Esta insólita vivência por que
estamos passando nossos dias só é semelhante, em parte, aos famigerados tempos
da ditadura no nosso País. Similar ao Estado Novo (paradoxalmente pleno de velhos
no pensamento e no espírito) no que concerne ao medo e ao isolamento. Os
receios constantes de poder ser dado um passo em falso, caindo-nos denúncias por
não sabermos dizer amém às “bênçãos” salazaristas; da cadeia como quem visita
um doente no hospital, ou vai ao dentista, do castigo à laia do Santo Ofício da
Inquisição, das infundadas acusações de quem, a troco de benesses, apontava com
um olhar virulento para o seu semelhante, que muitas vezes nem conhecia. Mas,
em lugar cimeiro, da tenaz tentativa de isolar o pensamento do cidadão. Só
poderia haver o pensamento único, sob a batuta do senhor todo poderoso desses
tempos tenebrosos. Mas o povo português tinha bem presente que “não há machado
que corte a raiz ao pensamento”.
Neste respirar de Abril, que já passou
mas se mantém sempre presente, pela primeira vez nublado por uma força estranha
aos humanos, a ânsia libertadora de “Vamos todos ficar bem” é ainda pesarosa
quando compreendemos as afirmações dos responsáveis pela saúde em Portugal, e dos
nossos governantes, de que “a pandemia continuará a fazer parte das nossas
vidas”.
Felizmente que Portugal conseguiu
antecipadamente ultrapassar a barreira da vil tristeza de governantes de feiras
e mercados, de gritarias sarcásticas, para líderes conhecedores das suas
obrigações para com os homens e as mulheres deste País – o Povo. Apraz
perguntar, com veemência, se ao leme dos destinos de Portugal, nesta estranha
fase pandémica estivessem os anteriores homens que mandaram a juventude às
urtigas para lá das fronteiras inexistentes (mas que temporariamente agora de
novo surgiram), como estaria a situação, no âmbito da prevenção e atuação na
saúde deste Portugal à beira-mar plantado?
Se nestes tempos anómalos
estivessem ainda à frente de Portugal, a “Gaspar de saias” assim intitulada pelo
homem que “revogou o irrevogável” em vez da incontestável competência de Mário
Centeno, como teriam sido decididas as normas de atuação para não se cair num
desastre financeiro antecipado?
Se agora nem tudo pode correr
bem, como se desejava, o que seria com Cavaco na presidência de Portugal em vez
dum homem que sabe tralha para acalmar, e decidir como se impõe, Marcelo de sua
graça, em vez daquele homem que uma vez disse que podíamos plenamente confiar
no BES, e, logo a seguir, ficou minado de vírus?
Confinamento compreendido, não só
por nós portugueses, como por quase todo o planeta. É que disto só se ouvira
falar nesta grande escalada de sofrimento e mortes, em páginas da história de
há mais de 100 anos, e similarmente há mais de 700 anos.
Na comparação com Caxias,
Peniche, Tarrafal, esse isolamento de quem nem sequer era assintomático à
rebeldia, bastava uma acusação à laia inquisitória, para ser confinado a um
espaço de sofrimento. Temos alguns casos na nossa Terra, sobejamente
conhecidos.
É por isso que, os 46 anos de
democracia que foram celebrados duma forma imperiosamente inédita, não tendo
ainda ultrapassado os 48 anos de ditadura, se revestiram dum significado forte,
ainda que muitos já tenham nascido em ambiente democrático e não tenham sentido
na carne ou no espírito os satânicos vírus salazaristas e de seus verdugos.
A seguir ao ditador, nem Caetano
na “Primavera Marcelista” se conseguiu impor, nem as “Conversas em Família”
iniciadas em 8 de janeiro de 1969, em 16 episódios, na televisão de um único
canal, a preto e branco, tiveram eficácia. Tão só, na altura, o programa poderá
ter revolucionado a televisão portuguesa, uma vez que foi com o mesmo que se
usou um teleponto pela primeira vez. O aparelho, que nem no Telejornal era
usado, foi a forma encontrada pela equipa de produção para que as falas e os
gestos do primeiro-ministro (então designado presidente do conselho de
ministros) parecessem mais naturais.
E não obstante uma abertura
cultural antes do 25 de Abril, pela mão do ministro Prof. Veiga Simão, com a
extensão do ensino superior no País, os principais homens do pensamento mantinham-se
lá longe, fora da Terra-Mãe.
Ainda os receios desta pandemia
não se dissiparam, e já outros estão no seu enfiamento: a crise económica, com o seu cortejo de
desempregados, falências e reduções de trabalho, não obstante o hercúleo
esforço governamental, é outra pandemia, pois leva ainda a doenças mentais,
associadas a reações depressivas, assim como o desemprego de longa duração, em
que, ao fim de algum tempo, a pessoa desmoraliza, sente-se inútil. A ociosidade
forçada acaba por se refletir negativamente na saúde mental. E, conforme um dia
referiu Clara Ferreira Alves, no Expresso: “Através do progresso tresloucado, a
sociedade acaba por criar o seu próprio ‘vírus social’ que vai sofrendo
mutações em ciclos progressivamente mais rápidos, impedindo que o nosso
organismo reaja, aumentando o número de inadaptados; ou seja, os que sofrem de
depressão e ansiedade”.
Vamos ter esperança para que tudo
possa vir a correr pelo melhor, e que desapareça bem depressa, sem retornar,
esta maldita pandemia, naquela ânsia libertadora – voltar ao novo natural, quer
dizer, podermos ser mais compreensivos uns com os outros, já que muito
aprendemos com este estado mórbido, e continuamos a aprender.
(In "Jornal fórum Covilhã", de 12-05-2020)
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