Não podemos agradar a Deus e
ao Diabo, o que pressupõe sempre a inviabilidade de nos apresentarmos com duas
caras para a solução dum problema. Não é fácil afastar a tentação, por mais que
exista honestidade e as boas intenções com que o cidadão seja revestido, se não
houver uma força intrínseca que deite por terra todas as instigações do
momento. O provérbio evidencia que “Quem parte e reparte e não fica com a
melhor parte, ou é tolo ou não tem arte”. Sempre houve, e persistem, os que
caminham pela ponte, numa velada atenção tendente a ver para qual dos lados
devem saltar. Jamais pudemos assistir a um manancial de gente vestida de pele
de cordeiro, mas com dentes afiados de lobo, quando surge a oportunidade do
assalto, como nos tempos que correm. Obviamente que, felizmente, ainda existem
os que querem perfilar-se honestamente no rol dos das boas intenções, com o
mérito proveniente do seu talento. Mas... são mais as vezes os que ficam para a
retaguarda favorecendo-se os que trouxeram empacotada a nobre cunha, ou então a anuência ao
questionário para a integração partidária dum qualquer jotinha, tendo em
vista a inserção num lugar de boy ou girl.
Em jovem pertenci a um
movimento operário católico sob o lema “Ver,
Julgar e Agir” mas também onde nos manifestávamos: “Nós não queremos a
revolução, nós somos a própria revolução!”. Viviam-se então os tempos da
ditadura salazarista e marcelista com o que se escrevia a passar pela Censura
Prévia que, numa desejada primavera marcelista que não chegou a sê-lo, a
transformou em Exame Prévio. Somente areia para os olhos. Com a democracia institucionalizada
pelo 25 de Abril de 1974 viemos a ter a liberdade plena e não coartada como
dantes, mas hoje, com muitos abusos que nada deveriam ter a ver com a liberdade
ganha, ficamos dececionados ao ver no seio das instituições, das autarquias, e
dos governos, como da própria Igreja Católica, situações atentatórias da
dignidade entre todos – ricos ou pobres. Os casos são sobejamente conhecidos
entre governantes, bispos e padres a encobrirem-se e a mentirem contra o que o
Mestre ensinou. Mas disto não vou falar.
No entanto não pude deixar de
recordar tempos por que também passei, do medo e da repressão, em que o
levantar a voz seria o suficiente para a condenação. Muito sobre isto está
escrito nos meus livros e várias publicações. Neste contexto, quero agora vir a
lume sobre um Homem, no reflexo da exemplaridade de outros que se encontram no
manto do anonimato, que dá pelo nome de Padre José da Felicidade Alves. E isto
quando a laicização da sociedade procurada pelos mais lídimos liberais e
republicanos limitou a interferência da igreja católica na sociedade civil, mas
reforçou a militância dos crentes. O Padre Felicidade (como era conhecido
também nos meios antifascistas não católicos) foi um cidadão de enorme coragem,
tendo sido uma das figuras centrais da oposição dos católicos à ditadura,
sobretudo a partir de meados da década de 60. Nas suas homilias abordava temas
incómodos ao regime do Estado Novo e às hierarquias eclesiásticas, tais como a
guerra colonial, a perseguição política e problemas sociais. Envolveu-se
militantemente nos combates contra a ditadura e a renovação da Igreja Católica,
o que determinou a sua prisão e julgamento. Foi afastado das funções de pároco
(o que atualmente não acontece com a conduta de alguns bispos em relação a
alguns padres acusados de pedofilia, homossexualidade, e outras situações) pelo
então cardeal-patriarca de Lisboa, Cardeal Cerejeira, e, mais tarde, tomou
conhecimento da sua excomunhão.
Natural de Caldas da Rainha,
nasceu em 1925, tendo sido ordenado sacerdote em 1948, destacando-se desde logo
pela sua inteligência. Em 1956 foi nomeado pároco em Santa Maria de Belém, em
Lisboa, onde se evidenciou pelo conteúdo das suas homilias. Foi no trabalho da
paróquia que se foi dando conta de que o país real era muito diferente do que
pensava e, a partir de 1967, as suas intervenções começaram a causar incómodo
ao regime e à Igreja Católica.
Solidário com o grupo de
católicos mais progressistas, o percurso de Felicidade Alves ficou
definitivamente marcado após a comunicação que proferiu no Conselho Paroquial
de Belém, em 19 de abril de 1968, na presença de muitas dezenas de pessoas.
Defendendo uma profunda
renovação da Igreja e das suas estruturas, as ideias de Felicidade Alves
desagradaram ao cardeal Cerejeira. Em consequência, foi-lhe movido um longo
processo que determinou, em novembro de 1968, o afastamento das suas funções de
pároco em Santa Maria de Belém, e, mais tarde, a suspensão das suas funções
sacerdotais, terminando, em 1970, com a sua excomunhão.
Após o afastamento da paróquia
de Belém, Felicidade Alves tornou-se o grande impulsionador, em conjunto com
Nuno Teotónio Pereira e o padre Abílio Tavares Cardoso, da publicação dos
Cadernos GEDOC, abordando criticamente questões ligadas à hierarquia católica e
à guerra colonial. A publicação foi condenada pelo cardeal Cerejeira e
considerada ilegal pela PIDE, sendo instaurado um processo aos seus
responsáveis, de que resultará, em 19 de maio de 1970, a prisão de Felicidade
Alves por “atividades contrárias à segurança do Estado”. Tendo sido julgado,
foi absolvido.
À posição tomada perante a sua
prisão, várias foram as pessoas que se apressaram a recolher assinaturas pela
sua libertação, pelo país fora, e, na Covilhã, assinalam-se 24 assinaturas,
entre as quais as do Prof. José Corceiro Mendes, Padre Fernando Brito dos
Santos, Carlos Manuel Alçada Batista, Isilda Maria Monteiro Pinto Sousa Dória,
Albino Boaventura Pereira, Dr. Manuel Antunes Ferreira, Jerónimo dos Santos,
Augusto Lopes Teixeira, Engº. Luís Filipe Mesquita Nunes, Maria Humberta Pinto
Roque, Maria da Ascensão Dias Rebelo, Engº. Alberto Alçada Rosa, José Geraldes
Correia, e o Padre Dr. José Almeida Geraldes.
Em 10 de junho de 1994, Felicidade Alves foi agraciado com a Comenda da
Ordem da Liberdade pelo então Presidente da República, Mário Soares. Veio a
falecer no dia 14 de dezembro de 1998, com 73 anos.
João de Jesus Nunes
(In “Jornal Fórum Covilhã”, de 15-02-2023)
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