Os campos também eram verdejantes. Aqui e ali por vezes
amarelecidos pelo abandono dos que neles trabalhavam. A emigração fazia vestir
de cinza os que partiam, e cinza escuro os que ficavam. O céu azul por vezes criava
uma pequena auréola, ou se toldava da fumarada de muitos que, pensativos, sem feitio
ou arrojo para passarem de assalto a fronteira, permaneciam taciturnos, no
contínuo de uma cigarrada e um copo de três. E o que havia ido às sortes via o
tempo acelerar. Bem depressa chegava a altura de ir à Câmara Municipal buscar
as guias de marcha para partir no comboio que o havia de transportar o mais
próximo do quartel. Aí iria fazer a recruta. Que passava depressa. E a
especialidade era um ai, noutra unidade militar. A ordem de serviço do quartel dava-lhe
a notícia de que estava mobilizado. Na estação de caminho-de-ferro tapava os
ouvidos e cerrava os olhos para não ouvir, e nem sequer ver aquele que também
chorava, no acompanhamento do choro dos familiares, na despedida para o
Ultramar. Era para uma missão de soberania!
As notícias ocultavam-se neste país de brandos costumes, que
isto de ser apanhado na fronteira, como compelido, refratário ou desertor, no
processo a instaurar por via do Regulamento de Disciplina Militar, lá teria que
responder que “aos costumes disse nada”.
Os que por cá foram passando à peluda viam chegado o
tempo de procurarem um novo emprego. Melhor. Mais remunerado e com
possibilidade de subir na carreira. O êxodo dos que trabalhavam na função
pública era um tanto ou quanto flagrante. Não interessava tanto este emprego,
quase garantido para toda a vida. Aqui, era preciso ter o 5.º ano liceal, ou
equivalente, para ter acesso na carreira. Mas, num armazém de lanifícios, ou
num escritório, com a 4.ª classe tinha-se possibilidade de ganhar o dobro. A
apetência era então pelo setor bancário. Também se concorria para a TAP, a CUF
e outras empresas de alto gabarito. Mas, passados anos, alguns ainda que com
cursos industriais, mandaram os mesmos às malvas, que a indústria então já não
é o que era, e encaixavam-se na Segurança Social, num Banco, numa Seguradora, num
Centro de Emprego…
Os noticiários e toda a comunicação social, falada ou
escrita, sofriam ainda o domínio da censura. Era também o tempo da Guerra Fria.
Passando ao lado da mesma, e, na sequência da nossa guerra, lá se sabia que o
Zé, da aldeia, também foi chamado para ir formar Batalhão, para Angola, para
Moçambique, para a Guiné.
A Pide, o assassínio do General Humberto Delgado, o assalto
ao paquete “Santa Maria”, e ao
quartel de Beja, ainda não estavam esquecidos. Produziam-se cores negras.
“Cuidado com as
conversas aqui porque há por aí bufos da Pide” – voz amiga avisava,
baixinho, ao ouvido, no Café Central, do Neve Hotel, já desaparecido da
Covilhã. Como também nos já desaparecidos cafés de referência citadinos – o
Montalto, o Leitão, a Pastelaria Lisbonense, A Triunfo (ao Jardim), o Danúbio.
Mantém-se somente o café Montanha.
Era a altura de se ouvirem, muito em segredo, à noite, as
proibidas “Rádio Liberdade” ou “Rádio Portugal Livre”, da Argélia, que
se iniciou em 12 de março de 1962.
Os terríveis anos 60 e primeiros de 70 continuavam a fazer jorrar
uma juventude lançada numa guerra sem sentido. A revolta, tantas vezes traduzida
em stress pós-traumático, dos que regressaram com vida, era quase sempre
ofuscada pelos próprios. Mas a morbidez da continuidade duma guerra em várias
frentes, começava a assustar as futuras gerações.
Ia-se adivinhando que alguma coisa teria que mudar, ainda
que à força. A oposição democrática, no Congresso de Aveiro, decidiu não
participar nas eleições fantoches. Estávamos em 1973.
No Teatro-Cine da Covilhã, homens e mulheres afetos à União
Nacional e a Marcelo Caetano, que gostavam das suas “Conversas em Família”, na RTP,
ouviam agora as vozes vibrantes dos seus oradores, entre os quais o
deputado pelo círculo de Castelo Branco, Dr. Rui Pontífice de Sousa, do
Tortosendo, que viria a falecer de acidente automóvel, pouco tempo depois. No
raio de alguns metros, também no Pelourinho, num andar já demolido do extinto
Neve Hotel, reunia-se um grupo de oposicionistas, da Comissão Democrática
Eleitoral (CDE). Também lá estive.
Na Guiné, o General Spínola começava a dar nas vistas. O seu
livro “Portugal e o Futuro”, veio dar
uma ajuda à reviravolta, abalando o regime ditatorial. O 25 de abril de 1974
aproximava-se!
No dia 14 de março, Marcelo Caetano recebia
oficiais-generais dos três ramos das Forças Armadas, numa reunião que ficou
conhecida como “Brigada do Reumático”, no intuito de tentar provar que o regime
tinha tudo sob controlo. No dia seguinte, eu lia em Lisboa, no “Diário de Notícias”, a notícia da demissão
dos generais Costa Gomes e António de Spínola por se terem recusado a
participar naquela reunião.
Na manhã daquele sábado, 16 de março, no regresso à Covilhã,
algures na estrada, cruzámo-nos com uma coluna militar, todos de semblante
carregado. Vinha eu de boleia com o amigo Humberto Andrade. Só mais tarde viemos
a saber ter-se tratado do golpe militar, falhado, do Regimento de Infantaria 5,
de Caldas da Rainha, que marchava sobre Lisboa.
Mas, na 2.ª feira, 18 de março, a censura prévia acabaria
por ser iludida pelo jornal “República”,
duma forma brilhante, para comentar a revolta das Caldas, como poderemos ver,
aproveitando a derrota do F.C. Porto, na deslocação ao Estádio de Alvalade, com
o Sporting, por 2-0: “Os muitos nortenhos
que no fim-de-semana avançaram até Lisboa, sonhando com a vitória, acabaram por
retirar, desiludidos pela derrota. O adversário da capital, mais bem organizado
e apetrechado (sobretudo bem informado da estratégia), contando ainda com uma
assistência fiel, fez abortar os intentos dos homens do Norte. Mas,
parafraseando o que em tempos dissera um astuto comandante, “perdeu-se uma
batalha mas não se perdeu a guerra”…
Entretanto, num outro fim-de-semana, também no meu regresso
de Lisboa para a Covilhã, de âmbito profissional (acompanhava-me na viagem o
Joaquim Cravino, que cumpria serviço militar), na habitual paragem em Ponte de
Sor (ainda não havia a A23), o proprietário do café onde entrámos, conhecido
por oposicionista ao regime, fazia questão de nos informar e orgulhava-se de já
ter adquirido o livro do General Spínola. Era a revolta que extravasava
principalmente na classe média.
E, finalmente, às 22,55 horas do dia 24 de abril, os
Emissores Associados de Lisboa transmitiam a canção “E Depois do Adeus”, de
Paulo de Carvalho, primeiro sinal do MFA, confirmando que tudo corria bem. No
dia seguinte era o 25 de abril que a todos deixou deslumbrados.
E, porque a partir daqui já muito foi fito, e redito, ficam no
pensamento todas as cores com que se festejou este grande acontecimento, pelo
País fora, e não só. Entretanto, jamais pensaríamos que, volvidos 41 anos,
Portugal retrocedesse tanto nos ideais da Revolução dos Cravos, e que hoje, as
cores do 25 de abril tenham desmaiado fortemente.
Os cravos murcharam! É preciso voltar a fazer colorir o 25
de abril!
(In "Notícias da Covilhã", de 16-04-2015)
Sem comentários:
Enviar um comentário