Na minha infância, que já
dista sete décadas, viveu-se com o medo da Rússia, império do mal; do comunismo
e suas ideias subversivas; e, nas igrejas, com as missas em latim, rezava-se
pela sua conversão. Em tempo de Guerra Fria, e ainda antes do Concílio Vaticano
II, falar-se de Fátima, ou da Cova da Iria, era implicitamente falar-se das
aparições de Nossa Senhora aos pastorinhos, numa ótica de conversão dos homens
do mal. Como ainda hoje. Eles, pastorinhos, são os irmãos Jacinta e Francisco
Marto, e a sua prima Lúcia. Sempre, ou quase, sob o signo do temor, como a
visão do inferno apresentada aos referidos pastorinhos, inserida na primeira
parte do segredo; depois, na segunda parte do mesmo, o anúncio do castigo e dos
meios para evitá-lo. Foram então estas duas partes do segredo reveladas por
Lúcia em 31 de agosto de 1941, a pedido do Bispo de Leiria. Restava a terceira
parte, escrita por Lúcia em 3 de janeiro de 1944, ficando o mesmo em envelope
selado e guardado pelo Bispo de Leiria.
Em tempos de grande
iliteracia, e dum regime ditatorial no nosso País, de brandos costumes, mas
infiltrado da polícia política de má memória, restava ao comum dos cidadãos a
pergunta mil vezes surgida: “O que estará escrito na terceira parte do segredo
de Fátima?”.
Se dizer mal do regime
instaurado em Portugal era outra direção ao medo, como da prisão ou outras
represálias, mais não restava ao pobre povo português do que, não desejando
acatar a pobreza que grassava muitas vezes dissimulada, refugiar-se na
emigração para solos da França, Alemanha ou Suíça, já que no Brasil o cruzeiro
pouco valia.
Os que ficavam, na tasca era
uma das formas de conviver, ou nas coletividades nascentes sob a égide da então
FNAT; já que outros domingueiros optava por ir à bola.
A Amália era a nossa diva do
fado. Quando o 1º de Maio emergia, com o Dia do Trabalhador negado, o futebol
jogado já na era televisiva a preto e branco, surgida neste Portugal de 1957, dava
azo a uma transmissão a seu jeito para fazer esquecer as agruras da vida, no
oportunismo daquele dia… na expressão “Três F”, aqueles três pilares da
ditadura salazarista: “Futebol, Fado e Fátima”.
Mas Fátima que foi um lugar é
agora uma cidade, sede de freguesia e que o Papa João Paulo II elevou à categoria
de sede de diocese com a cidade de Leiria, passando a designar-se Diocese de
Leiria-Fátima, desde 13 de maio de 1984. Faz assim colocar Portugal no mapa do
mundo. Contudo, Fátima não diz tudo sobre Portugal, nem é o retrato da religião
católica no nosso País.
Se bem que todos os anos são
diferentes, este ano de 2017 é um ano especial porque se celebram 100 anos que
Nossa Senhora foi vista em Fátima.
Segundo a “Voz do Trabalho”, o Assistente Nacional da LOC/MTC refere que
“Ela escolheu Portugal e três crianças para falar de Paz num tempo de guerras:
homens contra homens, nações contra nações, homens contra Deus”. E ainda:
“Muitas vezes achamos que as questões políticas e as soluções sociais que a
sociedade civil vai formulando são as únicas capazes na construção da paz. A
primeira grande afirmação de Fátima, de ontem e de hoje, continua a ser que sem
Deus não há verdadeira construção da paz, seja no coração de cada um, seja nas
famílias, seja nas relações de trabalho, seja entre povos e nações”.
Segundo o Padre Gonçalo
Portocarrero de Almada, “Na Cova da Iria os pastorinhos tiveram visões e não
aparições, mas o valor não é menor porque, como notou Bento XVI, visões têm uma
força de presença tal que equivalem à manifestação externa sensível”.
Efetivamente, só no dia 13 de
maio se celebra o centenário da primeira aparição de Nossa Senhora de Fátima e
já existem muitas alegadas “desmitificações” do fenómeno ocorrido na Cova da
Iria, o fenómeno de Fátima. Alguns o reduzem, ou pretendem reduzir, a uma mera
narrativa que é reinterpretada ao bel-prazer de cada um. Mesmo para alguns,
tudo não terá passado de um embuste político-religioso, para que foram
aliciadas criancinhas iletradas. Para outros, terá tido uma “mãozinha clerical
e intenção marcadamente antirrepublicana. Também os que, embora afirmando-se
fiéis, olham com desdém para este tipo de fenómenos que reprovam em nome da sua
impoluta racionalidade, mais livre-pensadora do que verdadeiramente católica”.
O que é certo e verdade é que
a própria Igreja portuguesa, de início, não reagiu positivamente às aparições.
Só a 13 de maio de 1922 se iniciou a investigação canónica relativamente aos
acontecimentos de Fátima, que concluiu somente em 13 de outubro de 1930,
aprovando o culto das aparições, que, contudo, não constituem matéria de fé.
Ainda sobre o tema aparições
ou visões, o Padre Anselmo Borges, em entrevista ao jornal Expresso, de
16-04-2017, declarou que “É preciso também distinguir aparições de visões. É
evidente que Nossa Senhora não apareceu em Fátima. A distinção entre aparições
e visões não é nenhuma novidade pois, como recordou Bento XVI, “a antropologia
teológica distingue, neste âmbito, três formas de perceção ou “visão”: a visão
dos sentidos, ou seja, a perceção externa corpórea; a perceção interior; e a
visão espiritual”.
Também D. Carlos Azevedo, em
entrevista ao Público, de 21 de abril, diz que é o momento de se falar com a
“linguagem exata” sobre o que se passou há 100 anos na Cova da Iria: “foram
visões místicas, não aparições”. “Penso que o Papa Francisco, ao vir a
Portugal, vai iluminar a atualidade da mensagem de Fátima. O fenómeno da Cova
da Iria acontece na I Guerra Mundial e aponta já para a II Guerra – “se não
mudarem os critérios de vida, vem uma guerra pior”. Agora o Papa tem falado numa
terceira guerra “em episódios””
O que é certo e verdade é que podemos ser
crentes ou não, acreditar nas aparições ou não, ter uma fé mais esclarecida ou
não, mas não podemos ignorar o fenómeno e a relevância de Fátima.
Francisco e Jacinta Marto,
pastores analfabetos, vão ser santos da Igreja Católica. O Papa Francisco
aprovou o milagre necessário para a canonização dos dois irmãos, que faleceram,
ainda crianças, vítimas da gripe espanhola. A prima Lúcia, a mais velha dos
videntes, faleceu aos 97 anos.
Na Peregrinação Nacional a
Fátima, das Conferências Vicentinas Portuguesas, na Assembleia realizada no
Auditório Paulo VI, no passado dia 22 de abril, a madeirense, Dr. Graça Alves,
referiu-se assim, na sua excelente palestra: “Quem é esta Mulher que, há 100
anos, como agora, nos pede que baixemos as armas e que nos deixemos guiar pela
dimensão do infinito que existe dentro de nós? A quem pertence, afinal, esta
voz que aplacou os medos dos pastorinhos: “Sou do Céu” e que nos toma nos
braços e nos pega ao colo e nos diz aquilo que disse a Lúcia naquele dia de
junho de 1917. Se a Senhora voltasse hoje, talvez dissesse exatamente a mesma coisa que disse no dia 13 de julho de
há 100 anos atrás: “Se fizerem o que eu disser, salvar-se-ão, e muitas almas
terão paz”.
(In "fórum Covilhã", de 09-05-2017)
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