12 de maio de 2020

ENTRE OS MEDOS E A ÂNSIA LIBERTADORA


Esta insólita vivência por que estamos passando nossos dias só é semelhante, em parte, aos famigerados tempos da ditadura no nosso País. Similar ao Estado Novo (paradoxalmente pleno de velhos no pensamento e no espírito) no que concerne ao medo e ao isolamento. Os receios constantes de poder ser dado um passo em falso, caindo-nos denúncias por não sabermos dizer amém às “bênçãos” salazaristas; da cadeia como quem visita um doente no hospital, ou vai ao dentista, do castigo à laia do Santo Ofício da Inquisição, das infundadas acusações de quem, a troco de benesses, apontava com um olhar virulento para o seu semelhante, que muitas vezes nem conhecia. Mas, em lugar cimeiro, da tenaz tentativa de isolar o pensamento do cidadão. Só poderia haver o pensamento único, sob a batuta do senhor todo poderoso desses tempos tenebrosos. Mas o povo português tinha bem presente que “não há machado que corte a raiz ao pensamento”.
Neste respirar de Abril, que já passou mas se mantém sempre presente, pela primeira vez nublado por uma força estranha aos humanos, a ânsia libertadora de “Vamos todos ficar bem” é ainda pesarosa quando compreendemos as afirmações dos responsáveis pela saúde em Portugal, e dos nossos governantes, de que “a pandemia continuará a fazer parte das nossas vidas”.
Felizmente que Portugal conseguiu antecipadamente ultrapassar a barreira da vil tristeza de governantes de feiras e mercados, de gritarias sarcásticas, para líderes conhecedores das suas obrigações para com os homens e as mulheres deste País – o Povo. Apraz perguntar, com veemência, se ao leme dos destinos de Portugal, nesta estranha fase pandémica estivessem os anteriores homens que mandaram a juventude às urtigas para lá das fronteiras inexistentes (mas que temporariamente agora de novo surgiram), como estaria a situação, no âmbito da prevenção e atuação na saúde deste Portugal à beira-mar plantado?
Se nestes tempos anómalos estivessem ainda à frente de Portugal, a “Gaspar de saias” assim intitulada pelo homem que “revogou o irrevogável” em vez da incontestável competência de Mário Centeno, como teriam sido decididas as normas de atuação para não se cair num desastre financeiro antecipado?
Se agora nem tudo pode correr bem, como se desejava, o que seria com Cavaco na presidência de Portugal em vez dum homem que sabe tralha para acalmar, e decidir como se impõe, Marcelo de sua graça, em vez daquele homem que uma vez disse que podíamos plenamente confiar no BES, e, logo a seguir, ficou minado de vírus?
Confinamento compreendido, não só por nós portugueses, como por quase todo o planeta. É que disto só se ouvira falar nesta grande escalada de sofrimento e mortes, em páginas da história de há mais de 100 anos, e similarmente há mais de 700 anos.
Na comparação com Caxias, Peniche, Tarrafal, esse isolamento de quem nem sequer era assintomático à rebeldia, bastava uma acusação à laia inquisitória, para ser confinado a um espaço de sofrimento. Temos alguns casos na nossa Terra, sobejamente conhecidos.
É por isso que, os 46 anos de democracia que foram celebrados duma forma imperiosamente inédita, não tendo ainda ultrapassado os 48 anos de ditadura, se revestiram dum significado forte, ainda que muitos já tenham nascido em ambiente democrático e não tenham sentido na carne ou no espírito os satânicos vírus salazaristas e de seus verdugos.
A seguir ao ditador, nem Caetano na “Primavera Marcelista” se conseguiu impor, nem as “Conversas em Família” iniciadas em 8 de janeiro de 1969, em 16 episódios, na televisão de um único canal, a preto e branco, tiveram eficácia. Tão só, na altura, o programa poderá ter revolucionado a televisão portuguesa, uma vez que foi com o mesmo que se usou um teleponto pela primeira vez. O aparelho, que nem no Telejornal era usado, foi a forma encontrada pela equipa de produção para que as falas e os gestos do primeiro-ministro (então designado presidente do conselho de ministros) parecessem mais naturais.
E não obstante uma abertura cultural antes do 25 de Abril, pela mão do ministro Prof. Veiga Simão, com a extensão do ensino superior no País, os principais homens do pensamento mantinham-se lá longe, fora da Terra-Mãe.
Ainda os receios desta pandemia não se dissiparam, e já outros estão no seu enfiamento:  a crise económica, com o seu cortejo de desempregados, falências e reduções de trabalho, não obstante o hercúleo esforço governamental, é outra pandemia, pois leva ainda a doenças mentais, associadas a reações depressivas, assim como o desemprego de longa duração, em que, ao fim de algum tempo, a pessoa desmoraliza, sente-se inútil. A ociosidade forçada acaba por se refletir negativamente na saúde mental. E, conforme um dia referiu Clara Ferreira Alves, no Expresso: “Através do progresso tresloucado, a sociedade acaba por criar o seu próprio ‘vírus social’ que vai sofrendo mutações em ciclos progressivamente mais rápidos, impedindo que o nosso organismo reaja, aumentando o número de inadaptados; ou seja, os que sofrem de depressão e ansiedade”.
Vamos ter esperança para que tudo possa vir a correr pelo melhor, e que desapareça bem depressa, sem retornar, esta maldita pandemia, naquela ânsia libertadora – voltar ao novo natural, quer dizer, podermos ser mais compreensivos uns com os outros, já que muito aprendemos com este estado mórbido, e continuamos a aprender.


(In "Jornal fórum Covilhã", de  12-05-2020)

Sem comentários: