16 de agosto de 2023

RESISTÊNCIA AO ESQUECIMENTO

 


A minha memória começa a pregar-me partidas. Esqueço-me com frequência, e o sentido com que quero dizer algumas palavras, orais ou escritas, ou aquela palavra que falta para completar a frase, não sei por que cargas de água, ainda que na parte cognitiva tenha a certeza de que a conheço, não sai, ofusca-se, e quando já não necessito dela (palavra, frase ou provérbio), vem, duma forma lampeira, à recordação, que serviria para completar/discernir dos factos que necessitava em devido tempo.

Mas é na escrita, de longa data, como sobejamente tenho referido, que vou encontrar o antídoto para contradizer o esquecimento.

Quantas vezes vou a uma das estantes, pego num livro, folhei-o despreocupadamente, e não é que aí vou encontrar algo de inspiração para uma crónica?

E é tal a profusão de assuntos que se sobrepõem em folhas de papel e apontamentos uns em cima dos outros, que, por vezes, quando a memória me pretende atraiçoar, lá vou contrariando o esquecimento e surge o que avidamente procurava.

Em 2016, Miguel Esteves Cardoso, nas suas “100 Melhores Crónicas”, já referia em “O Prazer de Esquecer”: “Começo a esquecer-me e a enganar-me. Não resisto. Meu pai sempre a avisar-me: ‘É escusado perder tempo a pensar no tempo em que o tempo se perdia a fazer coisas em vez de pensar nelas’. Perde-se sempre tempo a pensar, seja qual for a idade. Pensar é uma das melhores maneiras de passar o tempo. Então pensar sobre o tempo a passar: que melhor maneira pode haver de enfrentar a morte? Nenhuma. Por enquanto ainda sei que me esqueço e me engano. Ainda sou capaz de querer procurar – e de procurar e encontrar – as coisas de que me vou esquecendo. Mas, ao mesmo tempo, sinto e sei que vem aí um tempo em que só não darei pelos esquecimentos e enganos como serei incapaz de resolvê-los. O cérebro envelhece: enche-se, erradamente, das coisas mais antigas e menos úteis”.

Já que falei do esquecimento, vamos lá numa retrospetiva do jornal online ECO, de 25-11-2016, para a recordação que então trouxe de alguns dos “Oito tesourinhos deprimentes do Parlamento”, a que o mesmo se refere: Ricardo Mourinho Félix, então secretário de Estado do Tesouro, acusou os deputados da direita de “disfuncionalidade cognitiva temporária”.

Há dias em que os deputados e governantes estão inspirados e citam Camões. Mas há outros em que o vernáculo não é tão poético e os ânimos exaltam-se, nomeadamente com expressões pouco elogiosas à capacidade de uns e de outros.

Um dos episódios tristes da Assembleia da República mais conhecido, passou-se em 2 de julho de 2009, quando José Sócrates era primeiro-ministro e Manuel Pinho chefiava a pasta da Economia. Durante o debate do Estado da Nação, discutia-se a situação das Minas de Aljustrel. Bernardino Soares, do PCP, acusou Pinho de ter ido a Aljustrel “dar um cheque”. Era José Sócrates quem usava da palavra, mas Pinho encontrou uma forma de responder: colocou os dedos na testa e fez cornos para a bancada comunista. Manuel Pinho acabou por ser demitido por Sócrates.

Em abril de 2010, Francisco Louçã, quando era líder do Bloco de Esquerda, dirigiu-se a Sócrates, nestes termos: “Sr. Primeiro-ministro, eu vejo que de intervenção em intervenção vai ficando um pouco mais manso...”. A resposta de Sócrates foi captada pelos microfones, mas ficou gravada nas imagens: “Manso é a tua tia, pá!”.

Em novembro de 2014, sobre o tema reforma do IRC, houve uma luta pelo microfone, entre Paulo Núncio, que era secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, e Eduardo Cabrita, mais tarde ministro-adjunto, mas que à data era deputado do PS na Assembleia da República. Núncio tinha acabado de intervir, acusando o PS de rasgar o acordo sobre a reforma, e Cabrita, apesar de estar a conduzir os trabalhos, decidiu tomar a palavra para contrariar o então governante. Paulo Núncio tentou ligar o microfone e interromper Eduardo Cabrita, mas o então deputado não deixou. Enquanto falavam, Eduardo Cabrita desligava sucessivamente o microfone a Paulo Núncio. “Seja verdadeiro, seja verdadeiro” pediu Núncio.

Em junho de 2014, no debate sobre o jogo online, Duarte Marques, deputado do PSD, utilizou a palavra “palhaçada” para se referir à intervenção de José Magalhães, deputado socialista. José Magalhães preparava-se para intervir, mas, antes disso, decidiu responder: “O Sr. Deputado vá chamar palhaço ao seu pai”.

Em 13 de abril de 2016, durante uma audição do ministro do Trabalho, Vieira da Silva, na comissão parlamentar da especialidade, Wanda Guimarães, deputada do PS, lançou-se contra os deputados do PSD: “As direitas – e neste caso estou-me a referir àquela que saiu adornada de social-democracia no último congresso do PSD – têm mudado, de facto, o seu comportamento. Primeiro assistimos a uma grande agressividade e agora passou para o que eu chamaria de transtorno psicótico político. Atenção, político”. À resposta de Adão e Silva, muito enervado com a de Wanda, esta, não dando o assunto por terminado, respondeu: “Se gosta mais de autismo do que de transtorno psicótico, pronto. Agora, não me interrompa porque isso é falta de educação”.

Estes são alguns dos episódios, uns hilariantes, outros vergonhosos, que se passaram no Parlamento português.

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In “Jornal Fórum Covilhã”, de 16-08-2023)

Sem comentários: