3 de julho de 2008

O VELHOTE DO BURRO

Chegaram os Santos Populares E, com eles, o tempo quente. Não conseguiram fazer o milagre de bloquearem os aumentos dos preços dos combustíveis.
E a crise agudizou-se. Mas isto de crise já é palavra vã. Dois países deste planeta permutaram a pobreza pela riqueza.
E nós, inseridos na UE, onde podíamos já estar na vanguarda de outros parceiros, temos estado a ver a banda passar.
Parece que os nossos líderes só são bons lá fora, mas não cá dentro. Os opositores, enquanto treinadores de bancada, vão fazendo contas como tratar da sua rica vidinha. Os que botam ordens do palanque, desta casa onde nos governam, também não conseguem disfarçar algumas névoas sobre uma palavra quase a ser dissipada dos dicionários – “credibilidade”.
A diferença abissal, salarial, entre um administrador e o trabalhador de nível mais baixo é, nalgumas instituições, um autêntico vexame para os restantes obreiros duma mesma causa. E não chegam os avisos de alerta de Cavaco Silva para estes disparates. Mas também lhe faltou a coragem para outras condutas que seriam oportunas.
E, alguns, parecendo uns santinhos, como vemos na comunicação social, senhores de fortunas enormíssimas, e pensões vitalícias cristiano-ronaldescas, nem se envergonham da afronta que fazem, já não digo aos pobres de Cristo, mas à classe média a caminho da pobreza.
É por isso que a “credibilidade”, nas palavras bonitas, nas promessas de fluência oratória, deu o tiro no pé.
E, com isto tudo, vão continuar a doer as mortes, a custar os incêndios, a atordoar os crimes, a entristecer as derrotas e a inquietar as dúvidas mais sombrias, enquanto alguns já tomaram como opção serem politicamente polivalentes – todos os partidos servem como beiral do melhor “emprego” de sempre.
O aumento dos combustíveis levou a estarmos um pouco mais perto de imaginarmos como seria o fim de um tempo a viver sem o automóvel. E nem sequer pensar na evolução que houve no aumento de quilómetros de auto-estrada, quando há duas décadas não chegavam aos três dígitos, até à nação de betão que hoje somos. Imaginar o carro parado à porta de casa e as auto-estradas vazias. E passarmos a utilizar de novo os transportes públicos e a deixar de contribuir para o aquecimento global.
Face ao novo-riquismo, se o automóvel fosse proibido, as grandes cidades entrariam em colapso. É que tudo funciona em função do veículo privado. E ainda não se encontrou o inventar uma cidade alternativa à cidade do automóvel.
Não consentimos olhar para trás, na memória de há 30 ou 40 anos, onde uma aparente tranquilidade não passava dum bolo polvilhado de carências, sacrifícios, vergonhas.
A história que segue vem na peugada das dificuldades emergentes, na altura, da vivência no conformismo em levar o sacrifício até ao fim.
O antigo industrial, Álvaro Paulo Rato, um daqueles homens de fibra, em que a palavra dita ainda fazia lei, deslocava-se na sua carrinha Peugeot 304, por uma das estradas da serra, quando deparou, mais à frente, com um homem acompanhando um burro, carregado de erva, e, a seu lado, seguia a mulher, com duas cestas de hortaliça. Quase que ocupavam metade da estrada. O condutor, Álvaro Paulo Rato, vê acenar o homem do burro, que, ao passar por ele, lhe pede para levar a mulher mais uns quilómetros à frente.
- “Entre para aí!”- disse para a mulher, já sem grande espanto do João Brás, que seguia com o seu patrão, e que conhecia a índole do velho Paulo Rato.
Aproveitando-se da bondade do condutor que parara, o velho, dono do burro, suplica ao senhor do Peugeot para também lhe levar as cestas carregadas de hortaliça.
Num ápice, peculiar de Álvaro Paulo Rato, diz ao velhote: “Meta lá as cestas, e, olhe, se quiser, meta também o burro!”
Lá seguiram viagem: o Álvaro Paulo Rato, o João, a mulher do homem do burro, e a tralha. Atrás ficou, satisfeito, no seu caminhar lento, o homem e o burro.
Com o desenfrear do aumento dos combustíveis, e na alternativa aos transportes públicos, não será a vez de ter que se substituir o combustível por erva e andar de burro?

(In Noticias da Covilhã e Kaminhos de 03/07/2008)

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