Já lá vão oito meses de números avassaladores desta nova pandemia que nos
assola diariamente.
As pandemias e epidemias jamais largaram o Mundo, e também o nosso País,
sendo que poucas se encontram totalmente erradicadas, caso da varíola.
A última pandemia, do século XIX, teve consequências que se prolongaram
pelo século XX. É conhecida como a Terceira Pandemia.
À volta de 1855, uma variante pneumónica da peste ficou-se pela China,
Mongólia e Manchúria. Na última década do século XIX, a peste, além de assolar
a China, espalhou-se por via marítima e depois por terra, por Hong Kong, Taiwan
e daí à Tailândia, à Birmânia, à Índia, em Bombaim e Calcutá. Atingiu as
cidades árabes de Meca, Medina e Jidá e terá chegado bem longe, da Ásia à
África do Sul, ao Paraguai, à Bolívia, ao Brasil, e depois, em 1899, à Europa. E
daqui ao Porto.
Segundo Jaime Nogueira Pinto, no seu livro “Contágios – 2500 Anos de
Pestes”, este insólito surto pandémico teve os primeiros mortos nos carregadores
que viviam em zonas degradadas, perto do rio Douro. A polémica acerca da
extensão das medidas cerceadoras dos movimentos das pessoas e das mercadorias a
adotar; o choque de competências e autoridades, entre o Governo central, de
Lisboa, e as instituições e interesses económicos locais, levou a um conflito
entre os portuenses e o setor clínico. O Governo de Lisboa decretou um cordão
sanitário, o isolamento da cidade, a segunda do país, que tinha luz elétrica
desde 1886 mas onde, em 1905, o saneamento básico abrangia apenas 30% da área
urbana.
Quem denuncia as ocorrências epidémicas ao governador civil, depois de
ter sido alertado e visitado doentes, é o Dr. Ricardo Jorge, formado pela
Escola Médica do Porto e pioneiro da Saúde Pública em Portugal. À época,
Ricardo Jorge é professor da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, diretor do
Laboratório Municipal de Bacteriologia e responsável pelos Serviços de Saúde e
Higiene da Cidade do Porto. Ainda segundo a publicação referida, assim que o
Professor detetou nos enfermos e nos mortos os terríveis bubões da Peste Negra,
gerou-se a incredulidade e o pânico. E Ricardo Jorge continua a insistir nas
miseráveis condições de vida da população portuense, e na elevadíssima
mortalidade infantil. Nas famosas “Ilhas”, casas das classes operárias
dispostas numa espécie de corredor, onde se amontoavam famílias pobres, as
condições de vida da cidade eram das piores da Europa.
Nesta época estão a dar-se grandes avanços na epidemiologia, graças ao
Instituto Pasteur, que seguem Ricardo Jorge e outro precursor da Bacteriologia
em Portugal, Câmara Pestana, diretor do Instituto de Bacteriologia de Lisboa.
Mas o Governo de Lisboa receia também admitir que há peste em Portugal. Ricardo
Jorge encontrava-se perante um muro de resistência, encimado pela imprensa
portuense. No mês de agosto, no Porto, segundo Jaime Nogueira Pinto no seu
livro, apesar de todos os esforços para desvalorizar o assunto, a peste crescia
da periferia para o centro. Acusavam o Governo de querer denegrir a imprensa
portuense para favorecer interesses lisboetas. Alarme a 17 de agosto quando sai
o decreto governamental que, falando em “diagnóstico pestilencial”, decreta o
isolamento da cidade. Reportagens variadas ajudavam a incutir na opinião
popular que era o alarmismo de “um conhecido clínico” que estava por detrás da
vaga de restrições, da imposição de quarentenas, de todas as medidas que
prejudicavam a imagem e os interesses da capital do Norte. Inflamaram-se os
populares e a casa do pai de Ricardo Jorge foi apedrejada. Depois rumaram a
casa do médico, até que a Polícia os dispersou. A seguir, os defensores da
quarentena rigorosa e os seus contraditores, geraram uma polémica no Porto que estalou
em força, e teve algum contributo do exterior. Temia-se que, a partir do Porto, a terrível
peste bubónica se espalhasse pela Europa. As visitas dos médicos estrangeiros,
e a intenção dos especialistas de experimentarem nos portuenses, nos sãos e nos
doentes, vacinas e outros remédios, provocaram a fúria popular. Nas terapias
propostas, que eram de várias espécies, havia alguma confusão, misturando-se
por vezes o antigo e o moderno.
Segundo a obra referida, Yersin já tinha identificado o papel dos ratos e
das pulgas dos ratos na propagação da peste. Um dos responsáveis da Junta
Consultiva da Saúde Pública, Guilherme Enes, era bem claro ao repetir as teses
mais recentes sobre o papel dos transportadores da Yersínia Pestis. Numa
entrevista, Enes analisava o papel dos ratos e das pulgas na peste bubónica,
sublinhando o que especialistas como Appleby viriam a afirmar década depois:
que “as pulgas, ao reconhecerem que o cadáver do rato esfria, abandonam-no logo
e passam para o homem”. E na sequência desta revelação sobre o papel dos ratos
e das pulgas, o Jornal de Notícias
vinha propor uma “grande caça aos
ratos”. Guerra aos ratos e às ratazanas de toda a espécie. Ricardo Jorge
apoiava. Algum tempo depois, a Junta de saúde oferecia um prémio pelo abate dos
ratos: dez réis o rato, 120 réis a dúzia.
Entretanto, o cerco sanitário estava a causar
fome. O comércio estava encerrado e as indústrias, em protesto. Por falta de
matéria-prima, começavam também a fechar.
Para termos uma medida do grau de hostilidade
a que levara este conflito Porto-Lisboa, David Pontes, em O
Cerco da Peste no Porto-cidade, Imprensa e Saúde Pública na Crise Sanitária de
1899,
cita uma coluna satírica do Jornal de Notícias, intitulada “Os
miguéis da peste” em alusão ao cerco do Porto em 1832 pelas tropas de D.
Miguel.
“Esta dicotomia Lisboa reacionária, Porto
liberal, Lisboa ociosa, Porto trabalhador, vem à superfície de modo bastante
brutal nos jornais portuenses e acaba por desencadear uma reação do Governo que
os acusa de negacionistas da peste bubónica e ameaça impor-lhes sanções, ou até
a suspensão, publicando o que ficará conhecido como o ‘decreto da mordaça’”.
Uma vítima colateral deste decreto, que viria
a suspender algumas publicações, foi Ricardo Jorge que, nos finais de outubro, O
Comércio do Porto acusava de ser o inspirador da repressão à imprensa. O médico
indigna-se com o papel demagógico a que os jornais se tinham prestado ao tomar
uma atitude de recusa perante a realidade dos factos; que a peste bubónica
voltara à Europa e que o Porto fora ou era a sua porta de entrada. Os
instigadores desta recusa em aceitar a realidade, misto de demagogia e de
interesses económicos, acabariam por conseguir afastar Ricardo Jorge da cidade.
Entretanto, o seu colega e confrade Câmara Pestana é contaminado pela Yersínia
Pestis e vem a morrer em Lisboa a 15 de novembro.
O segundo “cerco do Porto” foi levantado antes
do Natal de 1899. Ricardo Jorge, depois de toda a contestação e difamação de
que foi alvo no Porto, decidiu mudar-se para Lisboa.
(In "Jornal fórum Covilhã", de 11-11-2020)
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