20 de março de 2020

DE G3 EM RISTE, O POVO ENTROU NA HISTÓRIA


Este é mais um número do nosso Jornal. Corresponde sensivelmente ao segundo trimestre deste ano. Aqui se inserem duas datas importantes entre os antigos Combatentes. O dia 9 de Abril comemora o ataque em larga escala dos alemães na batalha da Flandres, em 1917, onde começaram a lutar os 55 mil homens do Corpo Expedicionário Português (CEP) que também combatiam em África. O País não se encontrava empenhado no esforço de guerra, dado que o desejo político dos dirigentes não correspondia às realidades militares, nem à vontade da população. O ataque em larga escala lançado pelos alemães na madrugada daquele dia deu início à batalha de La Lys, de dolorosa memória para o exército português. As baixas do CEP estimaram-se em 1341 mortos, 1932 desaparecidos, 4626 feridos e 7740 prisioneiros. O País atravessava uma grave crise económica e financeira com aflitivas repercussões sociais.
Em 1924 foi oficializada a Liga dos Combatentes da Grande Guerra, através da portaria 3888. Instituição de utilidade pública, estatutariamente, tinha por principal função “proteger e auxiliar, através de pensões e socorros”, todos os militares do Corpo Expedicionário Português e respetivas famílias. A partir de 1965 passou a designar-se apenas Liga dos Combatentes e a aceitar também a inscrição dos mobilizados para a Guerra Colonial. Este dia, 9 de Abril, é também considerado Dia do Combatente.
Já não existe nenhum deste tempo mas subsistem, sim, das guerras coloniais, que se iniciaram na madrugada do dia 4 de fevereiro de 1961. Estas só terminariam com o dia 25 de Abril de 1974, por via do derrube do regime ditatorial de Salazar e Marcelo Caetano. As primeiras grandes colunas militares portuguesas partiram para o norte de Angola, para dar resposta aos massacres da UPA, em 13 de maio de 1961. Seria a guerra de uma geração – guerra do ultramar ou guerra colonial, ou ainda guerra de libertação, como a intitulavam os movimentos africanos.
Mas quero referir-me ao que dá força ao título deste texto. Durante quase meio século, a G3 foi a arma dos soldados portugueses. Fez a Guerra Colonial e o 25 de Abril, marcou o último ciclo do império português. Tornou-se ícone, lenda e objeto de um culto difícil de explicar. Por ser uma arma distribuída por todos, foi como se, de G3 em riste, o povo tivesse entrado na História, como protagonista. Não isento de culpa, na guerra, nem de heroísmo, na libertação. Entretanto, a G3 já saiu de cena.
A espingarda automática de calibre 7,62 mm que equipou as Forças Armadas portuguesas, desde os princípios dos anos 60 até outubro de 2019, tornou-se de facto um ícone e uma lenda. Ficou, na realidade e na imaginação, ligada à Guerra Colonial, mas também à Revolução do 25 de Abril, às lutas do PREC, ao golpe do 25 de Novembro, ao roubo de armas de Beirolas, aos piquetes da Maioria Silenciosa, às conspirações do caso Camarate, às missões militares portuguesas no Kosovo e em Timor-Leste.
Em várias ocasiões, esteve dos dois lados da barricada. Aconteceu no 25 de Novembro de 1975, quando se defrontaram os esquerdistas de Otelo e os moderados de Eanes. Era a arma de Salgueiro Maia e das forças do regime. Marcou presença na Reforma Agrária, quando as forças do Comando Operacional do Continente, o Copcon, apoiaram a ocupação das terras, e, mais tarde, quando a GNR garantiu a devolução das terras aos antigos proprietários.
Nas colónias africanas, confrontou-se quase sempre com a Kalashnikov, sua grande rival, usada pelos independentistas. Mas também esteve nas mãos das Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor-Leste, as Falintil, na luta contra as forças indonésias de ocupação.
