3 de novembro de 2021

A HISTÓRIA DO CASAL DE VELHINHOS SEQUESTRADOS PELA NEVE

 

Devagar, devagarinho, vamos caminhando por este outono fora, até que chegará o tal tempo de invernia, que poderá já não ser como noutros tempos, mas agora com as cautelas julgadas mais que necessárias neste tempo pandémico. Que não dá azos de abrandar.

Corria o mês de fevereiro do ano da graça de 1900, último ano do século XIX. Estávamos no alvor do surgimento das Conferências de São Vicente de Paulo também na Covilhã.  Para dar voz àqueles que mais necessitavam. Na Diocese da Guarda havia na cidade a única Conferência com o nome de S. Luís Gonzaga, fundada nove anos antes (01/12/1891) que lutava com grande dificuldade apesar da esmola superior a 400$00 com que o Prelado a contemplava. Tinha esta Conferência vários sacerdotes como seus membros, entre os quais o anterior bispo, D. Tomaz Gomes de Almeida. De qualquer modo, o bispo D. Manuel Vieira de Matos, também considerando indispensável a ação da Sociedade de S. Vicente de Paulo, ajudou a levantar a Conferência da Guarda que entrara em grande declínio.

Volvidos oito anos, é na Covilhã que começa a força impulsionadora vicentina – um pouco tardia é verdade, mas que com a sua vontade indómita viria a superar todas as da Diocese.

A primeira Conferência Vicentina na cidade dos lanifícios foi fundada na Igreja de Santa Maria Maior, sob a invocação de Nossa Senhora de Lourdes, em 12 de novembro de 1899. Foi eleito presidente o Dr. José Thomaz Mendes Megre Restier e entre os seus sócios ativos contavam-se o Dr. José Mendes Alçada de Paiva, Alfredo Baptista, Sebastião António da Costa Ratto, João da Costa Ratto, Manuel d’Almeida Cipriano, Camilo Ribeiro, Alexandre Espiga, José A. Thomaz Freire, Padre José da Costa Tavares, então prior da freguesia de Santa Maria, José Marques Braz Povo, a cujo zelo se devem a fundação de outras Conferências na Cidade, e Claudino Dias A. e Rosa, Francisco Petrucci e Francisco Fiadeiro.

A todos os seus títulos de benemerência sobreleva a fundação do Albergue dos Pobres em 1900 (hoje Lar de São José), sendo presidente o Dr. José Mendes Alçada de Paiva.

O Relatório das Conferências de S. Vicente de Paulo, da diocese do Porto, relativo a 1902, refere-se a essa Obra: “Contando pouco mais de dois anos de existência, esta bela obra atingiu um grau de prosperidade que decerto os seus beneméritos fundadores estavam longe de esperar e que raras instituições daquela natureza conseguem atingir nos mais dilatados prazos.

A ideia da instituição do Albergue para os pobres partiu de um dos nossos mais dignos confrades que em fevereiro de 1900 foi encontrar, num pobre casebre, sequestrados pela neve e morrendo de fome, dois desgraçados velhinhos octogenários, marido e mulher, a quem o formidável nevão do dia 1 prendera em casa, obstando a que pudessem ir mendigar o pão quotidiano.

Comunicada a ideia à Conferência, desde logo começaram a trabalhar os confrades com tanto zelo e tanta inteligência, angariando esmolas e donativos e fazendo propaganda aturada e eficaz, que, poucos dias volvidos, havia os meios necessários para a instalação.

Nessa cruzada foram auxiliados os confrades por uma comissão de senhoras composta por D. Maria da Anunciação Tavares, D. Ana Augusta Fonseca Ferreira e D. Clotilde Terenas, que, percorrendo a cidade e as povoações do Concelho, trouxeram abundante colheita para os pobrezinhos. Mais tarde, estas e outras senhoras, fundavam a Sociedade feminina de S. Vicente de Paulo, ereta em Santa Maria Maior da Covilhã em 16 de novembro de 1905, sendo a sua primitiva direção: D. Leopoldina Rato, presidente; D. Ana Ferreira, tesoureira; e D. Maria da Glória M. Ferreira, secretária; e assistente eclesiástico, presidente honorário, o Padre José da Costa Tavares. Esta Sociedade mereceu sempre as bênçãos dos desvalidos e o respeito e a admiração de todos os covilhanenses. No seu último relatório, referente ao ano findo, consigna que além de muitos socorros e subsídios que espalhou, promoveu a realização de 23 casamentos e de 14 batizados, distribuindo 349 peças de vestuário executadas na sua “Casa de Trabalho” de que continuou a dirigir e a proteger o “Patronato feminino”.

