Nem sempre estamos inspirados
para um tema que possa ser da apetência dos estimados leitores. Também nesta
crónica não estou virado para as dificuldades que o mundo enfrenta face ao
ditador mundial dos tempos que correm, aquele que se identifica com o
famigerado Hitler, de igual modo odioso.
Assim, neste verão que há
pouco emergiu, trouxe-me, mais uma vez, falar da Serra da Estrela em cuja falda
é a minha vivência.
E é na montanha maior deste
Portugal Continental que eu me sinto bem, sentado à porta da casa da Serra,
contemplando o horizonte, do qual me vem a inspiração, na visualização dos
rebanhos e dos pastores, do cão da Serra da Estrela, que vamos avistando ou até
se aproxima nós.
Muito haverá que falar, para
os que querem ter ouvidos para ouvir e olhos para ver, a partir, se quiserem,
deste belíssimo recanto dos Hermínios, de in illo tempore.
E isto porque veio a propósito
a homenagem aos Pastores da Serra da Estrela, com a criação, na Torre, de um
novo espaço dedicado aos produtos da ovelha bordaleira. O ponto mais alto de
Portugal Continental – a Torre da Serra da Estrela – tem um novo espaço
dedicado aos pastores e ao produto do seu trabalho: a lã e o leite das ovelhas
Bordaleiras. Este projeto constitui uma forma de apoiar o trabalho dos pastores
da Serra da Estrela e assegurar a continuidade da profissão e da raça da ovelha
Bordaleira. Contribuiu-se assim para o desenvolvimento da economia local e para
a sustentabilidade social do território. De 275 mil ovelhas desta raça
existentes nos anos 80 do século XX, há atualmente pouco mais de 23 mil.
Mas também, no âmbito do
divino, no alto desta Montanha Maior, o paradoxo subsiste., com o prelado da
diocese a que o local pertence – a Diocese da Guarda – por via do Departamento
Diocesano da Pastoral Familiar a manifestar nas suas intenções, de, por um
lado, e bem, promover o encontro diocesano de famílias na Torre, o ponto mais
alto da Serra da Estrela, no dia 26 de junho, em sintonia com o X Encontro
Mundial das Famílias, a decorrer em Roma, começando com a concentração na zona
da Torre, seguindo-se um percurso pedonal, com apoio do Centro de Interpretação
da Serra da Estrela, seguiu-se a celebração da Eucaristia, na Capela de Nossa
Senhora do Ar (Torre), presidida pelo bispo diocesano, D. Manuel Felício.
Só que, tudo o que se tem
desenrolado ao longo dos últimos tempos, aliás dos momentos que vão ultimar a
vida deste prelado, face à idade, vão no encontro de ser o coveiro da Diocese
da Guarda, como muitos dos seus apaniguados, incluindo sacerdotes e leigos
ligados às organizações católicas, e não só, assim o consideram.
Estão nesta cartada não só o
mais antigo órgão da comunicação social da Beira Baixa, centenário, como
instituições criadas carinhosamente e que foram lugar de muitos eventos locais,
regionais e alguns nacionais. Estão
assim na peugada de um homem que não soube conduzir a barca que lhe foi
entregue. Não vou tecer mais comentários, aguardando tão só o desenvolvimento
dos acontecimentos, na revolta que possivelmente vai existir em muitos dos que,
por inércia, não se querem agora manifestar.
Mas a majestosa Serra da Estrela trouxe-me à
memória a beleza das suas enormes rochas, aqueles penedos que são uma aventura
a sua subida, o medo de os poder subir, e, mormente, na descida. Já aconteceu
comigo quando ainda existia alguma juventude mas que jamais conseguirei sonhar
numa dessas aventuras nos tempos que correm. Jurei ser a última vez na minha
vida.
Vejamos a descrição dos
companheiros da Expedição Científica à Serra da Estrela, naquele longínquo ano
de 1881, uma centena de homens, durante 15 dias.
Deixo alguns resquícios dessa
expedição, sem descurar a subida ao Cântaro Magro.
“Depois, nas ‘Interpretações locativas’, falou-se na
origem possível de ‘Monte Hermínio’, sendo
que “uma tradição que chegou aos nossos dias designa a Serra da Estrela o
Hermínio Maior; a de Marvão, o Hermínio Menor’”.
“E também o Malhão Grande ou Malhão da Estrela, nome dado ao ponto culminante da serra,
designação que os pastores da localidade empregam. E cujo local se passou a
chamar Torre, depois de colocada uma
pirâmide, a qual foi mandada construir em 1806 pelo príncipe regente D. João.
As aventuras dos expedicionários: ‘Se de dia e a distância ninguém observa os
Cântaros pela primeira vez sem sentir vertigens e o coração comprimido,
imagine-se o que nós sentiríamos às dez da noite aos vermo-nos presos no cume
do Cântaro Gordo, rochedo de 413 metros de altura sobre a ribeira da Candeeira,
eriçado de fragões escuros, no meio de profundos covões formado por outros
fraguedos e despenhadeiros igualmente sinistros e medonhos! (…) Aqui, onde a
natureza é horrivelmente majestosa e grande, ninguém deixará de se sentir
infinitamente pequeno. (…) Chegado a este ponto fomos descendo,
recomendando-nos o pastor que não olhássemos para os lados por causa da
vertigem do abismo e que descêssemos de costas, não deslocando nunca uma mão
sem ter a outra firme e segura ao rochedo. Estivemos parados algum tempo sem
poder prosseguir nem retroceder. Estávamos suspensos entre a vida e a morte!
Causava horror olhar para os lados ou para a frente. Fitámos então a vista nas
estrelas para não sentirmos a vertigem do abismo cavado a nossos pés. – Estão
salvos, disse-nos o pastor, porque desceram de noite e não viram o precipício’”.
No livro A Lã e a Neve, de Ferreira de Castro, foi narrada uma
célebre descrição da Serra da Estrela, do início do capítulo III da Primeira
Parte, a saber:
“A serra corre de Nordeste a
Sudoeste, como imensurável raiz de outra cordilheira que rompesse longe do seu
tronco. Belo monstro de xisto e de granito, com terra a encher-lhe os ocos do
esqueleto, ondula sempre: contorce-se aqui, alteia-se acolá, abaixa-se mais
adiante, para se altear de novo, num bote de serpente que quisesse morder o
Sol. Ao distender-se, forma altivos promontórios, dos quais se pode interrogar
o infinito, e logo se ramifica que nem centopeia de pesadelo, criando, entre as
suas pernas, trágicos despenhadeiros e tortuosas ravinas, onde nascem rios e as
águas rumorejam eternamente.
Vista do alto, sugere um fabuloso réptil, anfíbio e descomunal, cortado
em dois o grande vale que teria surgido após haver secado o lago que aquele
habitava. Examinada de banda, veem-se-lhe inúmeras patas estendidas e, a
trechos, o lombo serrilhado. Esse gume com muitas mossas é, porém, ilusório.
Contemplado de perto, o dorso da serra, como o dos cetáceos, mostra largas
superfícies, ora chatas, ora abauladas, umas limpas de acidentes, outras
cercadas de fragões, que, com estranhos perfis e enigmáticas atitudes, parecem
defender as terras solitárias. O ser humano tem volume mais mesquinho do que
uma velha giesta, do que uma velha urze, nesses planaltos que se alargam entre
altas vagas de terreno, entre montanhas que cresceram no cimo da montanha. E uma luz de mistério, ao clarear as chapadas
e pendores, enche de temíveis sombras os silentes penedais, os rochedos
majestosos, todos esses gigantescos vultos de granito que povoam a serra, como
seus feros senhores.”
João de Jesus Nunes
(In “Jornal Fórum Covilhã”, de 13-07-2022 e “O Olhanense”
(artigo
completo) de 15-07-2022)
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