23 de dezembro de 2005

AS CERTEZAS DESTE NATAL

Uma “couvada”, em Casegas, reuniu cerca de setenta convidados, no dia 16, onde César, e o filho, fortaleceram amizades num ambiente de tradição natalícia.
No lagar, junto ao rio, numa noite gélida, uma grande panela, repleta de couves, bacalhau e batatas, tudo bem regado com azeite, aquecia nossas almas, onde não faltou bom vinho, chouriça e outras coisas mais.
Aumentaram os amigos. Afinal, quem redige estas linhas, carvalhense por nascimento, poderia ter as suas origens em Casegas. Há quase seis décadas, ainda no ventre de minha mãe, deixei esta aldeia para ir nascer na Pousadinha.
O professor Octávio, e a mulher, Mariana; o padre Nicolau; o Zeca Craveiro e a mulher, professora Agostinha; ainda sugeriram aos meus progenitores para eu ali nascer. Viviam junto ao cruzeiro e o pai dava aulas na primária.
Não querendo ali ficar, lá foi a bagagem no dorso de uma égua; e a família num carro de bois, atravessando a ribeira, até ao Ourondo, onde pernoitaram em casa de familiares; depois foi tomar a camioneta para Aldeia do Carvalho.
Como eram as acessibilidades e os tempos de outrora!...para já não falar das dificuldades de outra natureza, como a escassez de recursos materiais e financeiros, no final da II Grande Guerra!
No entanto, nos dias de hoje, com muitas estradas rasgadas, mais facilidades de vida, com autênticas revoluções tecnológicas; o aparecimento da televisão, a evolução da rádio, o surgimento de meios auxiliares para o trabalho e vivência, como os aparelhos electrodomésticos, das máquinas de lavar ao micro-ondas; depois, da máquina de calcular à informática; do computador ao telemóvel; mesmo assim ainda persistem dificuldades.
As últimas gerações, pós 25 de Abril de 1974, não vieram encontrar a escassez de meios de viver, como antes; mas tão só um mundo de uma diversidade de ofertas, aliadas a forte publicidade, atraindo muitas mentes ao despesismo, e, daí, um passo para muitos endividamentos.
Mas, na esperança de melhores dias, no horizonte de um país melhor, nas expectativas de emparceiramos com os melhores da Europa, chegámos a ser o exemplo de como se faz uma revolução com flores, como sentimos que já não estávamos orgulhosamente sós. Respirámos por já não sermos os últimos.
Surge a integração na elite europeia, recebemos fundos comunitários e, logo aqui, há alguma desonestidade na sua utilização, numa ausência de rigor pelo controle dos serviços estatais, em vários quadrantes da sociedade portuguesa. Seguimos o caminho da tartaruga, enquanto há dinheiro da Comunidade. Outros países, companheiros do mesmo horizonte, levaram a sério as “ofertas” postas à disposição, evitaram alguns conflitos na governação, e, hoje, são um exemplo duma salutar economia.
O Leste vê o “seu” muro derrubado. Alguns países, mais frágeis, juntam-se ao nosso grupo comunitário. São caloiros! Contudo, sabem aproveitar a vitaminação; a nós falta-nos o ferro e somos ultrapassados até por alguns desses caloiros!...
Os vários governos vão deixando rastos de alguma inoperância e, alguns, de uma vergonhosa situação do quase país ingovernável.
O resultado é chegarmos a mais um Natal, e não termos conseguido acautelar o confrangedor número de empresas a encerrar; muitas delas inevitáveis face às conjunturas do mercado e aos efeitos da globalização, com os papões da China e da Indía, além dos já caloiros de Leste!
O formigueiro dos que ficaram sem trabalho avolumou-se; as universidades não conseguem colocar todos os licenciados; muitas famílias, outrora a viverem desafogadamente, entram no rol duma pobreza envergonhada; o país quase que sobrevive.
Neste Natal não vão faltar as certezas: o número de desempregados aumentou, em contraste com a zona euro, onde diminuiu; a quantidade de cidadãos a reformar-se, assustados, engrossou; há autarquias onde, desde o presidente aos vereadores, quase todos usufruíram das benesses do Estado providência, e são Câmaras de reformados com reformas de luxo! Muitos cidadãos vão encobrir as suas lágrimas, neste Natal, por vergonha, num desespero pela perda de empregos de quase toda a família; As instituições de solidariedade social vão ter mais trabalho.
E vai haver o desatino com as eleições presidenciais, com guerras civis entre partidos, na certeza, também, neste Natal, de que qualquer dos três potenciais candidatos que possa vir a ganhar, em nada vai alterar o estado da democracia, pois a ditadura já foi riscada dos dicionários.
E, nesta “apagada e vil tristeza” em que ousamos sobreviver, as certezas deste Natal também vão de algum contentamento pelas decisões últimas da UE com a atribuição dos fundos europeus a Portugal; e, pensamos, que as certezas existem da necessidade das reformas de fundo a empreender pelo actual governo, com sacrifícios globais, e não só de alguns. Temos que sair da cauda da Europa e do mundo, para que o desânimo se transforme na esperança da esperança.

(In “Notícias da Covilhã”, de 23/12/2005; e diário digital Kaminhos)

2 de dezembro de 2005

O RANGEL DAS BICICLETAS

Por quase todo o Portugal encontramos figuras populares que dão vida às localidades onde se encontram inseridas. Por vezes, deixam a memorização de façanhas que vieram a proporcionar, evidência de que a popularidade gera simpatia numa salutar vivência.
Um dos meios por que surgiu uma das envolventes populares dá pelo nome de “bicicleta”. A sua génese está num veículo criado em 1790 pelo francês De Sivrac. O registo da “paternidade” da bicicleta, ou seja, da introdução do ciclismo em Portugal, atribui-se a Artur Seabra e Herbert Dagge, português, filho de estrangeiros, entre 1878 e 1895. Mas é em 1894 que surge o primeiro herói português em velocipedia – o figueirense José Bento Pessoa – a ganhar uma medalha de ouro, fazendo deste jovem a primeira grande figura do ciclismo português. A partir daqui, e depois com o início da Volta a Portugal, em 1927, emergiram uma série de craques, alguns com a sua categoria na internacionalização; e, outros, representando equipas estrangeiras de grande gabarito, sobressaindo nomes sobejamente conhecidos da grande maioria dos portugueses.
Em 14 de Dezembro de 1899 foi criada a União Velocipédica Portuguesa, presidindo à Comissão Instaladora o segundo Conde de Caria, pois, até essa data, o ciclismo português estava sujeito às regras da Real União Velocipédica Espanhola; mas só em 1 de Julho de 1901, por despacho da Secretaria do Estado dos Negócios do Reino, a União Velocipédica Portuguesa é legalmente constituída, até que em 1944 é transformada na Federação Portuguesa de Ciclismo.
É assim que, entre o ciclismo e o futebol, que também ainda era adolescente em Portugal, surgem opções da sua prática e entusiasmo, ou mesmo no entrelaçar de ambas as modalidades.
Vem a propósito, esta nota preambular, para uma eventual justificação pelo entusiasmo da popularidade por que emergiram estas modalidades do desporto, às quais a Covilhã e a nossa região não foram alheias.
Ainda há pouco mais de uma década, um jovem covilhanense, natural da Pousadinha, dava cartas na Covilhã, pelo seu grande entusiasmo pela bicicleta, ganhando corridas na região, e envolvendo-se em grandes passeios de bicicleta; quais desafios, como o percorrer distâncias em cima do velocípede, da Covilhã para Itália, e da Itália para a Covilhã. Uma vez foi ovacionado, ao chegar ao Pelourinho, onde o aguardavam alguns jornalistas, entre os quais do “Correio da Manhã” .
O João Rato licenciou-se na UBI, e arranjou trabalho na Itália, onde conheceu a Cristina Mazza, bonita e simpática italiana, com quem casou. Sempre que vem a Portugal não deixa de me visitar, como recentemente aconteceu.
Entretanto, uma outra figura popular covilhanense, simples quanto amável, modesta quanto simpática, também natural da Vila do Carvalho – Fernando Costa Carvalho –, mais conhecido por Fernando Rangel, há uns anos atrás era o rei da bicicleta, na cidade, e na região, com uma força entusiasmante entre as duas rodas e um pedal, e o futebol da sua terra, que a ambos acarinhou. Desde os 5 anos que se agarrou a uma bicicleta. Era então tecelão numa das fábricas da cidade, e, ao mesmo tempo, mecânico de bicicletas na oficina de seu pai, João Rangel, em Aldeia do Carvalho.
Vivia-se também a emoção do futebol, onde singravam alguns clubes de nomeada na Covilhã, além dos Leões da Serra. Um deles, que aglutinou uma boa mão cheia de adeptos, originário do meio fabril, optou por representar as cores do Belenenses e, nele se filiou, com a designação de Clube de Foot-Ball “Os Covilhanenses”. Aí jogava João Rangel, pai do Fernando. Entretanto, era o filho que dava cartas na região, ganhando corridas, chegando a Campeão da Beira Baixa. Corria sempre individualmente.
Fernando Rangel era aventureiro e não olhava aos perigos. Chegava a andar de bicicleta em cima das grades das pontes de S. Domingos e de Mártir-In-Colo.
Mas uma das muitas curiosidades de Rangel resida no facto de se montar na sua bicicleta, às seis da manhã, a caminho do Campo das Falésias, em Lisboa, sempre que o Sporting da Covilhã (então na I Divisão), ia jogar com o Belenenses. Após o jogo, regressava à Covilhã, novamente na sua bicicleta, até anoitecer, altura em que apanhava o comboio. Eram onze horas a pedalar.
Muitos se recordam de ir dar uma voltinha de bicicleta, alugando uma ao Rangel, no Campo das Festas.
Pois, ainda hoje, com 74 anos, Fernando Rangel dá umas voltinhas, durante duas horas, aos domingos, na sua bicicleta.
Pessoas simples, talentosas, que, entretanto, vivem no anonimato, e se orgulham de ser covilhanenses.

(In “Notícias da Covilhã”, de 02/12/2005”)