28 de janeiro de 2005

D. QUIXOTE E OS SANCHOS-PANÇAS

No domingo, 16 de Janeiro, lá estivemos na Catedral da Guarda, na cerimónia da tomada de posse de D. Manuel da Rocha Felício, como Bispo coadjutor, com direito de sucessão a D. António dos Santos.
O templo estava repleto. Era a grande festa, com forasteiros de todas as zonas da diocese da Guarda. As pessoas baixinhas a empurrarem para a frente as mais altas, procurando um espaço, um pequeno ângulo, tentar sobrepor-se às cabeleiras mais elevadas, algumas ainda a cheirar a cabeleireiro, numa ânsia de poderem ver o novo Bispo, e o restante cortejo, já que lhes ofuscavam as suas vistas, mesmo pondo-se nos bicos dos pés.
Vários presidentes de câmaras dos concelhos da diocese da Guarda, e outras entidades, assistiram, como nós, ao grande cortejo de vários Bispos, liderados pelo Cardeal Patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, com dezenas e dezenas de padres.
E vieram gentes, muitas gentes, algumas com os fatos a cheirar a naftalina; gentes dos meios rurais aos citadinos; alguma comunicação social atrasada; seminaristas engravatados; pessoas com cartazes das suas terras; davam uma vivência forte ao acto, há muito não vista.
Desejamos, de facto, uma voz que se faça ouvir, num grande eco, como algumas excelências reverendíssimas o fizeram em determinadas regiões do País, assim tendo contribuído para que ficassem marcas vincadas das suas personalidades, não só nessas cidades, como em todo o País, porque as suas vozes não doíam.
Uma palmada nas costas, e, Manuel Lúcio, de Manteigas, falou-nos do Noticias da Covilhã, ali mesmo na catedral.
Afinal, Notícias da Covilhã já completou 92 anos no passado dia 12 de Janeiro, e, quando este Semanário – o mais antigo da Região – havia ultrapassado meio século, iniciámos o primeiro contacto escrito, com um texto publicado no dia 14/11/1964, já lá vão 41 anos! Parabéns, Notícias da Covilhã.
Começámos o ano de 2005, como numa triste e leda madrugada. Enquanto uns acordaram com sonhos lindos, um formigueiro de cidadãos levantou-se atarantado. Que mal fizemos nós, Senhor?!
Mas, neste ano, há várias efemérides: a morte do escritor Miguel Torga, há dez anos, em 17 de Janeiro de 1995, deixando uma obra com meia centena de títulos; e também a morte de Inês de Castro, acontecida há 650 anos, em 7 de Janeiro de 1355.
Sobre o que se está a passar no País, com o Cortejo de Oferendas a favor do dia 20 de Fevereiro, continuam as trapalhadas, as gaffes, as promessas, os avisos, os insultos, as ironias, as admirações, as estranhezas, o insólito; as contradições; o que hoje é verdade, amanhã é mentira; alvoroçam-se os boys e as girls, todos querendo pegar na caldeirinha do Sr. Prior, nesta aldeia grande – que este ano a Páscoa é mais cedo.
E, por isso, nada mais apropriada que uma efeméride mais para este ano: a morte do criador do Zé Povinho, Rafael Bordalo Pinheiro, há 100 anos, na madrugada de 23 de Janeiro de 1905. Hoje seria de oportunidade o seu semanário “A Paródia”.
Mas, também os 400 anos de “D. Quixote de La Mancha”, por Miguel de Cervantes, constituem uma outra efeméride para este ano.
Com o País suspenso numa das maiores crises da sua existência, navegando na fronteira entre a esperança e o desespero, esperemos que D. Quixote, que chegará à Mancha em 20 de Fevereiro, não tome os moinhos por gigantes, e com “choque de gestão” ou “plano tecnológico”possa encontrar o caminho certo para a sua Dulcineia.
Durante a marcha de D. Quixote, com o seu cavalo Rocinante, e com os pensamentos naquela sua dama, já não encontramos um único Sancho Pança, mas vários sanchos-panças, servos fiéis de D. Quixote.
Esperamos que D. Quixote encontre o rumo certo, e que os sanchos-panças possam, de facto, ser os fiéis escudeiros, pois necessitamos que La Mancha prospere, mas antes, recupere, em marcha acelerada.
Para ultimar esta crónica, de novo um recado à Câmara da Covilhã: quando é que intervém na limpeza da cidade, tornando-a mais limpa, eliminando, de vez, com as cagadelas dos cães e dos gatos, que grassam pelos passeios, e não só, de toda a cidade, agora em que se inicia a despoluição das nossas ribeiras.
Crie-se legislação adequada, como sucedeu em Braga, e noutros concelhos do País, obrigando os donos dos canídeos e felinos a respeitarem o ambiente. Ou é necessário chamar D. Quixote?

