18 de março de 2024

JOÃO DE DEUS (1830-1896)

 


Dou hoje por findos alguns textos sobre a vida de vários dos nossos principais escritores, baseando-me na História da Literatura Portuguesa – Século XIX – XX.

Escrevo esta crónica no dia seguinte à realização das eleições legislativas para a composição da Assembleia da República. Chegará a altura em que o novo governo saído destes eleições fará o seu juramento da praxe, na sua tomada de posse: “juro, por minha honra, que cumprirei com lealdade as funções que me são confiadas”. Também eu o fiz, noutras ocasiões, mas por escrito, que era mais uma declaração que um juramento, na qualidade de funcionário duma Câmara Municipal, mas em tempos de ditadura (anos 60 do século XX), se é que queria emprego ou então levava um pontapé no rabo. Deduz-se que os investidos, sejam eles o cantoneiro, o diretor-geral ou o ministro são pessoas de bem. Todos optam por servir-se do Estado.  Ao longo da estrada, quando o pó começa a tirar a graxa aos sapatos, por vezes surgem os imponderáveis. Esperemos que os exemplos que pesaram agora nas decisões desta votação, contrariamente ao esperado, possam avivar a memória do que é honrar a Pátria e ser um exemplo clarificador da inexistência de contradições, oportunismos e mal-entendidos.  

Mas vamos então falar de João de Deus. Nasceu em S. Bartolomeu de Messines, no Algarve. Primeiros estudos na sua terra natal, em 1849, para depois se matricular na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Por ali andou dez anos a tirar um curso que normalmente se tira em cinco. Formou-se em 1849, ficando em Coimbra mais três anos. Foi nessa altura que se relacionou com moços que depressa viriam a ser glórias das letras nacionais: Antero, Eça de Queirós, Teófilo Braga, Alberto Sampaio. De 1862 a 1864 entregou-se ao jornalismo em Beja. Passados quatro anos, foi eleito deputado pelo círculo de Silves. Entretanto, foi-se tornando popularíssimo e a sua poesia era considerada como um soluçar de alma da Nação. Em 8 de março de 1895, a mocidade académica de Lisboa envolveu-o numa carinhosa e significativa homenagem, que teve foros de consagração nacional. Morreu em 11 de janeiro de 1896.

João de Deus deixou-nos estas duas obras: Cartilha Maternal (1876), e Campo de Flores (1893).

João de Deus escreveu esta obrazinha – “Cartilha Maternal” – para as crianças aprenderam a ler. As Cortes declararam-na método nacional em 1888. Foi o livrinho acarinhado por muitas pessoas, entre as quais D. Carolina Micaelis; mas também alvo de ataques verrinosos, que, em prosa e verso, o autor pretendeu neutralizar.

Com a ajuda de Teófilo Braga, compilou João de Deus todas as suas poesias, em parte já publicadas, e reuniu-as juntamente com uma peçazinha de teatro numa obra a que deu o romântico título de Campo de Flores.

João de Deus só cantou o que sentia na alma como autenticamente seu. É natural que ficasse impressionado com leituras da Bíblia, de Dante e de Petrarca, de Camões e de Tomás António Gonzaga, até mesmo de Vítor Hugo. Mas estes poetas não exerceram no seu estro outro influxo que não fosse o tornar conscientes as preocupações do seu mundo íntimo, talvez pouco variado e pouco complicado, mas precioso e delicadíssimo: o amor, a religião, a afetividade e a concórdia.

Confessa o poeta que tinha pelo tema do amor uma inclinação quase doentia, que o amor era para ele uma espécie de ideia fixa. E ninguém como ele, depois de Camões, fez vibrar o encantamento do amor em melodias tão suaves e tão espirituais.

Todavia, o amor em João de Deus não é uma pura abstração. Quase todos os seus poemas eróticos se exprimem na segunda pessoa. Quer dizer que são diálogos com supostas amadas. Mas o poeta ignora o amor sensual; não desfere tons de carnalidade como José Anastácio da Cunha e Garrett. A mulher que canta é a mulher-anjo; e o amor de que ela é objeto é o amor-adoração.

A mulher surge na poesia de João de Deus retratada sobretudo através das qualidades morais: “graça aérea, pureza, ingenuidade, timidez, candura, quanto há de frágil e delicado”

João de Deus não se notabilizou pelo arrojo das imagens, como Herculano e Soares de Passos, por exemplo. A sua natural simplicidade satisfez-se com figuras vulgarmente poéticas. As metáforas que usa, se bem que delicadas, são muito repetidas. Carrega-as, porém, de expressividade, uma vez enfiando-as em ladainha, outras vezes colocando-lhes ainda por cima atributos.

