Um sonho de alguém que, como muitos do presente, ainda
vão andando por aí.
Ontem ainda acariciava o
tempo. E vivia a noite sem se importar de marcar os seus dias. Esses momentos
de um tempo que se dissipava na contagem decrescente da sua vida. Foram mil e
um projetos. Muitos deles não passaram dum contínuo sobrevoar pelo espaço
sideral. As milhentas esperanças juntaram-se como que um bando de pássaros seguindo
viagem para outros rumos, em mudança de estação. E ficou impávido. Esperanças
então perdidas numa perplexidade constante de agir contra os ventos contrários.
Que por força duma visão obscura os seus olhos, procurando o Céu, tinham, no
entanto, o coração imanado na terra.
Ontem ainda se regalava com o
tempo. Pensando que a vida lhe iria sempre sorrir, esbanjava esse mesmo tempo,
acreditando que o podia comandar. E para que lhe pudesse imprimir a sua ordem,
numa tacanhez pensante, pôs-se a correr, pensando que ia na sua frente, que o
tinha ultrapassado. Começou a sentir um cansaço em demasia. Ignorou factos,
mesmo do passado recente, pensando que se conduzia, por si próprio, ao futuro.
Precedia do seu egocentrismo.
Rejeitava qualquer conversa sobre quem lhe aconselhava a meditar naquelas
névoas que persistiam em afligir os sensatos. Permutou uma alteração da sua
conduta por sorrisos irónicos. Da qual até opinava que ele queria o melhor. E,
assim, por si o mundo era criticado num desplante em exuberância.
Ontem ainda não vislumbrava os
erros para onde se ia direcionando. Mas, num ápice, no acordar dum sonho, não
aquele que comanda a vida, sobressaltou-lhe o espírito. Tivera uma juventude
insolente, atingiu o tempo de homem feito, não acompanhou o ritmo, se
lancinante, também gratificante, entre esses ventos e marés da própria vida. Perdeu
tempo, tempo desregrado.
A cometer loucuras, no fundo
nada lhe deixa para a vida no adir dos anos, dos quais nem deu conta que iam
passando. Mas não deixou de acreditar no que viu no seu espelho que lhe mostrou
várias rugas no rosto, que não conseguiu disfarçar.
Ontem ainda mantinha a sua
incredulidade em tudo, naquele seu indómito ceticismo.
E, assim, na morbidez do seu
pensamento, naquele enfado dos continuados confinamentos, não ligou, não se
importou com o que diziam, a saturação tornou-se mais do mesmo para si.
O bicho mau, que diziam
existir, mas que ele jamais viu, ou sentiu, para ele não contava. Não estava no
seu íntimo tapar a cara e o nariz, fugir das pessoas, deixar de se animar na
copofonia.
Ontem ainda, quando acordou
dum novo sonho, tinham-lhe dito que tivera uma grande sorte. Estava a sair dos
cuidados intensivos. Só se lembrou, e agora indelevelmente, depois de estar
fechado em quatro paredes e não reconhecer ninguém, de que, afinal, para que
serviu todo este seu comportamento? Esta lição ficou-lhe bem estudada, para
toda a vida! Afinal, seus amores morreram antes de existirem, e seus amigos
partiram e não mais retornarão. Por sua culpa criou o vazio em torno de si
mesmo.
Gastou toda a sua vida, entre
o melhor e o pior, baldando-se do melhor. Já não lhe rodeiam sorrisos e verte-se
em lágrimas de arrependimento.
Ontem foram aqueles seus nefastos sonhos, como castelo de cartas; hoje
vive no seu isolamento que insensatamente criou.
(In "Notícias da Covilhã", de 06-05-2021)
Sem comentários:
Enviar um comentário