(In “Notícias da Covilhã”, de 28/01/2005)

14 de janeiro de 2005

A GÉNESE DO NATAL

Quando estas linhas forem lidas já passou o Natal. O bulício dos preparativos para a grande noite, em alternância com os votos de Festas Felizes; o encontro dos familiares e amigos; a alegria de juntar os filhos e os netos; mas também o inconformismo por um salário ainda por receber; o não ter podido comprar tudo o que desejava; o emprego perdido ou ainda não conseguido; o familiar doente; a cadeira que perpetuamente ficou vazia; tudo isto não altera o sentido da quadra natalícia.
É também a altura mais propícia para a solidariedade, procurando-se auxiliar um pouco mais os carecidos de bens materiais, não só os duma perene indigência, mas todos quantos foram envolvidos numa pobreza envergonhada, ou apanhados na rede de uma doença.
A pobreza não reside somente na falta de recursos para a subsistência física, é também na insuficiência de meios para participar na vida humanizada da comunidade: falta de casa, falta de trabalho, falta de educação, falta de saúde, falta de desenvolvimento sustentado. E, em contraste, pode ser pobre quem tem tudo, mas vive no desespero da solidão.
A par das carências materiais, outros males emergem e ressaltam neste período natalício, de maiores dificuldades – que, há três ou quatro décadas era de inexistente preocupação – como a droga e um acentuar da profissão mais velha do mundo, a par de problemas de índole psíquica, difíceis de solucionar.
O dilúvio de divórcios, por dá cá aquela palha, em tempos duma modernidade muitas vezes não adaptável ao sentido da condição humana, reduz drasticamente os anos de uma união a dois, de tal forma que cada vez há mais Natais em que os dias 24 e 25 estão possuídos do forte desejo para que surja bem depressa o dia seguinte.
Se é certo que, felizmente, vemos surgir com alguma frequência quem procure dar um pouco do seu tempo em prol de instituições de solidariedade social, impregnados dum verdadeiro espírito de ajuda a outrem, alguns há que não passam duns verdadeiros mercenários da caridade, no evidente desejo do protagonismo, com actos farisaicos, pondo em xeque as próprias instituições onde se encontram inseridos.
O Natal de outrora tinha outros cambiantes; o Natal de hoje virou num festival de consumo, onde as crianças se vêem rodeadas de inúmeros brinquedos, que bem depressa os colocam de lado.
Mas, afinal, quais as origens do Natal?
As versões são variadas, mas tudo gira à volta do solstício de Inverno, como anúncio do Sol triunfante sobre a noite e o frio. O Sol era então a fonte e símbolo de vida que, ciclicamente, desaparecia cada vez mais cedo no horizonte. Segundo o Diário de Notícias, em tempos remotos os povos temiam a estação do Inverno e, ignorantes dos movimentos da natureza, interrogavam-se se não mais voltasse o verde que dá vida aos campos; e se não mais acordasse o Sol, estendendo-se uma eterna noite? Com ansiedade os povos buscavam um sinal de esperança no renascer da vegetação, da vida.
A míngua dos dias levava os povos a temerem as noites do solstício de Inverno e a acenderem fogueiras e madeiros, chamas vivas de luz, apelando à aurora. Quando passava a noite mais longa e a manhã nascia, os povos saudavam o sol. A pressão dos cultos pagãos, e de correntes no seio na Igreja, levou esta a assumir como celebração o nascimento de Cristo ao mundo, havendo a dificuldade da sua data. É então estabelecida a data de 25 de Dezembro, por volta do século IV, num desejo de dar um sentido cristão a uma festa pagã. Somente S. Lucas fala dos pastores e dos seus rebanhos, vindo saudar o Menino, o que, obviamente se enquadraria na Primavera. Foram fixados o dia 25 de Março, equinócio da Primavera e até o dia 20 de Maio. Adaptando como estratégia contra a popularidade do culto de Mitra, a Igreja apropriou-se do simbolismo do imaginário popular e escolheu para assinalar o nascimento de Jesus, que passa a ser festejado a partir do século IV, depois do cristianismo ser declarado religião oficial do Estado pela conversão do Imperador Constantino. Não houve unanimidade nos cristãos que se dividiram em duas datas, ambas cobrindo o calendário das festas pagãs. A Igreja do Oriente escolhe para nascimento e simultaneamente para adoração pelos Reis Magos e baptismo de Jesus o 6 de Janeiro, Dia da Epifania, data que, no calendário juliano, encerrava o solstício de Inverno. A Igreja do Ocidente escolhe o 25 de Dezembro, fundamentando esta opção na data considerada como concepção de Cristo a 25 de Março, o que perfaz exactamente nove meses. E, assim, no ano 336 surge a primeira referência escrita ao Natal – 25 de Dezembro, nascimento de Cristo, dia fixado definitivamente em 354 pelo calendário fitocaliano, e, a partir de 379, imposto por Roma a todo o Império. O Sol cedia assim o lugar ao Menino. Santo Agostinho, admitindo, implicitamente, a origem pagã da data natalícia, exortou os cristãos a festejarem a 25 de Dezembro, não o Sol, mas aquele que criou o Sol.

(In “Notícias da Covilhã”, de 14/01/2005)