Repare-se na enumeração anafórica das metáforas com que nos dá a ideia da fugacidade da vida – dia, ai, sombra, nuvem, sonho, fumo, flor, sopro, estrela cadente, pena caída:

A vida é o dia de hoje, /a vida é ai que mal soa, /a vida é sombra que foge, /

a vida é nuvem que voa;/a vida é sonho tão leve/que se desfaz como a neve/

e como o fumo se esvai:/a vida dura um momento, /mais leve que o pensamento, /

a vida leva-o o vento, /a vida é folha que cai! / A vida é flor na corrente, /

a vida é sopro suave, /a vida é estrela cadente, /voa mais leve que a ave. /

Nuvem que o vento nos ares, / onda que o vento nos mares/uma após outra lançou:

a vida, pena caída/ da asa de ave ferida, / de vale em vale impelida,

        a vida o vento a levou!  (A Vida)   

Se bem notámos, o dia é de hoje, o ai mal soa, a sombra foge, a nuvem voa, etc., o que torna a ideia de brevidade, inerente às imagens, de uma expressividade ímpar.

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In “O Olhanense”, de 15-03-2024)

 

 

 


13 de março de 2024

A EXCELÊNCIA DA AMIZADE NA MARCA DA PERENIDADE

 

Muitos dos meus sonhos se realizaram, no caminhar dos anos que vão remanescendo da minha vida. Alguns pularam e avançaram no tempo. Dou graças a Deus por isso. Com assustadora frequência, vou tendo notícias de antigos colegas e amigos, com quem partilhámos convívios, estudos, trabalhos e amizades, que vão partindo. Por isso, dos ventos e marés que também aconteceram nos nossos caminhos, não me interessa recordar as partes intempestivas, que pretendo sejam esgotadas no véu do esquecimento.

Foi no êxtase da minha vida profissional, em Lisboa, ano da graça de 2003, já com três décadas de profissão do mesmo âmbito, num tempo em que estávamos a passar com os meus companheiros de jornada as “passas do Algarve”, numa multinacional dum grupo suíço que já foi à vida, hiperbolicamente falando, e uns quantos oportunistas de má memória, que encontrámos uma Figura portuguesa desconhecida, mas, paradoxalmente, de relevo mundial, simpática, que nos vinha liderar sob a batuta duma multinacional americana.

Como os meus Colegas não avançavam expondo as preocupações do momento, sou eu próprio que assumo a responsabilidade de me dirigir a essa Figura incontornável, e de a ter interpelado sobre “as novas” para a novel empresa que se apresentava revestida de enorme fulgor. Encontrávamo-nos no salão nobre do hotel em Lisboa, de pé, apinhado de gentes da nossa gente – centenas de antigos Colegas do País, ávidos de saber algo do destino que nos cabia duma atividade dinâmica e altamente concorrencial. Daí que, o grande líder da multinacional que passaria a ser o CEO e Presidente da Liberty Seguros em Portugal – Dr. José António de Sousa, sentiu, na atitude por mim tomada, que vínhamos dum ceticismo latente da empresa anterior, e que, por isso, as promessas que faria naquele momento seriam de enorme responsabilidade. Passada a ocasião e formulada a promessa para a data anunciada, logo de vários pontos do País, nessa mesmíssima data, alguns Colegas me telefonaram para saberem se o cumprimento da palavra da dita pessoa, ainda   quase um desconhecido, se confirmara, visitando-me na Covilhã, e, desta forma, poderem ainda “tirar nabos da púcara”. Na confirmação daquele escrupuloso cumprimento, foi um volte-face nos descontentes. Considerou o Dr. José António de Sousa que aquele 13 de junho de 2003, na sua visita às instalações da Covilhã, então sob a minha responsabilidade, seria traduzido num ato histórico para a Seguradora em Portugal.

Ficou o compromisso verbal de todos os anos ser celebrado entre nós, e o grupo de trabalho direto, um almoço comemorativo neste dia e mês.

Então várias ações se desenvolveram em prol da Covilhã e da Região, sem esquecer o patrocínio das três empresas tecnológicas em 2008, na criação do programa CRIAR 08.

Conhecedor da minha veia na escrita, não deixou de colaborar no patrocínio de todas as minhas obras, com saliência para a História dos Bombeiros da Covilhã e História do Sporting da Covilhã, entre outras. Mas o seu desafio neste domínio foi solicitar-me para escrever a História dos Seguros em Portugal, a qual já consta de muitos autores consagrados. Foi um aturado trabalho, incutindo-lhe um cunho inédito, para além de lhe inserir a história desde a sua génese no mundo a.C e d.C., saindo um ensaio sob o título “O Documento Antigo – Uma outra forma de ver os Seguros”. Pouco depois, ainda viria a lume “Da Montanha ao Vale”.

Mas, afinal, quem é José António de Sousa, com quem convivo mais um grupo de entusiastas da profissão, geralmente ainda no ativo, no periódico “Almoço dos Amigos”?

Da Revista Executiva, de 3 de janeiro de 2023, onde colabora, extraio alguns dados onde se vê a parte humana e íntegra deste Homem fantástico.

O gestor que liderou várias multinacionais na área dos seguros homenageia as mulheres que mais marcaram (e marcam) a sua existência. “Fizeram de mim o que sou. Um homem agradecido, de bem com a vida, e profundamente feliz”, afirma.

José António de Sousa acumula 42 anos de experiência de gestão de topo e de liderança (Geschäftsführer, Country Manager, Regional Manager, CEO, Presidente) em 3 multinacionais seguradoras e resseguradoras (Gerling-Konzern, Zurich Financial Services, Liberty Mutual) de relevo mundial (Fortune 100 companies). Depois de 15 anos como presidente e CEO da Liberty Seguros em Portugal, hoje é consultor independente de empresas e colunista da Executiva.

“Falar sobre as mulheres da minha vida é falar sobre a essência própria profunda, e a coluna vertebral de sustentação da minha vida, desde a sua ‘fundação’ até aos dias de hoje. Sem elas não estaria a escrever estas linhas em homenagem às mulheres que marcaram e fizeram aquilo que, para o bem e para o mal, sou e represento neste mundo. Desde a minha mãe Fernanda, falecida aos 97 anos, de uma vida feliz, bem vivida, em que repartiu amor e sorrisos por onde passava. Depois a Conceição, a mulher que me enche as medidas há 47 anos, pela qual continuo apaixonado como no primeiro dia da nossa jornada em comum, a companheira de uma vida, que me apoiou e acompanhou com carinho, amor e dedicação enquanto eu fiz carreira internacional no setor segurador para três multinacionais de relevo e muito exigente. A Conceição deu-me duas filhas maravilhosas, a Cristina e a Inês. Impossível fazer distinção entre qualquer uma delas em termos de amor irrestrito, e de paixão. Agora que a vida corporativa é já uma memória remota, e em que procuro partilhar conhecimento e ser útil à sociedade de forma interventiva e construtiva, como Consultor Independente, Mentor e Colunista, a chegada da minha neta Sofia em outubro de 2022, filha da minha filha Cristina, que teve aos 40 anos de idade, abanou de forma telúrica os meus alicerces de vida atual. Era a peça que faltava para completar o puzzle da minha vida.

As mulheres da minha vida determinaram (e continuam a determinar) a minha vida, e fizeram de mim o que sou. Um homem agradecido, de bem com a vida, e profundamente feliz”

Nos tempos que correm, que belíssima lição de vida deste Homem que é um génio, com o qual partilho o orgulho de sermos indelevelmente amigos e termos contribuído com coisas boas para a sociedade.

Contamos, certamente, encontrarmo-nos no próximo convívio de amigos, no reforço dessa amizade que há muito está no nosso âmago.

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In “Jornal Fórum Covilhã”, de 13-03-2024)


8 de março de 2024

HOJE VAMOS FALAR DE JÚLIO DINIS

 


Neste terceiro mês do ano 2024, que agora se inicia, após o términus do ano bissexto, quis dar continuidade aos traços bibliográficos de alguns escritores portugueses de nomeada.

Assim, trago hoje para o Jornal O Olhanense:

JÚLIO DINIS(1839 – 1871)

Joaquim Guilherme Gomes Coelho era o seu nome. Júlio Dinis é pseudónimo. Passou quase toda a sua vida no Porto donde era natural. Ao mesmo tempo que fazia um curso brilhante na Escola Médica dessa cidade, entretinha-se a compor poesias e contos, que ia publicando n’A Grinalda e n’O Jornal do Comércio.

A mãe e dois dos seus irmãos morreram tuberculosos. Era um jovem médico. Sentiu também em si os sintomas desta terrível doença, e decidiu ir passar uma temporada de cura a Ovar, terra do seu pai, também médico. Foi aí que, pela primeira vez, Júlio Dinis pôde examinar o viver simples da gente provinciana. Concebeu então o plano d’As Pupilas do Senhor Reitor.

