18 de fevereiro de 2021

A VACINA DE LAVOISIER

 

Embora abrandando, ainda são tempos difíceis os que estamos atravessando. Muitas famílias cruzaram-se com períodos longos de sofrimento. Também muitos de nós vivemos momentos de angústia. O medo de apanhar a Covid 19. O stress. Através da Fundação Portuguesa de Cardiologia, o Professor Doutor Mário Simões deu conselhos muito apropriados, salientando que o stress começa logo nas nossas casas com as notícias mais do mesmo. Que “viver no medo de apanhar a doença aumenta mais a probabilidade de a apanhar”. Num país em que passámos dos oito aos oitenta, estamos agora a recompor-nos desta situação anómala, porque pensámos em determinada altura que eram águas passadas.

Neste confinamento em que, pela segunda vez, somos forçados, parece-nos ter começado uma proximidade mais benévola, onde continuam privilegiados os telefonemas e os meios da tecnologia digital.

Felizmente que o modo de dar as notícias da pandemia, duma forma sensacionalista, por alguns canais televisivos, tiveram no bom senso de alguns dos seus “atores” a maneira de as alterarem para uma informação em termos normais, sem ênfase.

Uma curiosidade neste tempo pandémico, por cá, foi um “surto” linguístico que surgiu, pois passou a ouvir-se dizer vácina em vez de vacina, entre outras palavras. Ouvimos isto nas televisões, por pessoas de vários quadrantes: alguns jornalistas, médicos, comentadores e até governantes. Mesmo não sendo estes personagens nortenhos ou brasileiros, onde aqui se poderia aceitar a forma regional de pronunciar esta palavra.

De tanto se falar em vacina, e dos factos que com a mesma têm ocorrido, leva-me ao tempo em que andava no ensino secundário e estudei química. É que, nestes últimos tempos que estão a decorrer, alguns senhores e senhoras com responsabilidades em vários lugares mais ou menos destacados ao serviço do país, em diversas instituições, aqui e ali, como que adotaram a Lei do grande Lavoisier, numa interpretação personificada nos seus interesses, ou seja, que, de facto, “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.

Foram aquelas vacinas que sobrevoaram para os que estavam fora do que seria normal as não virem receber agora. Porque outros, na ordem lógica para serem vacinados face à perigosidade por força das suas profissões ou idade, devido à sua aplicabilidade indevida, foram preteridos. Ficam agora os infratores em foros de processos disciplinares e crime.

Nada se criou de oportunidade para os casos mais urgentes, nada se perdeu de encontrar ali uma ocasião favorável para os interesses pessoais, e tudo se transformou para os iluminados, naquela de chico-espertismo, que procuram agora, entre a peta e a desculpa, sair da encruzilhada em que se meteram.

Que a justiça não deixe de julgar estes casos insólitos. É que isto merece uma reflexão e envergonha-nos. “Não é só a imunidade que falta entre os portugueses. A muitos falta um maior humanismo, um sentido do dever cívico e uma crença sincera de que se pode ser maior a servir o outro”, nesta sociedade cada vez mais egoísta.

(In "Notícias da Covilhã", de 18-02-2021)

10 de fevereiro de 2021

JORGE BEIRÃO E O JORGE BASTARDO

 

Jorge da Costa nasceu em Alpedrinha, concelho do Fundão. Reinava em Portugal D. João I. E, entre os cristãos, mandava o Papa Gregório XII. Era filho de um almocreve e caseiro duma quinta chamada da Costa, da qual Jorge (inicialmente Jorge Martins), tomou o nome, seguido por toda a família. A mãe era forneira. Foram quinze os seus irmãos, todos vindos ao mundo  no seio de uma família humilde. Em Alpedrinha e terras vizinhas da Beira Baixa contava-se, ao lume das lareiras, que era filho de gente pobre, labutando no dia a dia na sua vida dura e amargurada. Alguns vieram a ter lugares importantes na Igreja, tal como Jorge, o de maior relevo. Partiu ainda muito novo para Lisboa, tendo sido acolhido no hospital de Santo Elói, onde estudou Latim, Filosofia e Teologia. Foi importante a ajuda dum seu parente, o padre João Rodrigues que, admirado da sua perspicácia, o levou a Lisboa, ingressando-o no colégio que ele dirigia. Sendo muito inteligente, depressa se evidenciou.

Seguindo a vida eclesiástica, teve uma ascendência fulgurante na hierarquia da Igreja, tendo ainda estudado em Paris. Foi também diplomata e mestre da Infanta Dona Catarina, a filha mais nova do rei D. Duarte, em 1445, e, portanto, irmã de D. Afonso V.

A sua longa vida, de 102 anos, levou-o a passar por cinco monarcas: D. João I, D. Duarte, D. Afonso V, D. João II e D. Manuel I; e uma dúzia de Papas: Gregório XII, Martinho V, Eugénio IV, Nicolau V, Calisto III, Pio II, Paulo II, Sisto IV, Inocêncio VIII, Alexandre VI, Pio III e Júlio II.

O Papa Alexandre VI deu-lhe o governo de toda a Igreja Portuguesa e D. Jorge passou a ser, ao mesmo tempo, Arcebispo de Braga, de Évora, Bispo do Porto, de Viseu e de Ceuta, oito abadias de São Bento, dez priorados de Santo Agostinho, seis abadias de São Bernardo, contando-se a de Alcobaça, além de sete deados e chantrados portugueses, o de Burgos, em Espanha, três bispados italianos e outras benesses, conseguindo, ao logo da sua vida, uma imensa fortuna. Foi ainda administrador das arquidioceses a partir de Roma.

Portanto, o Cardeal de Portugal, Cardeal de Lisboa ou Cardeal de Alpedrinha personifica, como mais ninguém, o magnata eclesiástico, pleno de benefícios, favores e honras. No entanto, serviu com a dignidade de cardeal os últimos cinco papas já referidos, sendo que foi Sisto IV que o nomeou Cardeal em 18 de dezembro de 1476, sendo conhecido pelo Cardeal de Alpedrinha.

Ia de sucesso em sucesso, firmando posição no seio de esferas dirigentes. Foi confessor, conselheiro e embaixador de D. Afonso V e acompanhou este monarca nas conquistas de Alcácer Ceguer, Tânger e Arzila. Houve uma grande cumplicidade com este rei, colocando-se desde logo ao seu lado na luta de D. Afonso V com seu tio, o regente D. Pedro, tendo este vindo a falecer na batalha de Alfarrobeira, em Alverca, em 20 de maio de 1449. D. Jorge da Costa tornou-se um homem imprescindível para o monarca, tendo-lhe este concedido vários títulos e honrarias, entre as quais as de Arcebispo de Lisboa.

Já as relações de D. Jorge da Costa com o rei D. João II foram bastante complicadas. Valeu-lhe, em 14 de junho de 1480 partir para Roma. O Cardeal de Alpedrinha opôs-se sempre à pretensão do Rei D. João II em concentrar os mestrados na pessoa de D. Jorge, seu filho bastardo, como primeiro passo para a entrega da própria coroa. Isto aconteceu depois da morte do Infante D. Afonso, aos dezasseis anos, num desastre com o seu cavalo. Era o herdeiro legítimo à coroa e estava casado com D. Isabel de Castela. Pode-se afirmar que D. Jorge de Lencastre, bastardo, só não foi rei porque D. Jorge (Cardeal) o não consentiu. Daqui se infere a importância que este personagem teve em Portugal. Quase se pode dizer que D. Jorge da Costa decidiu dos destinos de Portugal. Sem esquecer os seus predicados diplomáticos que foram aproveitados na gestão do Tratado de Tordesilhas, com forte influência do Cardeal junto do Papa Alexandre VI, que o tinha em muita consideração.

D. Jorge da Costa acabou por endereçar cartas de consolação ao rei D. João II, à rainha D. Leonor e à princesa-viúva, D. Isabel, no falecimento do príncipe D. Afonso.


(In "Jornal fórum Covilhã", de 10-02-2021)