11 de abril de 2019

FILHOS DA MADRUGADA


Na senda do entusiasmo que temos vindo a atingir em crescendo com a nossa publicação trimestral, foi solicitado na última Assembleia Geral deste Núcleo da Covilhã, realizada no dia 9 de março, que se mantivessem os quatro números anuais d’ O Combatente da Estrela, já que é o elo de ligação com os muitos Associados radicados por todo o País.
Esta Assembleia Geral viu aprovado por unanimidade o relatório das atividades do ano 2018 e o plano de atividades para 2019, salientando-se com muito apreço o trabalho da atual Direção do Núcleo, pois que o ano de 2018 foi um ano pleno de atividades, onde sobressaíram as evocações do Centenário do Armistício.
Vem à presença dos leitores este número, no mês de abril, ano em que se comemoram 45 anos do 25 de Abril, dia em que quase todos nós, então ainda revestidos da nossa juventude, sentimos o coração a palpitar de alegria, acordados de um sonho que parecia uma utopia.
Pena é que os ideais do Movimento dos Capitães viessem ao longo de todos estes anos a ser adulterados e gerado em muitos de nós dúvidas, indignações e perplexidades sobre atuações em várias vertentes como, por exemplo, onde pondera a lentidão da justiça, e a sua aplicação. Muitos se têm aproveitado da democracia para se envolverem no locupletamento, à descarada, por vezes provindo de figuras das quais nem pensávamos que por elas passasse tal conduta. Não olhando a meios para atingir os seus fins, numa onda de populismo como agora é a palavra do momento político.
E foi a Revolução dos Cravos, ainda que feita de pétalas de virtudes e defeitos, que veio terminar com a Guerra nas Colónias – a Guerra do Ultramar – para onde muitos de nós por lá passámos, e, daí, a vivência profunda dos variadíssimos Núcleos da Liga dos Combatentes.
Se muito já se falou, é bom que os atuais antigos Combatentes, e não só, deixem para os novos, e os vindouros, as memórias destes tempos, para que odeiem as guerras e se insuflam nos projetos pela paz.
Aqui reproduzo as primeiras notícias sobre o início desta Revolução do 25 de Abril, e as figuras que emergiram como filhos daquela madrugada, que tiveram a coragem de enfrentar o perigo, naquela altura em que eu tinha 28 anos, recordando essa célebre quinta-feira de redobradas atenções.
Às quatro e tal da manhã daquele dia de quinta-feira o Rádio Clube Português (RCP) acaba de transmitir o primeiro comunicado do Movimento das Forças Armadas (MFA), o que motivou que não mais conseguisse dormir quem o ouviu, tal como o fotógrafo Alfredo Cunha, do jornal O Século, que foi quem obteve as primeiras fotografias deste acontecimento, em Lisboa. Às seis da manhã de 25 de Abril toca a campainha do jornalista Adelino Gomes, então com 29 anos e secretário da redação da revista Seara Nova, pensando que ia ser preso pela PIDE, quando a mulher o informou do acontecimento. Às três horas e doze minutos, o RCP tinha pouca gente, dois técnicos de som e Joaquim Furtado, que preparava o noticiário das quatro. Oito militares entraram na estação. Objetivo: instalar ali o Posto de Comando do MFA. Só nessa altura Joaquim Furtado tomou conhecimento da existência de um movimento. Saiu do gabinete e no primeiro momento que encontrou apropriado perguntou a um dos militares, que lhe disse, de forma muito breve, mas muito clara, que se tratava de um golpe militar para depor o governo, fazer eleições livres, libertar os presos políticos, acabar com a PIDE, com a censura e com a guerra. Deu-lhe em síntese o programa do MFA.
Às quatro e vinte e seis, e não às quatro como previa o plano militar de operações devido a um atraso na tomada do Aeroporto de Lisboa, a voz segura de Joaquim Furtado anuncia: “Aqui Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas. As Forças Armadas portuguesas apelam a todos os habitantes da cidade de Lisboa no sentido de recolherem a suas casas, nas quais devem conservar-se com a máxima calma. Esperamos sinceramente que a gravidade da hora que vivemos não seja tristemente assinalada por qualquer acidente pessoal, para o que apelamos para o bom senso dos comandos das forças militarizadas no sentido de serem evitados quaisquer confrontos com as Forças Armadas. Tal confronto, além de desnecessário, só poderá conduzir a sérios prejuízos individuais que enlutariam e criariam divisões entre os portugueses, o que há que evitar a todo o custo. Não obstante a expressa preocupação de não fazer correr a mínima gota de sangue de qualquer português, apelamos para o espírito cívico e profissional da classe médica, esperando que acorram aos hospitais, a fim de prestar a sua eventual colaboração, que se deseja, sinceramente, desnecessária”.
E foi assim que outro filho da madrugada, o médico João Camilo, interno do Hospital de São José, respondeu ao apelo do MFA.
Quem também não esqueceu este dia foi Helena Pato, na altura com 35 anos, dirigente estudantil, dirigente da CDE, sindicalista e fundadora do Movimento Democrático das Mulheres, porque tinha o seu marido de então, José Manuel Tengarinha, preso em Caxias. Tinha uma visita marcada para a cadeia às onze da manhã do dia 25 de Abril, mas cerca das quatro horas toca-lhe o telefone, e é o jornalista do Diário de Lisboa que lhe comunica que estavam em curso movimentações militares para derrubar o regime, que iniciavam uma revolução e uma das primeiras coisas que iriam fazer era libertar o marido e os restantes presos políticos.
Na primeira conferência de imprensa de Salgueiro Maia, o jornalista Adelino Gomes disse-lhe: “Não desconhece que a GNR está muito bem armada, pois não?”, ao que o capitão responde: “Temos todas as viaturas do Exército do nosso lado”. E há uma voz que diz. “E temos o povo”. Era o alferes Carlos Beato, que foi presidente da Câmara de Grândola.
E foi o desenrolar de muitos outros filhos da madrugada que não cabem neste texto. Ficam as memórias.


