvios já ganharam o primeiro encontro. Tínhamos antes todos os canais saturados à noite. Não valia a pena fazer zapping. De comentadores da bola só mudavam as caras. Paradoxalmente no enfadonho de sempre as mesmas. No óbvio de cada canal. O regresso aí está. Pelo que se via com uns certos senhores dos painéis futebolísticos havia grande fervor. Chegavam às do cabo. Não vai haver problema. Porque os novos moldes de conferência assim o resolvem. Mas certamente que o enfado vai regressar.
Com este novo normal esperemos que os tempos de ocupação dos espaços televisivos possam passar a ocupar posições diversificadas de interesse geral. Há que inovar. E eliminar programas repetitivos. Como repetitivas as mesmas notícias. Sabemos que não é fácil. Tem de haver adaptações.
Pela minha parte, não vou falar mais no bicho. Outros temas esperam por mim.

(In "Jornal fórum Covilhã", de 10-06-2020)


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