15 de abril de 2015

É PRECISO COLORIR O 25 DE ABRIL

Os campos também eram verdejantes. Aqui e ali por vezes amarelecidos pelo abandono dos que neles trabalhavam. A emigração fazia vestir de cinza os que partiam, e cinza escuro os que ficavam. O céu azul por vezes criava uma pequena auréola, ou se toldava da fumarada de muitos que, pensativos, sem feitio ou arrojo para passarem de assalto a fronteira, permaneciam taciturnos, no contínuo de uma cigarrada e um copo de três. E o que havia ido às sortes via o tempo acelerar. Bem depressa chegava a altura de ir à Câmara Municipal buscar as guias de marcha para partir no comboio que o havia de transportar o mais próximo do quartel. Aí iria fazer a recruta. Que passava depressa. E a especialidade era um ai, noutra unidade militar. A ordem de serviço do quartel dava-lhe a notícia de que estava mobilizado. Na estação de caminho-de-ferro tapava os ouvidos e cerrava os olhos para não ouvir, e nem sequer ver aquele que também chorava, no acompanhamento do choro dos familiares, na despedida para o Ultramar. Era para uma missão de soberania!
As notícias ocultavam-se neste país de brandos costumes, que isto de ser apanhado na fronteira, como compelido, refratário ou desertor, no processo a instaurar por via do Regulamento de Disciplina Militar, lá teria que responder que “aos costumes disse nada”.
Os que por cá foram passando à peluda viam chegado o tempo de procurarem um novo emprego. Melhor. Mais remunerado e com possibilidade de subir na carreira. O êxodo dos que trabalhavam na função pública era um tanto ou quanto flagrante. Não interessava tanto este emprego, quase garantido para toda a vida. Aqui, era preciso ter o 5.º ano liceal, ou equivalente, para ter acesso na carreira. Mas, num armazém de lanifícios, ou num escritório, com a 4.ª classe tinha-se possibilidade de ganhar o dobro. A apetência era então pelo setor bancário. Também se concorria para a TAP, a CUF e outras empresas de alto gabarito. Mas, passados anos, alguns ainda que com cursos industriais, mandaram os mesmos às malvas, que a indústria então já não é o que era, e encaixavam-se na Segurança Social, num Banco, numa Seguradora, num Centro de Emprego…
Os noticiários e toda a comunicação social, falada ou escrita, sofriam ainda o domínio da censura. Era também o tempo da Guerra Fria. Passando ao lado da mesma, e, na sequência da nossa guerra, lá se sabia que o Zé, da aldeia, também foi chamado para ir formar Batalhão, para Angola, para Moçambique, para a Guiné.
A Pide, o assassínio do General Humberto Delgado, o assalto ao paquete “Santa Maria”, e ao quartel de Beja, ainda não estavam esquecidos. Produziam-se cores negras.
“Cuidado com as conversas aqui porque há por aí bufos da Pide” – voz amiga avisava, baixinho, ao ouvido, no Café Central, do Neve Hotel, já desaparecido da Covilhã. Como também nos já desaparecidos cafés de referência citadinos – o Montalto, o Leitão, a Pastelaria Lisbonense, A Triunfo (ao Jardim), o Danúbio. Mantém-se somente o café Montanha.
Era a altura de se ouvirem, muito em segredo, à noite, as proibidas “Rádio Liberdade” ou “Rádio Portugal Livre”, da Argélia, que se iniciou em 12 de março de 1962.
Os terríveis anos 60 e primeiros de 70 continuavam a fazer jorrar uma juventude lançada numa guerra sem sentido. A revolta, tantas vezes traduzida em stress pós-traumático, dos que regressaram com vida, era quase sempre ofuscada pelos próprios. Mas a morbidez da continuidade duma guerra em várias frentes, começava a assustar as futuras gerações.