(In "O Combatente da Estrela", nº. 114, de março de 2019)

9 de abril de 2019

O 25 DE ABRIL – QUANDO O JORNALISMO SAIU À RUA


No próximo dia 21 inicia-se a Páscoa para, na mesma semana, encontrarmos uma data marcante nas vidas de todos nós, mesmo daqueles que não passaram pelos satânicos tempos da ditadura.
Inolvidável para quem sofreu na pele ou no sacrifício diário de ter de penar para manter um emprego de salários miseráveis (que se lembrem os da função pública de então), de comer e calar, suportar as situações de uma neurose ao não se poder expressar livremente.
Dos jornalistas, dos comentadores, dos cronistas, os seus textos não eram publicados sem a aprovação dos censores.
Foi quase meio século de um assassino lápis azul, que obrigava muitos jornalistas a um relato insípido, de metáforas e eufemismos.
Tudo era proibido, tudo era tabu. Se havia alguns mais criativos arriscavam-se nas entrelinhas.
Era até ridículo o que não podia revelar-se. Fake news já existiam nesse tempo, ainda que muito bem dissimuladas, mormente durante a guerra colonial. Este neologismo de notícias falsas que hoje é usado para referir notícias fabricadas, passava por vezes pelo que acontecia, e como aconteciam as mortes dos combatentes das guerras nas colónias, sempre numa perspetiva de evitar maiores responsabilidades dos governantes deste país então desgraçado.
E isso não evitou que o primeiro dia do fim do império surgisse em 15 de março de 1961, em Angola, com bandos armados da UPA a destruírem fazendas e vilas e a assassinarem dois mil colonos portugueses. Foi o início de uma tragédia imensa, que abriu caminho para 14 anos de guerra. A Índia já havia caído. E era preciso defender África.
Mas dizer a verdade era assumir que no país havia descontentamento social, era pôr em causa o regime.
Recordemos um caso curioso, para fugir à censura, o que relatou o jornal República, naquela segunda-feira de 18 de março de 1974, aproveitando a derrota do F. C. Porto na sua deslocação ao Estádio de Alvalade para, de uma forma brilhante, iludir a censura prévia e comentar a revolta das Caldas da Rainha.
Sporting 2, Porto, 0. Os muitos nortenhos que no fim de semana avançaram até Lisboa, sonhando com a vitória, acabaram por retirar, desiludidos pela derrota. O adversário da capital, mais bem organizado e apetrechado (sobretudo bem informado de sua estratégia), contando ainda com uma assistência fiel, fez abortar os intentos dos homens do Norte. Mas, parafraseando o que em tempos dissera um astuto comandante, ‘perdeu-se uma batalha mas não se perdeu a guerra…’”.
O que é certo e verdade é que dez dias depois, em 28 de março de 1974, foi a última “Conversa em Família” de Marcelo Caetano, na RTP.
Mas, felizmente, no dia 24 de abril de 1974, às 22 horas e 55 minutos, os Emissores Associados de Lisboa transmitiam a canção “E Depois do Adeus”, de Paulo de Carvalho, primeiro sinal do Movimento das Forças Armadas (MFA), confirmando que tudo corria bem e se iniciava, assim, uma nova era com o derrube do Governo e da ditadura, no dia seguinte, 25 de Abril de 1974.
Como terá sido a transição para a livre expressão? Como foi fazer jornalismo com liberdade, pela primeira vez? E poder dar gritos de repugnância pela Censura e Exame Prévio?
O que é certo é que a tiragem de jornais disparou. Mas, dado o hábito, dizem alguns jornalistas desse tempo, mormente do República, Diário de Lisboa e Jornal de Notícias, que não foi fácil, nos primeiros tempos, escrever sem a barreira da censura. Foi um tempo quase de aprendizagem e de excessos.
Mas já o primeiro texto sem censura do jornalista Fernando Correia foi escrito na cadeia de Caxias, dias antes de ser libertado. Tinha sido detido pela PIDE a 18 de abril de 1974. Como se sabe, os presos de Caxias só poucos dias depois foram libertados. O derrube do fascismo estava praticamente consumados mas os presos de Caxias, apesar de já estarem informados do êxito do golpe, permaneciam ainda encarcerados.
O mês de abril de 1974, já lá vão 45 anos, apanhou o alferes miliciano Ribeiro Cardoso longe de casa. Havia sido mobilizado para Moçambique e colocado em Lourenço Marques. Diz que nessa altura só escrevia para a família – e quanto a jornais, apenas era visita regular da delegação do Notícias da Beira. Porém, de repente, com o ar da liberdade voltou ao ativo, começando de imediato a ser correspondente anónimo (não assinava, pois, era militar…) do Diário de Lisboa. Realça que era uma “coisa” estranha mas excitante: escrevia no quartel, à mão e à pressa, e ia a correr aos CTT, onde numa operadora batia o texto no telex, com ele ao lado a “traduzir” os seus gatafunhos. Era uma sensação fantástica pressentir que dali a pouco tempo os seus textos, livres como a gaivota da canção, circulariam por Lisboa dando conta de uma realidade distante e desconhecida.
E hoje, como vai o jornalismo, nesta senda de falsas notícias e o pós-verdade, onde os verdadeiros profissionais desta nobre atividade tantas vezes se sentem defraudados pela incompreensão dos tribunais? Entre excessos e realidades. Entre o que “hoje é verdade e amanhã é mentira”.

