22 de abril de 2020

O SENTIDO DAS PALAVRAS


Mais perto de sete décadas e meia de vida que dum número redondo, não consigo parar de escrever. É que escrever é viver, é ter sentido de vida. Fico melancólico quando vejo desaparecer escritores e cronistas de eleição, como foram Eduardo Prado Coelho, em 2007, e agora Vasco Pulido Valente. Deles guardo algumas crónicas, não esquecendo, deste último, a “Geringonça”.
Todas as manhãs dou uma vista de olhos pelos jornais online, sendo que de alguns fica para mim o registo de algo interessante quão de importante. Fico deslumbrado quando alguma coisa coincide com as muitas minhas memórias que guardo. Memórias que para os jovens pouco ou nada lhes diz. Já a sua valorização tem eco nas gerações de 50 e 60, se bem que de alguns, já nas suas licenças vitalícias, por vezes duma forma estranhamente precoce, preferem o comodismo do sofá perante os canais televisivos.
Não sou contra as redes sociais nem as formas digitais de agora a comunicação social se ver obrigada a estar presente. Isto terá estado na futurologia das comunicações. No entanto, o cheiro e o tato do papel são ainda de grande preferência por muitos, independentemente das novas tecnologias.
Sobre este assunto me referi no dia 15 de março de 2012, num painel que integrei, na Universidade da Beira Interior, no âmbito dum fórum sob o tema “O Futuro do Jornalismo”, cuja alma foi o sobejamente conhecido jornalista Adelino Gomes.
Li a crónica de Lopes Marcelo, no número de 19 de fevereiro, da Gazeta do Interior – “Habitar as Palavras” – que muito apreciei, como, aliás, todas os seus artigos, assim como da generalidade dos cronistas deste semanário, o que me levou a puxar do baú das minhas memórias, tendo em conta, como refere, “Mais de duas centenas de crónicas. Já quase duas décadas de encontros mensais com os leitores da Gazeta”. Gostei, fez-me sentir a nostalgia de quando comecei a escrever no Notícias da Covilhã, em 14 de novembro de 1964, depois em mais de 30 jornais e revistas da Covilhã, Região Beirã e do País, até aos dias de hoje, já lá vão 56 anos, perfazendo 605 crónicas, artigos de opinião e algumas notícias.
Hoje, com regularidade mensal, são dois semanários desta região, um quinzenário algarvio e o editorial de um boletim trimestral.
Mas também tive o prazer de escrever na Gazeta do Interior, a primeira vez em 17 de maio de 1990, há quase 30 anos.
Não poderei esquecer um amigo que há pouco partiu e que nesta região se havia radicado durante muitos anos e deixou marcas do seu jornalismo, o meu amigo José Maria Ventura daa Silva Balonas.
Votos do maior sucesso para a Gazeta do Interior.

João de Jesus Nunes
jjnunes6200@gmail.com

(Texto enviado à "Gazeta do Interior", em 24-02-2020, mas que não teve publicação)

9 de abril de 2020

PONHO A MESA PARA QUANTOS?