Ia-se adivinhando que alguma coisa teria que mudar, ainda que à força. A oposição democrática, no Congresso de Aveiro, decidiu não participar nas eleições fantoches. Estávamos em 1973.
No Teatro-Cine da Covilhã, homens e mulheres afetos à União Nacional e a Marcelo Caetano, que gostavam das suas “Conversas em Família”, na RTP, ouviam agora as vozes vibrantes dos seus oradores, entre os quais o deputado pelo círculo de Castelo Branco, Dr. Rui Pontífice de Sousa, do Tortosendo, que viria a falecer de acidente automóvel, pouco tempo depois. No raio de alguns metros, também no Pelourinho, num andar já demolido do extinto Neve Hotel, reunia-se um grupo de oposicionistas, da Comissão Democrática Eleitoral (CDE). Também lá estive.
Na Guiné, o General Spínola começava a dar nas vistas. O seu livro “Portugal e o Futuro”, veio dar uma ajuda à reviravolta, abalando o regime ditatorial. O 25 de abril de 1974 aproximava-se!
No dia 14 de março, Marcelo Caetano recebia oficiais-generais dos três ramos das Forças Armadas, numa reunião que ficou conhecida como “Brigada do Reumático”, no intuito de tentar provar que o regime tinha tudo sob controlo. No dia seguinte, eu lia em Lisboa, no “Diário de Notícias”, a notícia da demissão dos generais Costa Gomes e António de Spínola por se terem recusado a participar naquela reunião.
Na manhã daquele sábado, 16 de março, no regresso à Covilhã, algures na estrada, cruzámo-nos com uma coluna militar, todos de semblante carregado. Vinha eu de boleia com o amigo Humberto Andrade. Só mais tarde viemos a saber ter-se tratado do golpe militar, falhado, do Regimento de Infantaria 5, de Caldas da Rainha, que marchava sobre Lisboa.
Mas, na 2.ª feira, 18 de março, a censura prévia acabaria por ser iludida pelo jornal “República”, duma forma brilhante, para comentar a revolta das Caldas, como poderemos ver, aproveitando a derrota do F.C. Porto, na deslocação ao Estádio de Alvalade, com o Sporting, por 2-0: “Os muitos nortenhos que no fim-de-semana avançaram até Lisboa, sonhando com a vitória, acabaram por retirar, desiludidos pela derrota. O adversário da capital, mais bem organizado e apetrechado (sobretudo bem informado da estratégia), contando ainda com uma assistência fiel, fez abortar os intentos dos homens do Norte. Mas, parafraseando o que em tempos dissera um astuto comandante, “perdeu-se uma batalha mas não se perdeu a guerra”…
Entretanto, num outro fim-de-semana, também no meu regresso de Lisboa para a Covilhã, de âmbito profissional (acompanhava-me na viagem o Joaquim Cravino, que cumpria serviço militar), na habitual paragem em Ponte de Sor (ainda não havia a A23), o proprietário do café onde entrámos, conhecido por oposicionista ao regime, fazia questão de nos informar e orgulhava-se de já ter adquirido o livro do General Spínola. Era a revolta que extravasava principalmente na classe média.
E, finalmente, às 22,55 horas do dia 24 de abril, os Emissores Associados de Lisboa transmitiam a canção “E Depois do Adeus”, de Paulo de Carvalho, primeiro sinal do MFA, confirmando que tudo corria bem. No dia seguinte era o 25 de abril que a todos deixou deslumbrados.
E, porque a partir daqui já muito foi fito, e redito, ficam no pensamento todas as cores com que se festejou este grande acontecimento, pelo País fora, e não só. Entretanto, jamais pensaríamos que, volvidos 41 anos, Portugal retrocedesse tanto nos ideais da Revolução dos Cravos, e que hoje, as cores do 25 de abril tenham desmaiado fortemente.

Os cravos murcharam! É preciso voltar a fazer colorir o 25 de abril!

(In "Notícias da Covilhã", de 16-04-2015)

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