8 de abril de 2020

REPENSAR A NOSSA VIDA


Na altura em que escrevo estas linhas, acabo de ouvir, em vozes de excelência, na RTP, a entrevista da jornalista Fátima de Campos Ferreira ao antigo Presidente da República, General Ramalho Eanes, sobre a pandemia de Covid 19.
Foi um lenitivo para os dias de emergência que vou vivendo em casa com a minha esposa, e com os filhos e os netos à distância de um telefonema ou vídeo chamada, ou então numa fugaz conversa do passeio da rua para a janela da nossa casa.
Este estado de emergência acaba de ser renovado até 17 de abril, como se impõe.
Todos já passámos por crises, umas maiores que outras, a vários níveis (guerra do Ultramar, situações climatéricas, e mesmo algumas epidemias – eu tive a gripe asiática quando andava na 4.ª classe) mas nunca pensando que iríamos passar por forçosamente termos que repensar a nossa vida, neste inconformismo do porquê de, em pleno século XX, verificarmos que o Homem é uma insignificância perante a minúcia microscópica de um vírus, que não se consegue debelar, remetendo-nos assim para as pandemias de outros tempos bem longínquos, ou, aquela que mais se vai assemelhando ao coronavírus, nas memórias da gripe espanhola ou pneumónica, de há 102 anos.
O mundo está a ver-se obrigado a desenvolver esforços quase sobrenaturais para acudir a este flagelo na humanidade, onde os braços e os equipamentos urgentíssimos para acudir aos doentes são mais que insuficientes, a par das recomendações e decisões de cada país para que sejam cumpridas as normas de evitar o contágio dos que ainda se encontram sãos.
Jamais estas últimas gerações pensariam vir a passar por uma situação daquela que se está vivendo (alguns quase que brincando com o fogo porque “esta pandemia é só para os idosos…”), mas ela é, para todos nós, quase inédita, nos termos em que o sofrimento de muitos dos atingidos é duma crueldade tal que nem os mais queridos podem ser objeto de uma atenção, de um cumprimento, de uma despedida para o eterno.
Já meu Pai contava que, na sua terra natal, Bogas de Baixo, do concelho do Fundão, no tempo da pneumónica, ouviu dizer que o coveiro, não dando lugar a tanto enterramento, e no enorme receio de contágio, chegou ao ponto de fechar os olhos ao enterrar um moribundo, que ainda mexia.
E no Brasil (no qual atualmente Bolsonaro desvaloriza esta pandemia), também em 1918 a gripe espanhola espalhou morte e pânico, chegando-se ao ponto de, como os coveiros em grande parte estavam acamados ou haviam perecido, a polícia saiu às ruas capturando os homens mais robustos, para serem forçados a abrir covas e sepultar os cadáveres, estendendo-se o trabalho pela madrugada adentro.
É por isso que é terrível ver-se o desespero dos médicos espanhóis que refletem sobre a possibilidade de deixarem salvar um doente de 50 anos em detrimento de outro de 80.
Certo é que já se sentiram vozes prontas a colocar nos pratos da balança uma escolha entre a economia e a sobrevivência, dispostas até ao sacrifício de alguns porquanto se trata das vidas das pessoas mais velhas, e quando, afinal, se a vida de um idoso não vale o sacrifício da economia, é, na opinião do jornalista Paulo Dentinho, “mandar às urtigas o juramento de Hipócrates, essa promessa solene dos médicos de consagrar a vida ao serviço da humanidade”.

O medo é também uma faceta lúgubre por que quase todos passamos face a este monstro paradoxalmente microscópico.
Depois da China, o mar de lágrimas e choros que atingiu o Continente mais antigo, corre por todo o globo, num devastar de humanos.
“A peste voltou à Europa, e já não nos lembrávamos de que podia. Tenho medo de que o vazio da Praça de São Pedro que nos gelou o coração ao ver nela o papa só, a dizer-nos perdidos, frágeis, desorientados e da noite e do silêncio que cobrem o mundo, seja, mais que uma metáfora, um presságio”, nas palavras da jornalista Fernanda Câncio.
O ano de 2020 irá ficar na memória de todos os que sobreviverem a esta pandemia. E só gentes mentecaptas poderão deixar de pensar de que nada valem os grandes projetos, os desejos de possuir mais que o vizinho, a ganância de dar nas vistas pelo que possuem, o desprezo na contribuição para a desestabilização do equilíbrio energético no planeta, produzindo aquele fenómeno que dá pelo nome de aquecimento global, mandando às malvas as Cimeiras sobre o Clima, o olhar sobranceiro sobre os que mais necessitam em contraponto com as suas algibeiras plenas de riqueza, quando, afinal, de um momento para o outro, tudo pode parar, quando menos se espera. Tudo pode parar e modificar drasticamente os nossos hábitos e os nossos costumes. Também as nossas zonas de conforto e tudo o que jamais seria impensável não acontecesse.
Mas, banhado de algum ceticismo, mantenho uma ténue esperança de que esta pandemia nos faça emendar o que fazemos de errado, valorizar mais os outros de quem neste momento nos separamos concentrando-nos mais no que de melhor nos une.
Espero que estas minhas dúvidas se dissipem e que os medos de no-pós pandemia continuar a ser tudo mais do mesmo não corresponda à realidade. É que os argumentos que a história nos mostra é de que todas as grandes tragédias nada mudaram a nossa natureza; todos os grandes medos foram sistematicamente esquecidos.

(In "Jornal fórum Covilhã", de 08-04-2020)

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