Segundo Pedro Marques de Sousa, tenente-coronel, professor de História na Academia Militar, a G3 acompanhou o último ciclo do império português. “Estava nos primeiros combates em Angola, e no contingente português de manutenção de paz em Timor, em 2000”. Agora, o seu desaparecimento fecha o ciclo para sempre.
Esta arma é o antepassado direto da G3. “Não é alemã, como geralmente se pensa. A origem da G3 é espanhola. Os espanhóis começaram a produzir a arma em 1956. Depois venderam a licença à Holanda, para produção em série.”
Quando as primeiras ações subversivas se iniciaram no Noroeste de Angola, o regime de Lisboa não estava preparado para a guerra que decidiu lançar nas colónias de África. Todo o treino das Forças Armadas portuguesas era feito nos moldes das duas guerras mundiais. Os primeiros contingentes que desembarcaram em Angola levaram armamento pesado, veículos obsoletos e treino convencional, como se fossem combater na guerra das trincheiras de 1914. Quando se percebeu que se tratava de um conflito de outra natureza, com caraterísticas de guerrilha e de guerra subversiva, foi preciso mudar tudo. E rapidamente. A guerra subversiva exigia equipamento leve, ágil e rápido, compatível com o que já estava a ser usado pelos movimentos de libertação nos três teatros de guerra. As primeiras forças portuguesas a chegar a África ainda levavam as velhas espingardas Mauser que equipavam, numa versão de 1937, as Forças Armadas. Os guerrilheiros que lutavam pela independência de Angola, Moçambique e Guiné, maioritariamente apoiados pela União Soviética, usavam espingardas automáticas AK47, conhecidas por Kalashnikov. Ou seja, os portugueses tinham armas da Segunda Guerra Mundial, enquanto os guerrilheiros já possuíam armamento típico da Guerra Fria.
A guerra da Argélia, que ainda decorria, foi o modelo para a guerra colonial portuguesa. Nas opções de armamento, prevaleceu a Alemanha, com a aquisição da licença para o fabrico de G3, que passou a fazer-se em Portugal na Fábrica de Braço de Prata, que viria também a exportar para vários países. Foram produzidas, entre 1962 e 1988, naquela unidade fabril da zona oriental de Lisboa, 442 mil espingardas G3, além de outro armamento e munições, como a metralhadora HK-21, também sob licença, ou a pistola metralhadora de 9 mm e o morteirete de 60 mm, ambos de marca original FBP (Fábrica de Braço de Prata). Fechou em 1991.
A introdução da G3 no Exército português implicou importantes alterações táticas, bem como de organização. “A espingarda automática é uma arma individual, é para todos. Antes, quase todas as armas exigiam uma operação coletiva”.
A velha Mauser tinha carregadores de cinco munições. “Podiam usar-se dois num minuto, numa cadência de dez tiros por minuto. A G3 tem carregadores de 20 balas e permite disparar 600 tiros por minuto. É uma revolução”. A G3 permitiria combater com grupos mais pequenos. “Uma secção, de 12 homens, comandada por um sargento, passa a ter um poder de fogo enorme”. A G3 transmite uma inebriante sensação de poder, mas também de dependência. De liberdade, até de heroísmo, mas, ao mesmo tempo, de insegurança. O medo de perder a arma e a alma.
Uma G3 em riste tinha exatamente o peso da lei e da boa consciência. E um preço: a responsabilidade individual. A G3 devolve ao soldado o protagonismo.
Na instrução que se dava aos soldados era-se particularmente exigente nas questões de segurança. Retirar o carregador antes de tirar a bala. Limpar a arma sempre sem as munições dentro. Culatra atrás e com a arma virada para cima. Dar um tiro para confirmar que não há bala na câmara, antes de tirar a cartucheira. No mato, nunca disparar de rajada, para não ficar sem munições, e atirar sempre ao alvo.
Adeus, G3. Se ao menos pudesses servir para combater o novo coronavírus!...

(In "O Combatente da Estrela", n.º 118, de março/2020)

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