Era assim ainda há pouco tempo, mesmo antes da primavera raiar envergonhada este tempo pandémico.
Todos os dias perguntava à esposa quantos netos vinham almoçar para adequar a mesa aos respetivos lugares. A universitária do Porto dava-nos a alegria de nos ir telefonando enquanto o da UBI várias vezes anunciava previamente ir almoçar com os avós. Já as mais novas, do Secundário, eram as mais habituais, sempre no prazer acolhedor da avó, já que era o avô que habitualmente tinha o encargo de as ir buscar, aquando da impossibilidade dos pais.
Há poucos anos um político procrastinou que o diabo vinha aí em setembro (daquele ano, entenda-se…) e o diabo não apareceu, pós vivência de uma crise política e económica. Mas no âmbito dessa crise, toda a gentinha podia livremente ir ao quiosque comprar o jornal ou a raspadinha (na sua maioria), dar um abraço a um amigo, beijar os filhos e os netos e as outras pessoas familiares e amigas.
Vivia-se num horizonte com pezinhos de lã a galgar os caminhos das perspetivas desejadas para o ambiente familiar, profissional e social.
De um momento para o outro, uma nuvem bem lá longe, para os confins asiáticos, pressagia algo de inconfundíveis diabruras de âmbito planetário, na realidade de um bichinho microscópico. Bate à porta da China e vai alongando a sua virulência sem que haja fronteiras ou impedimentos, por países fora, com um forte salto para o mais velho Continente do mundo. Em 11 de fevereiro, os jornais que ainda se podiam comprar nos tais quiosques, anunciavam que “Portugal tem risco de importação de coronavírus ‘muito baixo’”.
Puro engano, tal como o do político atrás referido, mas ao contrário, aquilo que de presságio não passava, afinal foi uma realidade jamais vista por todos nós.
Não são poupadas as famílias, os amigos, o culto religioso, as escolas, tudo o que possa proporcionar contacto social, num tsunami como alguém intitulou, que obriga ao encerramento de quase tudo o que são atividades económicas ficando somente as necessárias à subsistência das gentes nas várias vertentes da indispensabilidade.
Chegara então o tempo de ter tempo, jamais no pensamento das correrias loucas da vida.
Porquê falar do Brexit, dos casos da justiça em Portugal, nas várias “operações” a decorrer, da angolana Isabel dos Santos, do hacker Rui Pinto, da Primavera Árabe, dos problemas com que se debate o papa Francisco, das cimeiras climáticas, quando, de um momento para o outro, as gentes deste Planeta e deste retângulo à beira-mar plantado se vêm forçadas e separar-se confrangedoramente, e a recolherem-se em casa e nos hospitais.
Podemos considerar como que a teoria dos cisnes negros, conforme já me referi em 12 de fevereiro noutro periódico, conceito este para designar fenómenos raros que têm baixa probabilidade de ocorrência mas que, quando aparecem, mudam tudo. É o caso do coronavírus, que mata e cada morte é uma perda que nada pode reparar. No entanto, esta enorme pausa é má para a economia mas boa para o planeta. Tantas guerras, tanta indiferença na participação das cimeiras climáticas quando um bichinho maldito arrisca proporcionar que o ano 2020 seja o ano da queda significativa das emissões de CO2 no mundo. Temos de deixar de viver numa civilização em que a pressa é tudo, o movimento é tudo e o objetivo não é nada.
Quando surgir a bonança, os que resistirem, que possam refletir nesta consciência de pensar que uma pessoa sozinha não se salva porque todos vão no mesmo barco, como disse o papa Francisco, e que possam transmitir este forte pensamento às suas gentes e vindouros.
Uma grande lição para todos nós! Que a saibamos aproveitar.

(In "Notícias da Covilhã", de 09-04-2020)

