Pertenço ao grupo dos que
viveu em dois séculos e em dois regimes políticos. São memórias os tempos
insatisfeitos dum cidadão que fora de segunda por ser funcionário público, sem
regalias algumas que não fossem as exclusivas dos míseros vencimentos do Estado,
“privilegiado” ao não direito à assistência médica.
Gostando-se ou não da
profissão, nela se permanecia até ao serviço militar obrigatório, já que, para
o setor privado, existia a eterna pergunta: “E a tropa?” Durante o percurso poderia
haver alguma hipótese de se concorrer na instituição, para na frágil carreira
se subir um pouco mais. A página do Diário do Governo até me colocou em
primeiro lugar no concurso, por direito próprio, não “boy” como nos dias de
hoje acontece.
Das poucas vezes que uma
maleita nos abalava, já que era quase proibitivo apanhá-la face aos poucos
recursos salariais, escolhia-se um dos médicos conhecidos que perdoava a
consulta, já que o nosso “patrão” tinha muitos trabalhadores e pagava mal. O
Dr. Baltazar era o Presidente da Câmara e o Dr. Santos Marques meu professor na
Escola Industrial.
Mas corriam os anos sessenta
do outro século e aquela gentinha das aldeias, algumas ainda sem energia
elétrica ou água canalizada e saneamento, como na zona mineira, lá vinham num
corrupio, para se legalizarem na edilidade do concelho e mandarem o país às
malvas, que isto de ir de assalto não era para todos, similarmente aos
refugiados.
Já antes Cebola se passara a
chamar São Jorge da Beira; Sobral de Casegas seria o Sobral de São Miguel e, do
outro lado oposto, Aldeia de Mato seria o Vale Formoso de hoje.
Na tropa chegou a vez de nos
juntarmos dois manos, furriéis milicianos, um cá e outro na Guiné.
Chegada a altura da peluda, o
tempo era de mudar de ares profissionais, e vai de participar em concursos que
estivessem mais à mão. Os bancos, centros de emprego ou caixas de previdência
eram a propensão mais imediata. Os escritórios ou armazéns fabris da Manchester
Portuguesa também já não eram acolhedores para a juventude mormente a que
regressava das Colónias.
Do público para o privado, a vida mais exigente mas de
contornos mais radiantes.
A Internet ainda não existia
em Portugal, e as calculadoras (que davam jeito para a atividade) também não. E
muito menos os telemóveis.
As viagens noturnas não eram
tão perigosas como nos dias de hoje. Autoestradas no interior nem vê-las…
Passar no Alto Alentejo, nas noites de verão, era de parar o carro para um
chichi no campo. E, lá mais para dentro do mesmo, os grilos a cantar. Depois do
Couço e de Mora era ver se ainda se chegava a tempo de encontrar o café aberto,
com posto público, antes das curvas de Niza, para se telefonar para casa, alta
noite, a informar o regresso da nossa viagem. Era ainda o tempo das chamadas
interurbanas, que não eram imediatas… Como os telemóveis, ainda inexistentes,
dariam jeito nessas alturas…
Naquela sexta-feira de 16 de
março de 1974 vinha de Lisboa no carro do Manuel Humberto Lopes Andrade quando,
perto de Tancos, passámos pelos militares que vinham do RI 5 e se dirigiam para
Lisboa. Só depois soubemos pela comunicação social que se tratara da “Revolta
das Caldas”. E, já novamente em Lisboa, na segunda-feira, tive conhecimento da
demissão dos generais Spínola e Costa Gomes por não terem participado na
cerimónia de apoio a Marcelo Caetano – a tal Brigada do Reumático.
Já depois, mas ainda antes do
25 de abril ter surgido, numa outra viagem de sexta-feira em que comigo vinha o
Cravino, num café de Ponte de Sor, o proprietário manifestava-se exuberante com
a leitura do livro “Portugal e o Futuro”, de Spínola, numa altura em que a Pide
ainda atuava.
Adivinhava-se algo de
extraordinário que viria por aí, até que surge a Revolução dos Cravos, mas que
logo se veio transformar numa situação perniciosa que toldaria o país quase para
o abismo.
O mesmo século que nos trazia a Revolução dos Cravos
fazia-nos chegar também o famigerado PREC (Processo Revolucionário em Curso).
Quando nas minhas viagens
profissionais chegava a uma localidade havia quase sempre uma agitação popular,
ou o Presidente da Comissão Administrativa da Câmara punha na rua o Chefe de
Finanças, como em Figueira de Castelo Rodrigo; ou os trabalhadores abriam a
porta ao patrão; comícios e mais reuniões de trabalhadores, com as enfadonhas “amplas
liberdades democráticas”, de Cunhal, lá
para os lados de Vilar Torpim e da Reigada, com tratores e o sindicalista empinado
no atrelado, a fazer um plenário de trabalhadores.
E lá surgiam as tentativas de
golpe de Estado, às quais acorriam a impedir, por essas estradas fora, os
guedelhudos militares do SUV – Soldados Unidos Vencerão, de fralda de fora,
juntamente com os GNR e civis, toda aquela falperra de gente a procurar armas
nas viaturas dos que passavam.
E assim aconteceu comigo, vindo
da Vermiosa, quase às duas da madrugada de um certo dia, na Senhora do Carmo
(Teixoso), felizmente pouco antes de ali ter passado o Lelo, funcionário do
Banco Borges & Irmão que levou um tiro e foi evacuado de helicóptero para
Lisboa, ficando paraplégico.
Tanto ele como o Manuel
Andrade já faleceram, este recentemente.
Depois de tanta alegria, de grandes esperanças no
horizonte, o que é feito hoje do 25 de Abril?
Onde está a esperança de
melhores dias, após tanta corrupção que grassa pelo País inteiro?
Face às notícias vindas a
público, em catadupa, em quem havemos de acreditar? Onde estão os homens e
mulheres honestos de Portugal? Onde está o País que desejamos, esse Paraíso
Real sem paraísos fiscais?
(In "Notícias da Covilhã", de 21-04-2016)