Escrevo esta crónica em 23 de julho de 2014, exatamente no
dia em que, em Dili (Timor), o Presidente da República e o Primeiro-Ministro de
Portugal participam na Cimeira da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa,
vulgo CPLP. Mas já lá vamos.
Há um mês atrás, mais precisamente no dia 27 de junho,
segundo as narrativas, como agora sói dizer-se, comemoraram-se os oitocentos
anos sobre o mais antigo documento oficial conhecido em língua portuguesa, a
nível de Estado – o mais antigo documento régio na nossa língua, o qual se
reporta ao testamento do terceiro rei de Portugal, D. Afonso II.
Poderia ter sido uma carta de amor, dum príncipe para a sua
amada, por exemplo, mas não seria considerado, porque se trataria dum
documento, ainda que autêntico, mas de cariz particular.
Mesmo tendo em conta que a data daquele documento é de 27 de
Junho de 1214, originando assim o nascimento da Língua Portuguesa, certo é que,
como qualquer ser, ele já existe antes de nascer.
Conforme refere José Ribeiro e Castro, “Comparando, digamos,
pois, que esses outros textos da nossa língua, coevos ou anteriores – Notícia de Fiadores, Auto de Partilha,
Notícia de Torto, Cantigas de poesia trovadoresca – são os “pontapés na
barriga da mãe” da nossa língua em processo final de gestação, de afirmação e
de ascensão”.
D. Afonso II limitou-se a usar uma língua que já existia e
já era usada pelo seu povo, antes de ele a usar também. Aquele documento é já
considerado escrito em português e não galaico-portucalense e, além disso, é
arredado o latim muito antes de D. Dinis, em 1290, ter tornado oficial e
obrigatório o curso e o uso do português.
Santo António de Lisboa (Fernando de Bulhões), que nascera
antes do surgimento da Língua Portuguesa, viria a falecer 18 anos depois do
nascimento desta mesma língua.
Assumida como oficial, séculos volvidos tem uma enorme
evolução, sendo uma das mais importantes línguas globais contemporâneas: a
terceira língua europeia global, terceira língua nas Américas, a terceira
língua do Ocidente, a quarta mais falada do mundo, a mais usada no Hemisfério
Sul e crescente em África. A língua em Portugal representa 17% do PIB. Perante
os desafios da globalização, a língua portuguesa é falada em todo o mundo por
quase 300 milhões de pessoas.
“A língua que falamos
não é apenas comunicação ou forma de fazer um negócio. É uma forma de sentir e
de lembrar; um registo, arca de muitas memórias; um modo de pensar, uma maneira
de ser – e de dizer. É espaço de cultura, mar de muitas culturas, um traço de
união, uma ligação. É passado e é futuro; é história. É poesia e discurso,
sussurro e murmúrios, segredos, gritaria, declamação, conversa, bate-papo,
discussão e debate, palestra, comércio, conto e romance, imagem, filosofia, ensaio,
ciência, oração, música e canção, até silêncio. É um abraço. É raiz e é
caminho. É horizonte, passado e destino” (Tribuna Manifesto 2014 - Público).
A língua portuguesa cresceu e modificou-se em caminhos
diversos conforme as geografias. Portugal e Brasil manteve uma unidade
ortográfica até aos últimos tempos da monarquia portuguesa mas caminhou para
uma separação em termos de expressão linguística.
Devido à colonização, África viu-se em dificuldades com o
português como língua oficial porquanto, nesse papel, estavam as línguas
maternas; e não as do colonizador, com os seus crioulos próprios; outros, as
línguas correspondentes a etnias. Os movimentos de libertação africanos optaram
pelo português no momento de escolher uma língua oficial devido à necessidade
de evitar divisões.
Depois da celebração destes 800 anos da Língua Portuguesa,
agora, a pretexto da mesma língua, assistimos a um vergonhoso ato de submissão
que a História de Portugal vai registar, através da admissão oficial da Guiné
Equatorial na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), conforme
referimos no primeiro parágrafo deste texto.
Tendo Brasil e Angola estado de acordo, assim como os
restantes países de língua de expressão portuguesa, Portugal, conformado à sua
pequenez, a fim de não ficar isolado, lá seguiu curvando-se a tamanha
desfaçatez.
Não lhe foi possível levantar alto a bandeira da Língua,
apesar de alguma resistência do Presidente da República e do Primeiro-Ministro
portugueses.
É a diplomacia que temos,
“que é, por um lado a diplomacia da concórdia e do apaziguamento e por outro a
da subserviência e da permissividade”, de se sentir incapaz de dizer
“basta” à farsa de apresentar um rosto “humano” a uma ditadura que só deveria
merecer condenação e desprezo.
E, no meio disto, mais interessados estavam todos os outros
países em trazer para a Comunidade um novo parceiro, o nono, com o seu petróleo,
porque, quando Lula da Silva, então Presidente do Brasil, apoiou a candidatura
de Teodoro Obiang, o responsável pelas Relações Exteriores do Brasil lá soube
dizer: “Negócios são Negócios”.
Quando é o dinheirinho a cintilar não há olhos voltados para
os direitos humanos, sejam lá os países que forem, e as palavras leva-as o
vento. Que o digam os ausentes da Cimeira, Dilma Rousseff (Brasil) e José
Eduardo dos Santos (Angola). E, até, ironia da história, o ditador Obiang foi
levado de início pela mão de Xanana Gusmão e “aceite” sem qualquer votação à
custa de um pontapé no protocolo, entrando para a foto de família, obviamente
com ele, tirada extraordinariamente, antes de consumada a admissão.
Era tal o forte desejo que Teodoro Obiang entrasse para a
CPLP, com estes atropelos ao protocolo, que a vergonha imperou na Cimeira,
passando uma rasteira aos representantes do Estado Português. Agora certamente
iremos pagar um preço alto que não nos livra do peso da vergonha.
Valha-nos ao menos o Presidente da República que se impôs
para que ficassem registadas disposições a cumprir por Obiang no que concerne à
abolição da pena de morte e à introdução da língua portuguesa no seu país,
disposições a que o homem da Guiné Equatorial se estava a esquivar.
Vamos aguardar pelos novos capítulos desta novela política,
que dá para pensar, lá isso dá!
(In "fórum Covilhã", de 29.07.2014)