(In "Jornal fórum Covilhã", de 09-04-2019)

3 de abril de 2019

AS TASCAS


Ainda numa retrospetiva do que a inspiração me levou a ocupar espaço no meu último livro, que desenvolve a história da temática seguradora ao longo de diversas tertúlias, em várias partes do País, mormente na Covilhã, Leiria narra-as na Tasca da Ti Gracinda. (1) Ali o Benedito informa o Rosas ter casado com a maestrina das bandas dos Pousos e dos Marrazes, com a palestra iniciada no dia 3 de abril do ano da graça de 2018.
Pois é, das tabernas de outros tempos, havia cascas de tremoços e amendoins no chão. Copos de três. Eduardinho. Ginjinha. Capilé. Havia tabernas que o usavam para fazer o famoso “branco velho” que era uma mistura de vinho branco banal com esse licor ou, em alternativa, com Eduardinho e que se vendia muito logo pela manhã.
Havia peixe frito. Petingas. Jaquinzinhos. Raia. Carapaus e chicharro, com ou sem escabeche. Iscas de fígado, chouriço.
- Sai um traçado, ó puto!
“Tinha onze anos quando, nas férias comecei a servir copos de dois e copos de três, traçados, jeropigas, ginjinhas com e sem elas, bagaços, medronhos, gasosas, laranjadas e feijoadas crispalhadas, mão de vaca com grão, carapaus grelhados, iscas, etc., etc. Eu sei lá quantas coisas se vendiam na taberna do meu saudoso padrinho Rui de Turquel no Campo dos Mártires da Pátria em Lisboa”. (2)
São ainda memórias das tabernas de outros tempos, como conta o Rosas, naquele início da década de 70, bêbados, loucos e doutores eram todos do contra. E a PIDE, então já DGS, não se metia.
E, neste âmbito, no meu penúltimo livrinho, reporto-me à malfadada PIDE, por intermédio da FNAT a não deixar o amigo Rui Pavillon (3) integrar uma lista para os órgãos dirigentes do Estrela de São Pedro “por fazer parte de um grupo de indivíduos que, nas últimas eleições para a Presidência da República, fizeram propaganda a favor do candidato independente General Humberto Delgado”.
E tudo isto se contava nas tascas.
Já o João Viriato, iniciou a “Tertúlia de Lisboa”, que coordenou, no dia 30 de abril, há um ano, uma segunda-feira, na Adega da Tia Matilde, na Rua da Beneficência, em Lisboa, logo passando para a Casa da Covilhã, na Rua do Benformoso (4) para acabar, em beleza, com todos os grupos tertulianos, no dia 13 de junho de 2018, com o encerramento pelo Presidente da Direção, Manuel Vaz Rodrigues.
Pois é, há mais de vinte anos, à mesa de uma taberna que já não existe, em Coimbra, com o objetivo de proteger estes símbolos de identidade coimbrã, estudar as histórias das tabernas e conhecer um pouco mais dos intelectuais que as frequentavam, nasceu a LATA – Liga dos Amigos das Tabernas Antigas. No livro “In Illo Tempore”, de Trindade Coelho, o autor fala dos tempos que viveu em Coimbra e da vida na cidade. Fala também das tabernas. Bom, mas a LATA tem como objetivo de defesa daqueles espaços como locais de socialização e de encontro ao longo dos séculos.
As tabernas são o lugar das últimas e mais raras experiências de sociabilidade, exame crítico ou evasão.