Estava fundado o Albergue, recebendo desde logo 14 pobres. Em dezembro do mesmo ano recolhia já 27.

Continuando a afluir os donativos, a Conferência foi alargando o quadro dos seus pobres, sendo já 32, em dezembro de 1902, os sustentados por esta instituição. Desde logo começou a Conferência a empenhar-se por entregar o Albergue às Irmãzinhas dos Pobres porque só elas poderiam dirigi-lo e desenvolvê-lo vantajosamente. Removidas todas as dificuldades, viu a Conferência coroados os seus esforços do melhor êxito, porque em 10 de junho de 1902 chegava à Covilhã um grupo de irmãzinhas que foram recebidas festivamente pela população covilhanense.

No dia aprazado para a sua chegada, sem convite especial da Conferência, eram as boas Irmãzinhas esperadas na estação por numerosas damas e cavalheiros, que lhes oferecendo uma carruagem, as acompanharam até ao edifício do Albergue. O Albergue esteve no princípio instalado numa casa em frente da Igreja de S. Martinho e em seguida na casa chamada dos doutores Grainhas, que então pertencia a esse sobrinho Padre Francisco de Sales B. Grainha, S.J. Foi par aqui que vieram as Irmãzinhas dos Pobres e permaneceram durante mais de dois anos até que puderam comprar aos herdeiros Marques de Paiva o belo edifício, donde as expulsaram em 1910 e onde atualmente se encontra ainda o Albergue. Ali foram aguardadas pelo povo que as aclamou. E entrando na capela, foram surpreendidas pela chuva de flores que caia dos coros.

Cantou-se uma missa solene e o Te-Deum. E em seguida apresentaram-lhes os velhinhos albergados, a quem encheram de carinhos e mimos.

Poucos dias depois da sua instalação, admitiam mais velhinhos, que em breves dias chegavam a 45 e depois quase duplicaram”.

No dia da sua chegada, foi-lhes entregue a quantia de 400$000 – todo o saldo que a Conferência então possuía – pelo seu tesoureiro, Alexandre P. Espiga.

Quando em 1908 se celebraram as Bodas de Diamante das Conferências de S. Vicente de Paulo, havia na Covilhã um Conselho Particular, que já abrangia na sua circunscrição três Conferências: a de Nª Sª de Lourdes, a da Imaculada Conceição, fundada em 19 de março de 1903 e a de S. Pedro inaugurada em 29 de junho de 1905. Em S. Martinho só em 1911 se fundou uma Conferência agregada em 22 de maio desse ano.

Estas Conferências, onde sempre viveu o espírito de S. Vicente de Paulo e a boa doutrina de Ozanam, ressentiram-se, contudo, nas perturbações religiosas e sociais que acarretou o movimento revolucionário de 1910, e em 4 de janeiro de 1920 foi resolvido reunir numa só as 4 Conferências da cidade. Organizou-se nessa ocasião a “Agremiação de Recreio e Beneficência” que no artº. 2.º dos seus estatutos preceitua: “que auxiliará obras de beneficência e caridade na medida da sua capacidade moral e intelectual, tendo sempre um especial carinho para as Conferências de S. Vicente de Paulo.” Nomeou-se então uma Comissão provisória; mas a vida da Conferência continuou débil e precária até maio de 1922, em que se elegeu uma nova Comissão, que procurou dar-lhe alento e desenvolvê-la, e principalmente angariar novos sócios – conseguindo esse desiderato a ponto de em fevereiro de 1924 se poder desdobrar de novo em quatro, correspondentes às freguesias da Cidade.

Foi durante esta gerência que se pensou em fundar um Pavilhão para tratamento da tuberculose anexo ao Hospital.

Se é verdade que cada Conferência tem a sua vida própria, é igualmente certo que se encontram ligadas pelo mesmo laço, o Conselho Particular, atualmente designado Conselho de Zona, que orienta e conjuga os seus esforços, e não podem ser indiferentes, como ramos do mesmo tronco, indicadas na mesma salutar aspiração.

(In "O Olhanense", de 01 de novembro 2021)

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