27 de novembro de 2019

GRITOS


Outono boreal a chegar ao fim. Este equinócio, agora de frio, chuva e vento, traz o cambiante das folhas amarelas no chão. E do vendedor de castanhas no Pelourinho. De vez em quando o arco-íris a emoldurar a Cidade.

Aproxima-se o solstício de inverno.

Entre estes momentos específicos, temos vindo a ouvir uma variedade de GRITOS. Coincidência. Um livro cai-me da estante ao resvalar do escadote. As suas folhas desnudam-se no “Grito do Ipiranga”. Acontecimento ocorrido a 7 de setembro de 1822 que simboliza a independência do Brasil – “Independência ou morte!”

“Order! Order!” – É o peculiar grito do speaker (presidente) da Câmara dos Comuns do Reino Unido, John Bercow, tornado uma personagem essencial para os milhões de pessoas em todo o mundo que descobriram o mistério do funcionamento do Parlamento britânico por causa do “Brexit”. Entrou há dias pela última vez em Westminster. Esteve dez anos no cargo, mas nos últimos três o seu grito de “Order” foi especialmente ouvido, tal a desordem nos espíritos causados pelo “Brexit”.

“Veneza está a afundar-se, é preciso salvar Veneza!” Gritos de alarme, como há bem pouco tempo ecoou em Itália repercutiu-se em todo o mundo. A Praça de São Marcos inundada. Há uns anos, em pleno verão estivemos lá sentados numa esplanada. Nesta praça tivemos que, num ápice, nos levantar, quando a água repentinamente surgira por debaixo das mesas e cadeiras e já nos começava a molhar os pés. Sempre foi assim, mas desta vez foi exagerado.

“Zero saiu da Internet e tomou as ruas”. Cerca de 13 mil agentes da PSP e militares da GNR participaram de forma pacífica na manifestação do dia 21 de novembro. O anónimo Movimento Zero passou a ter milhares de rostos e ocupou as ruas. Deixou de ser anónimo. No Marquês de Pombal venderam-se T-shirts do Movimento zero. Milhares vestiram-nas. “Zero, Zero, Zero…” foi a palavra de ordem gritada ao longo de toda a marcha. E, enquanto gritavam, levantavam os punhos, juntando o polegar com o indicador desenhando um zero. “Certamente que muitos dos manifestantes nem sequer sabiam que aquele gesto é também usado pela extrema-direita em muitos países do mundo. Em gritos e cartazes pretendiam os manifestantes sensibilizar a cidadania para a imensa panóplia de problemas das forças de segurança”. Aqui se posicionou o deputado da extrema direita, André Ventura. Lamentável, entre frustrações justas e as inaceitáveis apropriações.

Ao grito das gentes do Interior, aquele que fica fora de Lisboa, respondeu o Governo com três secretarias de Estado para fora da capital. Qual o critério para terem de ir umas e não outras secretarias, quando se verifica que como único e previsível critério será o da proximidade dos governantes dos locais escolhidos? Vai existir um verdadeiro plano de ação, ou é mais um faz de conta? Isto porque basta ter ouvido Ana Abrunhosa, ministra da Coesão Territorial. na sua expressão de que iria “gerir o declínio…” do Interior! Para afinal, fazer o quê desta parcela do território português? Está mais que visto que passará a ser “Tudo como dantes, Quartel General em Abrantes”.

Gritos dos Srs. H.  – Henrique Galvão e Humberto Delgado foram dois notáveis personagens da nossa história do século XX. Ambos haviam sido declarados apoiantes de Salazar e do Estado Novo, até meados do século passado. Paradoxalmente, ambos foram posteriormente profundamente seus inimigos.  O grito de “obviamente demito-o”, saído da boca de Humberto Delgado, referindo-se a Salazar, conduzi-lo-ia ao caminho da morte por assassínio.  Já o grito de Henrique Galvão, com o desvio do navio Santa Maria no mar das Caraíbas iria chamar, de novo, as atenções internacionais para a falta de liberdade no Portugal de Salazar. À frente deste audacioso golpe político estavam Galvão e Delgado…

Depois há outros gritos, como os de Mário Nogueira, secretário-geral da FENPROF, ou dos secretários-gerais da CGTP e UGT.

Gritos suavíssimos – Para terminar este final de ano, mencionamos os gritos finlandeses com a chegada da Finlândia, pela primeira vez na sua história, desde a sua estreia em jogos internacionais, em 22 de outubro de 1911, pela sua passagem à fase final de uma grande prova – o Euro 2020.

Votos com gritos de Boas Festas de Natal.

(In "Notícias da Covilhã", de 28-11-2019)

13 de novembro de 2019

O CHICO-ESPERTISMO DE JUAN SEBASTIÁN ELCANO

Com o português Fernão de Magalhães, que comandou a expedição da viagem que iria ser conhecida por circum-navegação, partiu numa das cinco naus, o espanhol Juan Sebastián Elcano, no dia 20 de setembro de 1519.
Nascido em Getaria, Guipúscoa no ano de 1476, quatro anos mais novo que o português, foi um explorador, navegador e marinheiro.
Tendo completado 23 anos, Sebastián Elcano passou a ser dono e capitão do seu próprio navio mas devido a problemas financeiros fugiu para Sevilha onde aprendeu a sua arte de navegação, tornando-se piloto.
Estabelecido em Sevilha tornou-se capitão de navio mercante. Após violar a lei espanhola ao entregar um navio a banqueiros genoveses como pagamento de uma dívida, Elcano procurou o perdão do rei D. Carlos I de Espanha, inscrevendo-se assim como oficial na expedição liderada por Fernão de Magalhães às Molucas.
Estávamos então na Idade Média, cujo comércio das especiarias era considerado de longe o mais rentável para a época pois que o mais pequeno volume de mercadoria garantia a maior margem de lucro. No século XV, um único saco de pimenta tinha mais valor que uma vida humana.
Da mesma forma que hoje grande parte da economia do mundo moderno se baseia no petróleo, grande parte da economia do mundo medieval firmava-se no comércio dos produtos do Oriente, mormente nas especiarias: cravo, canela, pimenta, malagueta, noz-moscada, mirra, incenso.
Se a Fernão de Magalhães lhe era recusado pelo monarca português, D. Manuel I, primeiro a indemnização pelo cavalo morto, depois a gratificação pelas feridas em combate, durante a escaramuça às portas de Azamor, que o deixara coxo o resto da vida; e o aumento da moradia; e também  de navegar para as Molucas; e por fim qualquer outro serviço, ele tornou-se para D. Manuel além dum fardo, um inútil. Também o covilhanense Ruy Faleiro tinha razões de queixa de D. Manuel, talvez por este lhe ter negado o posto de lente na Universidade de Coimbra. Tal não acontecia na conduta dos espanhóis para com Elcano.
Magalhães teve consigo um acompanhante e intérprete, Enrique de Malaca, um jovem escravo que havia adquirido, o qual viria a permanecer ao seu lado e ser-lhe fiel até à sua morte. Entretanto Juan Sebastián Elcano acabava por ser poupado por Fernão de Magalhães, depois daquele ter participado num motim falhado nas costas da Patagónia, contra Magalhães.
Ninguém sabia exatamente a dimensão do mundo, nem a sua morfologia, assim como as direções para o percorrer. Um dos grandes enigmas geográficos da Idade Média era a localização.
Depois do motim falhado, a nau San Antonio foi confiada a Juan Sebastián Elcano, não obstante ter procurado impedir que Magalhães concretizasse a sua ideia. Noutra altura, seria chamado como eleito pelo destino de concluir a obra de Fernão de Magalhães.
O mestre de armas Gomez de Espinosa havia sido o mais fiel apoiante de Magalhães e, a bordo do Trinidad viria a perecer ingloriamente, após sofrimentos, juntamente com os seus companheiros de desgraça, sendo esquecidos pela ingratidão da História. Juan Sebastián Elcano será imortalizado, precisamente o chico-esperto que quis impedir o feito de Magalhães e que se revoltou contra o seu almirante.
Poucos dias depois da batalha de Mactan, onde viria a ficar sem vida Fernão de Magalhães, o rei de Cebu, Humabon, e o escravo de Magalhães, Enrique, armam uma cilada aos principais oficiais da armada. Cada um com as suas razões, ambos se sentindo traídos e humilhados, sendo que Enrique tem motivos porque os oficiais da armada ameaçam mantê-lo em escravidão, apesar das ordens deixadas por Magalhães no seu testamento; e Humabon porque “estes europeus cristãos, declarando-se tocados pela graça do seu Deus e invulneráveis, convenceram-no a prestar-lhes vassalagem – e, afinal foram vencidos por um dos seus vassalos”.
Os dois conspiradores organizaram um jantar de homenagem e de despedida dos principais tripulantes da armada, que acabaria por se transformar num autêntico massacre.
Os sobreviventes decidiram abandonar a nau Concepción nas Filipinas já que não havia homens suficientes para manobrar três navios. A armada, agora reduzida à Trinidad e à Victoria, chegou às Molucas em novembro de 1521, seis meses depois dos trágicos acontecimentos ocorridos em Cebu. A nau Trinidad, necessitando de reparações urgentes não pode seguir viagem a tempo de aproveitar os ventos de monção.
Sebastián Elcano foi um dos poucos oficiais que se salvaram do massacre de Cebu. O covilhanense Ruy Faleiro, parceiro de Magalhães nos primeiros tempos, foi encarcerado mal entrou em Portugal. Só aquele que se ergueu contra Magalhães, Sebastián Elcano, arrebanhou todas as glórias aos que lhe foram fiéis, aos que morreram.
Quando, no dia 9 de julho de 1522 a extenuada nau Victoria se aproximou das ilhas de Cabo Verde, após cinco meses de uma viagem ininterrupta, já só com trinta e um espanhóis e três indígenas, Elcano, mais uma vez chico-esperto, decidiu arriscar e enganar os portugueses quanto à verdadeira identidade. Antes de enviar alguns homens a terra num batel, a fim de comprarem mantimentos, obrigou a tripulação a jurar solenemente que não dariam a entender aos portugueses, nem por uma palavra, que eles eram o que restava da frota de Magalhães e que regressavam da viagem à volta do mundo, sendo os marinheiros instruídos a contar uma peta. E a 6 de setembro de 1522 chegava ao fim o maior feito marítimo de todos os tempos.
Participantes da região beirã nesta viagem de circum-navegação: Afonso Gonçalves, da Guarda, despenseiro da Victoria. Desertou nas ilhas Marianas, onde foi morto em finais de agosto de 1522. Domingos Álvares, da Covilhã, grumete da Trinidad. Faleceu em 7 de junho de 1522.
Dos 18 sobreviventes que chegaram a Espanha havia um único português – Francisco Rodrigues – , marinheiro, nascido em 1482, que não sabia ler e afirmara inicialmente que era castelhano.
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Pesquisas: “MAGALHÃES o homem e o seu feitio”, de Stefan Zweig; “Nos Passos de Magalhães”, de Gonçalo Cadilhe; “A Viagem de Fernão de Magalhães e os Portugueses”, de José Manuel Garcia.

(In "Jornal fórum Covilhã", de 13-11-2019)

6 de novembro de 2019

BILHETE-POSTAL


Praticamente quase não se utiliza. Mas o mesmo não aconteceu até finais da década de oitenta do século passado. A circular pelo Correio sem envelope e com o porte de valor inferior ao das cartas comuns. Tinha e tem ainda o inconveniente de terceiros poderem vir a ler o seu conteúdo, por vezes algo reservado entre o remetente e o destinatário. A privacidade não existe, como no caso de serviços de contencioso do fisco ou judicial. Estes agora optaram pelas cartas registadas.

Consta que o primeiro cartão-postal, bilhete-postal ou simplesmente postal foi emitido no século XIX existindo, contudo, versões diferentes sobre a sua invenção.

Também existiu o aerograma, tipo de carta que se enviava pelo correio aéreo, sem necessidade de sobrescrito. Tinha uma tarifa diferente da do resto da correspondência. O uso deste termo foi oficialmente aprovado na União Postal Universal de 1952. Amplamente divulgado pelo seu uso durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Em Portugal, ganhou fama durante a Guerra Colonial, como meio de comunicação preferencial entre as famílias na Metrópole e as tropas destacadas em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau em virtude de ser um meio grátis de correspondência, mantido pelo antigo SPM (Serviço Postal Militar). Entre 1961 e 1974 o Movimento Nacional Feminino foi a organização responsável pela emissão dos aerogramas militares, tendo editado mais de 300 milhões de aerogramas. Eu próprio escrevi alguns aerogramas para meu irmão, então destacado como combatente na Guiné, nos finais da década de sessenta do século passado.

O título desta crónica vem a propósito de, com alguma surpresa, ter recebido de uma autarquia o agradecimento, em simples postal, da oferta que fizera do meu último livro para a sua biblioteca municipal. Pensei que já não se usasse o bilhete-postal.

E porque me referi também à privacidade, veja-se o que deu azo à leitura, em simples bilhetes-postais, bastante em uso na altura, no período de 1969 a 1971, quando prestava serviço militar no RI 12, na Guarda. Em cima da habitual mesinha de jogos ou do balcão do bar da sala de sargentos entregavam o correio. Dois bilhetes-postais arrastaram-se por ali alguns dias, por ausência dos seus destinatários, furriéis milicianos. Um era dum familiar do camarada que fora transferido para um hospital em Coimbra, o Gaio de Belmonte, a fim de sofrer uma intervenção hemorroidal. O furriel Oliveira, de Melo, atrevidote e sempre com sentido de humor, escreveu na diagonal do bilhete-postal que seria enviado para o doente em Coimbra: “Melhoras cobre”. Quando o camarada doente regressou ao RI 12, perguntou-me o que significavam aquelas palavras. Resposta: “Então não sabes que o símbolo químico do cobre é ‘cu’?”.

Outro bilhete-postal, sem escrúpulos por quem viesse a ler, face à exposição da correspondência, reportava-se à esposa dum camarada que com alguma aflição lhe recomendava a compra dum contracetivo: “se não vamos ter mais um bebé…”

Estes eram os inconvenientes do Bilhete-Postal, em tempos em que ainda não existiam os telemóveis, nem a Internet, e as chamadas telefónicas eram caras e morosas.

O ideal era escrever uma carta. A modernidade, com o mundo digital ao nosso dispor, transformou radicalmente o mundo que nos rodeia. Mário Zambujal escreveu o seu romance: “Já não se escrevem cartas de amor”.

Vem aí o período ainda propício para alguns teimosos no envio de postais. É o período do Natal, com os postais de Boas-Festas.


(In "Notícias da Covilhã", de 07-11-2019)