8 de abril de 2020

REPENSAR A NOSSA VIDA


Na altura em que escrevo estas linhas, acabo de ouvir, em vozes de excelência, na RTP, a entrevista da jornalista Fátima de Campos Ferreira ao antigo Presidente da República, General Ramalho Eanes, sobre a pandemia de Covid 19.
Foi um lenitivo para os dias de emergência que vou vivendo em casa com a minha esposa, e com os filhos e os netos à distância de um telefonema ou vídeo chamada, ou então numa fugaz conversa do passeio da rua para a janela da nossa casa.
Este estado de emergência acaba de ser renovado até 17 de abril, como se impõe.
Todos já passámos por crises, umas maiores que outras, a vários níveis (guerra do Ultramar, situações climatéricas, e mesmo algumas epidemias – eu tive a gripe asiática quando andava na 4.ª classe) mas nunca pensando que iríamos passar por forçosamente termos que repensar a nossa vida, neste inconformismo do porquê de, em pleno século XX, verificarmos que o Homem é uma insignificância perante a minúcia microscópica de um vírus, que não se consegue debelar, remetendo-nos assim para as pandemias de outros tempos bem longínquos, ou, aquela que mais se vai assemelhando ao coronavírus, nas memórias da gripe espanhola ou pneumónica, de há 102 anos.
O mundo está a ver-se obrigado a desenvolver esforços quase sobrenaturais para acudir a este flagelo na humanidade, onde os braços e os equipamentos urgentíssimos para acudir aos doentes são mais que insuficientes, a par das recomendações e decisões de cada país para que sejam cumpridas as normas de evitar o contágio dos que ainda se encontram sãos.
Jamais estas últimas gerações pensariam vir a passar por uma situação daquela que se está vivendo (alguns quase que brincando com o fogo porque “esta pandemia é só para os idosos…”), mas ela é, para todos nós, quase inédita, nos termos em que o sofrimento de muitos dos atingidos é duma crueldade tal que nem os mais queridos podem ser objeto de uma atenção, de um cumprimento, de uma despedida para o eterno.
Já meu Pai contava que, na sua terra natal, Bogas de Baixo, do concelho do Fundão, no tempo da pneumónica, ouviu dizer que o coveiro, não dando lugar a tanto enterramento, e no enorme receio de contágio, chegou ao ponto de fechar os olhos ao enterrar um moribundo, que ainda mexia.
E no Brasil (no qual atualmente Bolsonaro desvaloriza esta pandemia), também em 1918 a gripe espanhola espalhou morte e pânico, chegando-se ao ponto de, como os coveiros em grande parte estavam acamados ou haviam perecido, a polícia saiu às ruas capturando os homens mais robustos, para serem forçados a abrir covas e sepultar os cadáveres, estendendo-se o trabalho pela madrugada adentro.
É por isso que é terrível ver-se o desespero dos médicos espanhóis que refletem sobre a possibilidade de deixarem salvar um doente de 50 anos em detrimento de outro de 80.
Certo é que já se sentiram vozes prontas a colocar nos pratos da balança uma escolha entre a economia e a sobrevivência, dispostas até ao sacrifício de alguns porquanto se trata das vidas das pessoas mais velhas, e quando, afinal, se a vida de um idoso não vale o sacrifício da economia, é, na opinião do jornalista Paulo Dentinho, “mandar às urtigas o juramento de Hipócrates, essa promessa solene dos médicos de consagrar a vida ao serviço da humanidade”.

O medo é também uma faceta lúgubre por que quase todos passamos face a este monstro paradoxalmente microscópico.
Depois da China, o mar de lágrimas e choros que atingiu o Continente mais antigo, corre por todo o globo, num devastar de humanos.
“A peste voltou à Europa, e já não nos lembrávamos de que podia. Tenho medo de que o vazio da Praça de São Pedro que nos gelou o coração ao ver nela o papa só, a dizer-nos perdidos, frágeis, desorientados e da noite e do silêncio que cobrem o mundo, seja, mais que uma metáfora, um presságio”, nas palavras da jornalista Fernanda Câncio.
O ano de 2020 irá ficar na memória de todos os que sobreviverem a esta pandemia. E só gentes mentecaptas poderão deixar de pensar de que nada valem os grandes projetos, os desejos de possuir mais que o vizinho, a ganância de dar nas vistas pelo que possuem, o desprezo na contribuição para a desestabilização do equilíbrio energético no planeta, produzindo aquele fenómeno que dá pelo nome de aquecimento global, mandando às malvas as Cimeiras sobre o Clima, o olhar sobranceiro sobre os que mais necessitam em contraponto com as suas algibeiras plenas de riqueza, quando, afinal, de um momento para o outro, tudo pode parar, quando menos se espera. Tudo pode parar e modificar drasticamente os nossos hábitos e os nossos costumes. Também as nossas zonas de conforto e tudo o que jamais seria impensável não acontecesse.
Mas, banhado de algum ceticismo, mantenho uma ténue esperança de que esta pandemia nos faça emendar o que fazemos de errado, valorizar mais os outros de quem neste momento nos separamos concentrando-nos mais no que de melhor nos une.
Espero que estas minhas dúvidas se dissipem e que os medos de no-pós pandemia continuar a ser tudo mais do mesmo não corresponda à realidade. É que os argumentos que a história nos mostra é de que todas as grandes tragédias nada mudaram a nossa natureza; todos os grandes medos foram sistematicamente esquecidos.

(In "Jornal fórum Covilhã", de 08-04-2020)