Voltou ao Porto, em 1865, publicou, entretanto, As Pupilas do Senhor Reitor (1867), Uma Família Inglesa (1868) e A Morgadinha dos Canaviais (1868).

Em 1869 fez uma cura de ares na Madeira. Experimentando algumas melhoras, retomou o trabalho na Escola Médica, mas em outubro do mesmo ano viu-se constrangido a regressar ao Funchal. Começou então a escrever Os Fidalgos da Casa Mourisca (1871), que não chegaria a ver em público. No ano anterior havia escrito Serões da Província (1870).

Cada vez pior, resolveu abandonar a ilha em maio de 1871 e veio para a Cidade da Virgem, onde faleceu, em 12 de setembro.

Os romances do infortunado médico supõem a política nacional assente numa certa estabilidade. Consideram arrumadas de vez na sombra de um passado longínquo as insurreições de descontentes ou de bandos armados e as revoluções contínuas das décadas de 1820 e 1840. É que, de facto, nos anos que vão de 1858 a 1870, dois partidos se revezavam pacificamente no poder: o regenerador e o progressista.

Nos romances de Júlio Dinis está patente ainda outra face da transformação económica de Portugal. Com a extinção dos direitos senhoriais e morgadios por Mouzinho da Silveira, muitos começaram a decair, enquanto os seus antigos feitores e caseiros, mercê de um trabalho duro e honrado, lhes iam comprando as terras. Foi o que aconteceu com Tomé da Póvoa, d’Os Fidalgos da Casa Mourisca.

Este nivelamento de fortunas deu automaticamente princípio a um nivelamento de classes, resultante de uniões matrimoniais entre fidalgos decadentes ou formados e plebeias ricas e bondosas e vice-versa. A Morgadinha casa com o Augusto, professor primário; Jorge, fidalgo da Casa Mourisca, une-se a Berta, filha de um antigo trabalhador do solar; a humilde pastora transforma-se em mulher do médico; a filha do guarda-livros desposa o filho do patrão.

Não se olvida também de assinalar a ascensão dos filhos do povo a lugares destacados na média burguesia. Lavradores ricos, como o José das Dornas d’As Pupilas do Senhor Reitor, enchem-se de esfusiante vaidade, quando um filho volta à aldeia formado em Medicina. Tomé da Póvoa tem legítimo orgulho da filha educada na cidade.

E no meio desta sociedade rural, em contínuo progresso, destacam-se o padre, o médico, o professor, individualidades que Júlio Dinis considera imprescindíveis pelo menos nos jantares das boas famílias da terra.

Pela Lei da Saúde, de 26 de novembro de 1845, foram proibidos em Portugal os enterramentos nas igrejas. O povo, porém, fez a princípio obstrução à aplicação da lei, visto não achar respeitosa a inumação dos mortos nos cemitérios.

N’A Morgadinha dos Canaviais, a propósito do enterro da pequena Ermelinda, podemos ver como os ânimos estavam exaltados por causa da quebra dessa tradição secular. Não fora a intervenção do velho e simpático cura e o cemitério ter-se-ia transformado num campo de batalha, após a invasão enfurecida dos frequentadores da taberna do Canada.

Sob outro aspeto muito diferente, é cómica e elucidativa uma conversa que o José das Dornas travou com o tasqueiro João da Esquina, a propósito da tese apresentada por Daniel na Universidade. Ali encontramos alusões ao transformismo e a outras “opiniões e teorias filosóficas mais ou menos em moda” no tempo do autor d’As Pupilas do Senhor Reitor. O diálogo entre os dois aldeões é de uma comicidade rara; mas com ele conseguiu Júlio Dinis dar ao romance um verniz de atualidade científica.

Se excetuarmos Uma Família Inglesa, que tem por ambiente a cidade do Porto, Júlio Dinis situou a ação das suas obras no meio rural de Entre Douro e Minho.

Porque melhor do que todos soube explorar o campo e os seus feitiços. Descreve com primor a paisagem e nela põe a vibrar toda a vida da aldeia, quer a vida de trabalho, quer a vida em família.

Mas há nisto um pouco de idealização. Júlio Dinis quis demonstrar que o campo é um manancial de saúde para o corpo e para o espírito.

Voltarei ao assunto com outros escritores.

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In “O Olhanense”, de 01-03-2024)