Entre o espaço que medeia escrever esta crónica e a data da sua
publicação, várias posições desportivas estão a rumar com agitação dos ventos
que agora se tornam mais a favor, ou contrários, sob o manto diáfano do destino
traçado.
É com tristeza que vejo o Sporting Clube Olhanense (SCO) alijado da
embarcação em que andou navegando, quando a sua história no futebol português
estaria mais em consonância a viajar num paquete, menos propício a afundar-se. E
isto quando acaba de comemorar o seu 111º Aniversário. Esperemos que depois desta
tormenta venha a bonança, passando a brilhar a luz do farol determinante como
guia para a rota certa mais condizente com os méritos desta prestigiosa
coletividade algarvia.
Mas os contextos em que o futebol flutua nos tempos que correm permitem a
abundância de incautas decisões, na avidez de colocar as embarcações a navegar
independentemente de reconhecidas fragilidades existentes, e daí os resultados
que surgem, já quase sem estupefação, no mapa futebolístico, onde clubes de
grande prestígio hoje os vemos em lugares ventosos.
Também o Sporting Clube da Covilhã (SCC), depois de conseguir durante
vários anos navegar em águas tranquilas, embora com alguns ventos e marés na
sua rota, se vê arredado para uma posição que não corresponde aos pergaminhos
do clube serrano, considerado, tal como o Olhanense, um dos históricos do
futebol português. As comemorações do seu centenário, a ocorrer este ano com
início em junho, estarão refletidas para muitos serranos, de raiz ou de
coração, de tristes ou ledas madrugadas, de sonhos desfeitos ou na continuidade
do barco na mesma rota em que navegava. Esperemos que também aqui a luz do
farol possa brilhar.
O título da crónica vem no seguimento das pedras basilares que se
evidenciaram na constituição das equipas, e, tantas vezes, como na bíblia,
“aquela que os construtores rejeitaram se tornou a pedra angular”.
Há muito que, serrano, tenho vindo a escrever neste prestigiado
quinzenário algarvio, de cuja região, como Olhão, o Algarve veio a ser um
viveiro daquelas pedras que vierem dar à “costa” da Covilhã, porta principal
para a Serra da Estrela, com destino aos Leões da Serra.
Dos valorosos, como foram Fernando Cabrita e outros que jogaram no SCO,
destaco o algarvio oriundo do Lusitano de VRSA, Domiciano Barrocal Gomes Cavém
que veio juntar-se a seu irmão Amílcar Cavém, envergando a camisola do SCC,
respirando os ares da Serra da Estrela. Aqui jogou nas épocas 1953/54 e 1954/55.
Logo se evidenciou nestas duas épocas, onde participou em 25 jogos na primeira
e marcou 9 golos, logo seguido de Simonyi; e igual número de jogos na segunda e
última época, onde liderou como melhor marcador do SCC, com 14 golos.
Participou ainda em duas eliminatórias da Taça de Portugal, onde marcou 1 golo.
No Sporting da Covilhã, onde se
evidenciou, logo teve a cobiça de outros clubes, nomeadamente o Vitória de
Setúbal, onde esteve quase com um pé dentro quando surgiu o Benfica a
desembolsar 225 contos, sendo 175 contos para o Vitória de Setúbal e 50 contos
para o jogador, levando-o para as suas fileiras na época 1955/56, onde
permaneceu 14 épocas. No Benfica efetuou 48 jogos nas provas da UEFA, duas
vitórias na Taça dos Campeões Europeus (1961 e 1962), 9 vezes campeão nacional
e 4 vezes vencedor da Taça de Portugal. Foi ainda 18 vezes internacional tendo marcado
5 golos.
Mas focando-nos ainda na sua
vinda para o SCC, foi o guarda-redes suplente dos Leões da Serra, Isaurindo,
também ele algarvio, que foi incumbido pela Direção do clube serrano de ir
“estabelecer as démarches preliminares junto do Domiciano Cavém” para a sua
vinda para o SCC. Segundo Isaurindo, “trata-se de um jovem de pouco mais de 20
anos, com qualidades magníficas para o futebol, a quem a Crítica tem tecido
elogiosas referências. Possui ótimo remate e evidencia-se particularmente no
jogo alto devido à sua facilidade de elevação e cabeceamento. Há acentuado
interesse por parte da família do jovem atleta, pelo que as démarches devem ser
coroadas de êxito e o SCC terá alcançado os serviços de mais um jogador de
futuro, tal como aconteceu com Amílcar Cavém e Hélder, ambos vindos também do
Lusitano algarvio”
O que é certo é que, como atrás
foi descrito, Domiciano Cavém acabou por ir representar muito brilhantemente o
Benfica.
Em sua substituição, o clube
lisboeta cedeu ao SCC o seu jogador Fernando Pires, meu vizinho, felizmente
ainda vivo, mas que o treinador Otto Glória não queria deixar sair, onde
ganhava 800$00, passando a receber no clube serrano 2000$00 e mais 30 contos de
luvas, embora tudo pago em prestações...
Domiciano Cavém participou numa
homenagem promovida pela APAE Campos Melo – Associação dos Antigos Professores,
Alunos e Empregados da Escola Campos Melo, onde eu era dirigente e diligenciei
este evento, no dia 28/09/1991. Compareceram mais de trinta “Velhas Glórias do
SCC”, todas dos tempos em que militaram na Primeira Divisão Nacional. Quase
todos já não se encontram no número dos vivos, entre os quais Domiciano Cavém,
que faleceu aos 72 anos, em Alcobaça, onde se havia radicado. O Benfica
prestou-lhe uma homenagem póstuma, assim como a Federação Portuguesa de
Futebol, mas, segundo parece constar, não lhe deu qualquer oportunidade de
ajuda, já que o Domiciano, no final da sua carreira, ainda tentou ser treinador
mas sem qualquer sucesso. Certamente o clube lisboeta não se tivesse recordado
do episódio da sua barba que deixou crescer, em 1962, barba que só cortaria se
o Benfica ganhasse ao Real Madrid e, consequentemente, seria bicampeão europeu,
o que veio a suceder. Foi então que Domiciano Cavem foi cortar a barba e
recolheu os pêlos todos e guardou-os... É
que havia candidatos à compra da barba! Um sócio do Benfica telefonou à
comissão central das obras do estádio pedindo para ficar com a barba de Cavém,
e houve mesmo alguém que alvitrou a possibilidade de se fazer um leilão com a
barba do jogador, revertendo a receita para o estádio... (In “Record”).
Domiciano Cavém, não obstante a
apatia do clube que durante mais de uma década representou e onde fortemente
brilhou, segundo parece constar, terá vivido com dificuldades económicas, mas
desconheço se as terá tido mais acentuadas conforme me fizeram chegar por via
das redes sociais.
Muito mais haveria a dizer sobre
memórias serranas e algarvias, que perduram e ultrapassam várias gerações, com
uma ou outra pedra a salientar-se do rochedo da nostalgia.
João de Jesus Nunes
(In “O Olhanense”, de 01-05-2023)
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