Na altura em que escrevo estas linhas, acabo de ouvir, em vozes de
excelência, na RTP, a entrevista da jornalista Fátima de Campos Ferreira ao
antigo Presidente da República, General Ramalho Eanes, sobre a pandemia de
Covid 19.
Foi um lenitivo para os dias de emergência que vou vivendo em casa com a
minha esposa, e com os filhos e os netos à distância de um telefonema ou vídeo chamada,
ou então numa fugaz conversa do passeio da rua para a janela da nossa casa.
Este estado de emergência acaba de ser renovado até 17 de abril, como se
impõe.
Todos já passámos por crises, umas maiores que outras, a vários níveis
(guerra do Ultramar, situações climatéricas, e mesmo algumas epidemias – eu
tive a gripe asiática quando andava na 4.ª classe) mas nunca pensando que
iríamos passar por forçosamente termos que repensar a nossa vida, neste
inconformismo do porquê de, em pleno século XX, verificarmos que o Homem é uma
insignificância perante a minúcia microscópica de um vírus, que não se consegue
debelar, remetendo-nos assim para as pandemias de outros tempos bem longínquos,
ou, aquela que mais se vai assemelhando ao coronavírus, nas memórias da gripe
espanhola ou pneumónica, de há 102 anos.
O mundo está a ver-se obrigado a desenvolver esforços quase sobrenaturais
para acudir a este flagelo na humanidade, onde os braços e os equipamentos
urgentíssimos para acudir aos doentes são mais que insuficientes, a par das
recomendações e decisões de cada país para que sejam cumpridas as normas de evitar
o contágio dos que ainda se encontram sãos.
Jamais estas últimas gerações pensariam vir a passar por uma situação daquela
que se está vivendo (alguns quase que brincando com o fogo porque “esta
pandemia é só para os idosos…”), mas ela é, para todos nós, quase inédita, nos
termos em que o sofrimento de muitos dos atingidos é duma crueldade tal que nem
os mais queridos podem ser objeto de uma atenção, de um cumprimento, de uma
despedida para o eterno.
Já meu Pai contava que, na sua terra natal, Bogas de Baixo, do concelho
do Fundão, no tempo da pneumónica, ouviu dizer que o coveiro, não dando lugar a
tanto enterramento, e no enorme receio de contágio, chegou ao ponto de fechar
os olhos ao enterrar um moribundo, que ainda mexia.
E no Brasil (no qual atualmente Bolsonaro desvaloriza esta pandemia),
também em 1918 a gripe espanhola espalhou morte e pânico, chegando-se ao ponto
de, como os coveiros em grande parte estavam acamados ou haviam perecido, a
polícia saiu às ruas capturando os homens mais robustos, para serem forçados a
abrir covas e sepultar os cadáveres, estendendo-se o trabalho pela madrugada
adentro.
É por isso que é terrível ver-se o desespero dos médicos espanhóis que
refletem sobre a possibilidade de deixarem salvar um doente de 50 anos em detrimento
de outro de 80.
Certo é que já se sentiram vozes
prontas a colocar nos pratos da balança uma escolha entre a economia e a
sobrevivência, dispostas até ao sacrifício de alguns porquanto se trata das
vidas das pessoas mais velhas, e quando, afinal, se a vida de um idoso não vale
o sacrifício da economia, é, na opinião do jornalista Paulo Dentinho, “mandar
às urtigas o juramento de Hipócrates, essa promessa solene dos médicos de
consagrar a vida ao serviço da humanidade”.
O medo é também uma faceta lúgubre por que quase todos passamos face a este
monstro paradoxalmente microscópico.
Depois da China, o mar de lágrimas e choros que atingiu o Continente mais
antigo, corre por todo o globo, num devastar de humanos.
“A peste voltou à Europa, e já não nos lembrávamos de que podia. Tenho
medo de que o vazio da Praça de São Pedro que nos gelou o coração ao ver nela o
papa só, a dizer-nos perdidos, frágeis, desorientados e da noite e do silêncio
que cobrem o mundo, seja, mais que uma metáfora, um presságio”, nas palavras da
jornalista Fernanda Câncio.
O ano de 2020 irá ficar na memória de todos os que sobreviverem a esta
pandemia. E só gentes mentecaptas poderão deixar de pensar de que nada valem os
grandes projetos, os desejos de possuir mais que o vizinho, a ganância de dar
nas vistas pelo que possuem, o desprezo na contribuição para a desestabilização
do equilíbrio energético no planeta, produzindo aquele fenómeno que dá pelo
nome de aquecimento global, mandando às malvas as Cimeiras sobre o Clima, o
olhar sobranceiro sobre os que mais necessitam em contraponto com as suas
algibeiras plenas de riqueza, quando, afinal, de um momento para o outro, tudo
pode parar, quando menos se espera. Tudo pode parar e modificar drasticamente
os nossos hábitos e os nossos costumes. Também as nossas zonas de conforto e tudo
o que jamais seria impensável não acontecesse.
Mas, banhado de algum ceticismo, mantenho uma ténue esperança de que esta
pandemia nos faça emendar o que fazemos de errado, valorizar mais os outros de
quem neste momento nos separamos concentrando-nos mais no que de melhor nos
une.
Espero que estas minhas dúvidas se dissipem e que os medos de no-pós
pandemia continuar a ser tudo mais do mesmo não corresponda à realidade. É que
os argumentos que a história nos mostra é de que todas as grandes tragédias
nada mudaram a nossa natureza; todos os grandes medos foram sistematicamente
esquecidos.
(In "Jornal fórum Covilhã", de 08-04-2020)
Sem comentários:
Enviar um comentário