15 de fevereiro de 2023

DISCORDAR OU UMA CONTRIBUIÇÃO PARA REVOLUCIONAR

 


Não podemos agradar a Deus e ao Diabo, o que pressupõe sempre a inviabilidade de nos apresentarmos com duas caras para a solução dum problema. Não é fácil afastar a tentação, por mais que exista honestidade e as boas intenções com que o cidadão seja revestido, se não houver uma força intrínseca que deite por terra todas as instigações do momento. O provérbio evidencia que “Quem parte e reparte e não fica com a melhor parte, ou é tolo ou não tem arte”. Sempre houve, e persistem, os que caminham pela ponte, numa velada atenção tendente a ver para qual dos lados devem saltar. Jamais pudemos assistir a um manancial de gente vestida de pele de cordeiro, mas com dentes afiados de lobo, quando surge a oportunidade do assalto, como nos tempos que correm. Obviamente que, felizmente, ainda existem os que querem perfilar-se honestamente no rol dos das boas intenções, com o mérito proveniente do seu talento. Mas... são mais as vezes os que ficam para a retaguarda favorecendo-se os que trouxeram empacotada a nobre cunha, ou então a anuência ao questionário para a integração partidária dum qualquer jotinha, tendo em vista a inserção num lugar de boy ou girl.

Em jovem pertenci a um movimento operário católico sob o lema “Ver, Julgar e Agir” mas também onde nos manifestávamos: “Nós não queremos a revolução, nós somos a própria revolução!”. Viviam-se então os tempos da ditadura salazarista e marcelista com o que se escrevia a passar pela Censura Prévia que, numa desejada primavera marcelista que não chegou a sê-lo, a transformou em Exame Prévio. Somente areia para os olhos.  Com a democracia institucionalizada pelo 25 de Abril de 1974 viemos a ter a liberdade plena e não coartada como dantes, mas hoje, com muitos abusos que nada deveriam ter a ver com a liberdade ganha, ficamos dececionados ao ver no seio das instituições, das autarquias, e dos governos, como da própria Igreja Católica, situações atentatórias da dignidade entre todos – ricos ou pobres. Os casos são sobejamente conhecidos entre governantes, bispos e padres a encobrirem-se e a mentirem contra o que o Mestre ensinou. Mas disto não vou falar.

No entanto não pude deixar de recordar tempos por que também passei, do medo e da repressão, em que o levantar a voz seria o suficiente para a condenação. Muito sobre isto está escrito nos meus livros e várias publicações. Neste contexto, quero agora vir a lume sobre um Homem, no reflexo da exemplaridade de outros que se encontram no manto do anonimato, que dá pelo nome de Padre José da Felicidade Alves. E isto quando a laicização da sociedade procurada pelos mais lídimos liberais e republicanos limitou a interferência da igreja católica na sociedade civil, mas reforçou a militância dos crentes. O Padre Felicidade (como era conhecido também nos meios antifascistas não católicos) foi um cidadão de enorme coragem, tendo sido uma das figuras centrais da oposição dos católicos à ditadura, sobretudo a partir de meados da década de 60. Nas suas homilias abordava temas incómodos ao regime do Estado Novo e às hierarquias eclesiásticas, tais como a guerra colonial, a perseguição política e problemas sociais. Envolveu-se militantemente nos combates contra a ditadura e a renovação da Igreja Católica, o que determinou a sua prisão e julgamento. Foi afastado das funções de pároco (o que atualmente não acontece com a conduta de alguns bispos em relação a alguns padres acusados de pedofilia, homossexualidade, e outras situações) pelo então cardeal-patriarca de Lisboa, Cardeal Cerejeira, e, mais tarde, tomou conhecimento da sua excomunhão.

Natural de Caldas da Rainha, nasceu em 1925, tendo sido ordenado sacerdote em 1948, destacando-se desde logo pela sua inteligência. Em 1956 foi nomeado pároco em Santa Maria de Belém, em Lisboa, onde se evidenciou pelo conteúdo das suas homilias. Foi no trabalho da paróquia que se foi dando conta de que o país real era muito diferente do que pensava e, a partir de 1967, as suas intervenções começaram a causar incómodo ao regime e à Igreja Católica.

Solidário com o grupo de católicos mais progressistas, o percurso de Felicidade Alves ficou definitivamente marcado após a comunicação que proferiu no Conselho Paroquial de Belém, em 19 de abril de 1968, na presença de muitas dezenas de pessoas.

Defendendo uma profunda renovação da Igreja e das suas estruturas, as ideias de Felicidade Alves desagradaram ao cardeal Cerejeira. Em consequência, foi-lhe movido um longo processo que determinou, em novembro de 1968, o afastamento das suas funções de pároco em Santa Maria de Belém, e, mais tarde, a suspensão das suas funções sacerdotais, terminando, em 1970, com a sua excomunhão.

Após o afastamento da paróquia de Belém, Felicidade Alves tornou-se o grande impulsionador, em conjunto com Nuno Teotónio Pereira e o padre Abílio Tavares Cardoso, da publicação dos Cadernos GEDOC, abordando criticamente questões ligadas à hierarquia católica e à guerra colonial. A publicação foi condenada pelo cardeal Cerejeira e considerada ilegal pela PIDE, sendo instaurado um processo aos seus responsáveis, de que resultará, em 19 de maio de 1970, a prisão de Felicidade Alves por “atividades contrárias à segurança do Estado”. Tendo sido julgado, foi absolvido.

À posição tomada perante a sua prisão, várias foram as pessoas que se apressaram a recolher assinaturas pela sua libertação, pelo país fora, e, na Covilhã, assinalam-se 24 assinaturas, entre as quais as do Prof. José Corceiro Mendes, Padre Fernando Brito dos Santos, Carlos Manuel Alçada Batista, Isilda Maria Monteiro Pinto Sousa Dória, Albino Boaventura Pereira, Dr. Manuel Antunes Ferreira, Jerónimo dos Santos, Augusto Lopes Teixeira, Engº. Luís Filipe Mesquita Nunes, Maria Humberta Pinto Roque, Maria da Ascensão Dias Rebelo, Engº. Alberto Alçada Rosa, José Geraldes Correia, e o Padre Dr. José Almeida Geraldes.

Em 10 de junho de 1994, Felicidade Alves foi agraciado com a Comenda da Ordem da Liberdade pelo então Presidente da República, Mário Soares. Veio a falecer no dia 14 de dezembro de 1998, com 73 anos.

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

 

(In “Jornal Fórum Covilhã”, de 15-02-2023)

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