Apagados que sejam os sinais de decadência ou de falta de higiene, quere-se que a taberna mantenha as caraterísticas portuguesas, a fim de que possa readquirir o espírito e o prestígio, a poesia, o pensamento, e a graça.
E, depois, até podem vir a caldeirada, o feijão-frade, a meia-desfeita, as canjas e os caldos verdes, o rancho, o pé de porco, o salpicão, as iscas, os escabeches, a dobrada, as migas e as sopas de pedra, as pataniscas de bacalhau e os ovos verdes, tudo regado com bom vinho.
“A Igreja sempre condenou estes pontos de encontro, chamando-lhes centros de luxúria e do demónio. E quem não perdoava às tabernas eram os escritores mais pios que, louvando o vinho, atacavam esses lugares velados e escuros onde o homem abandonado, oprimido ou infeliz, tantas e tantas vezes descarregava a sua angústia e as suas misérias e fraquezas.”
Gil Vicente deixou a maior das homenagens às tabernas e ao vinho do Porto com o Pranto da Maria Parda. Garcia de Resende, no seu Cancioneiro Geral, recolheu também curiosos apontamentos. Mas já o romântico Almeida Garrett, nas suas Viagens na Minha Terra, exprime uma certa repugnância pelas tabernas, onde tomava sempre limonadas, exaltando muito embora o vinho de Carcavelos ou do Cartaxo. E Junqueiro exclamava, heroico e musical, que neste país há ótimos bordéis e excelentes vinhos.
Do que fui passando a história seguradora desde a Antiguidade até aos dias de hoje, foi ainda pelos cafés, restaurantes, e tascas leirienses, imaginando à porta, o loureiro e o saco de água para “assustar” as moscas. Lá dentro, os banquinhos de madeira, ou corridos, as mesas, os mochos, e as pipas ainda de madeira.
E foi nesta senda que, recordando-me ainda dos tempos de meus tios maternos na Pousadinha, e de meu sogro na Covilhã, que há dias fui meter conversa com o Carlos Manuel Rente Calheiros, ainda um jovem de 60 anos, atual proprietário da Taberna do Zé Ministro, junto à Igreja de São João de Malta, na Covilhã. Está à frente deste estabelecimento, sobejamente conhecido da cidade laneira e região, numa zona de grande movimento e central da Covilhã, desde março de 1982.
Porquê, Carlos, chamar-se a Tasca do Zé Ministro?
E logo a resposta do amável proprietário: “Esta tasca foi dantes chamada a Tasca do Carrilho, que se lhe seguiu na aquisição o António Caetano, mais conhecido pelo ‘Bota Cá’. Meu pai, José Calheiros da Trindade, que anteriormente teve um estabelecimento destes na Rua do Jardim, a Santa Maria, acabou por adquirir o trespasse desta taberna, no ano de 1957, por 64 contos. Era uma pipa de massa para a altura. O pessoal que a frequentava, e trabalhava nas oficinas da Garagem de São João, ao lhes soar aos ouvidos este preço, afirmaram, “Eh! Pá! Passaram a tasca do António por 64 contos!... Deve ser algum Ministro!...”
E assim ficou o nome, até aos dias de hoje – a Tasca do Zé Ministro.
João de Jesus Nunes



(1), (2), (4) In “O Documento Antigo – Uma Outra Forma de Ver os Seguros”.
(3) In “Breve Resenha do Centro de Recreio Popular Estrela Desportiva de São Pedro”


(In "Notícias da Covilhã", de 04-04-2019)