11 de novembro de 2020

QUANDO O PORTO AFASTA RICARDO JORGE

 

Já lá vão oito meses de números avassaladores desta nova pandemia que nos assola diariamente.  

As pandemias e epidemias jamais largaram o Mundo, e também o nosso País, sendo que poucas se encontram totalmente erradicadas, caso da varíola.

A última pandemia, do século XIX, teve consequências que se prolongaram pelo século XX. É conhecida como a Terceira Pandemia.

À volta de 1855, uma variante pneumónica da peste ficou-se pela China, Mongólia e Manchúria. Na última década do século XIX, a peste, além de assolar a China, espalhou-se por via marítima e depois por terra, por Hong Kong, Taiwan e daí à Tailândia, à Birmânia, à Índia, em Bombaim e Calcutá. Atingiu as cidades árabes de Meca, Medina e Jidá e terá chegado bem longe, da Ásia à África do Sul, ao Paraguai, à Bolívia, ao Brasil, e depois, em 1899, à Europa. E daqui ao Porto.

Segundo Jaime Nogueira Pinto, no seu livro “Contágios – 2500 Anos de Pestes”, este insólito surto pandémico teve os primeiros mortos nos carregadores que viviam em zonas degradadas, perto do rio Douro. A polémica acerca da extensão das medidas cerceadoras dos movimentos das pessoas e das mercadorias a adotar; o choque de competências e autoridades, entre o Governo central, de Lisboa, e as instituições e interesses económicos locais, levou a um conflito entre os portuenses e o setor clínico. O Governo de Lisboa decretou um cordão sanitário, o isolamento da cidade, a segunda do país, que tinha luz elétrica desde 1886 mas onde, em 1905, o saneamento básico abrangia apenas 30% da área urbana.

Quem denuncia as ocorrências epidémicas ao governador civil, depois de ter sido alertado e visitado doentes, é o Dr. Ricardo Jorge, formado pela Escola Médica do Porto e pioneiro da Saúde Pública em Portugal. À época, Ricardo Jorge é professor da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, diretor do Laboratório Municipal de Bacteriologia e responsável pelos Serviços de Saúde e Higiene da Cidade do Porto. Ainda segundo a publicação referida, assim que o Professor detetou nos enfermos e nos mortos os terríveis bubões da Peste Negra, gerou-se a incredulidade e o pânico. E Ricardo Jorge continua a insistir nas miseráveis condições de vida da população portuense, e na elevadíssima mortalidade infantil. Nas famosas “Ilhas”, casas das classes operárias dispostas numa espécie de corredor, onde se amontoavam famílias pobres, as condições de vida da cidade eram das piores da Europa.

Nesta época estão a dar-se grandes avanços na epidemiologia, graças ao Instituto Pasteur, que seguem Ricardo Jorge e outro precursor da Bacteriologia em Portugal, Câmara Pestana, diretor do Instituto de Bacteriologia de Lisboa. Mas o Governo de Lisboa receia também admitir que há peste em Portugal. Ricardo Jorge encontrava-se perante um muro de resistência, encimado pela imprensa portuense. No mês de agosto, no Porto, segundo Jaime Nogueira Pinto no seu livro, apesar de todos os esforços para desvalorizar o assunto, a peste crescia da periferia para o centro. Acusavam o Governo de querer denegrir a imprensa portuense para favorecer interesses lisboetas. Alarme a 17 de agosto quando sai o decreto governamental que, falando em “diagnóstico pestilencial”, decreta o isolamento da cidade. Reportagens variadas ajudavam a incutir na opinião popular que era o alarmismo de “um conhecido clínico” que estava por detrás da vaga de restrições, da imposição de quarentenas, de todas as medidas que prejudicavam a imagem e os interesses da capital do Norte. Inflamaram-se os populares e a casa do pai de Ricardo Jorge foi apedrejada. Depois rumaram a casa do médico, até que a Polícia os dispersou. A seguir, os defensores da quarentena rigorosa e os seus contraditores, geraram uma polémica no Porto que estalou em força, e teve algum contributo do exterior.  Temia-se que, a partir do Porto, a terrível peste bubónica se espalhasse pela Europa. As visitas dos médicos estrangeiros, e a intenção dos especialistas de experimentarem nos portuenses, nos sãos e nos doentes, vacinas e outros remédios, provocaram a fúria popular. Nas terapias propostas, que eram de várias espécies, havia alguma confusão, misturando-se por vezes o antigo e o moderno.

Segundo a obra referida, Yersin já tinha identificado o papel dos ratos e das pulgas dos ratos na propagação da peste. Um dos responsáveis da Junta Consultiva da Saúde Pública, Guilherme Enes, era bem claro ao repetir as teses mais recentes sobre o papel dos transportadores da Yersínia Pestis. Numa entrevista, Enes analisava o papel dos ratos e das pulgas na peste bubónica, sublinhando o que especialistas como Appleby viriam a afirmar década depois: que “as pulgas, ao reconhecerem que o cadáver do rato esfria, abandonam-no logo e passam para o homem”. E na sequência desta revelação sobre o papel dos ratos e das pulgas, o Jornal de Notícias vinha propor uma “grande caça aos ratos”. Guerra aos ratos e às ratazanas de toda a espécie. Ricardo Jorge apoiava. Algum tempo depois, a Junta de saúde oferecia um prémio pelo abate dos ratos: dez réis o rato, 120 réis a dúzia.

Entretanto, o cerco sanitário estava a causar fome. O comércio estava encerrado e as indústrias, em protesto. Por falta de matéria-prima, começavam também a fechar.

Para termos uma medida do grau de hostilidade a que levara este conflito Porto-Lisboa, David Pontes, em O Cerco da Peste no Porto-cidade, Imprensa e Saúde Pública na Crise Sanitária de 1899, cita uma coluna satírica do Jornal de Notícias, intitulada “Os miguéis da peste” em alusão ao cerco do Porto em 1832 pelas tropas de D. Miguel.

“Esta dicotomia Lisboa reacionária, Porto liberal, Lisboa ociosa, Porto trabalhador, vem à superfície de modo bastante brutal nos jornais portuenses e acaba por desencadear uma reação do Governo que os acusa de negacionistas da peste bubónica e ameaça impor-lhes sanções, ou até a suspensão, publicando o que ficará conhecido como o ‘decreto da mordaça’”.

Uma vítima colateral deste decreto, que viria a suspender algumas publicações, foi Ricardo Jorge que, nos finais de outubro, O Comércio do Porto acusava de ser o inspirador da repressão à imprensa. O médico indigna-se com o papel demagógico a que os jornais se tinham prestado ao tomar uma atitude de recusa perante a realidade dos factos; que a peste bubónica voltara à Europa e que o Porto fora ou era a sua porta de entrada. Os instigadores desta recusa em aceitar a realidade, misto de demagogia e de interesses económicos, acabariam por conseguir afastar Ricardo Jorge da cidade. Entretanto, o seu colega e confrade Câmara Pestana é contaminado pela Yersínia Pestis e vem a morrer em Lisboa a 15 de novembro.

O segundo “cerco do Porto” foi levantado antes do Natal de 1899. Ricardo Jorge, depois de toda a contestação e difamação de que foi alvo no Porto, decidiu mudar-se para Lisboa.

(In "Jornal fórum Covilhã", de 11-11-2020)

Sem comentários: