Dou hoje por findos alguns textos sobre a vida
de vários dos nossos principais escritores, baseando-me na História da
Literatura Portuguesa – Século XIX – XX.
Escrevo esta crónica no dia seguinte à
realização das eleições legislativas para a composição da Assembleia da
República. Chegará a altura em que o novo governo saído destes eleições fará o
seu juramento da praxe, na sua tomada de posse: “juro, por minha honra, que
cumprirei com lealdade as funções que me são confiadas”. Também eu o fiz,
noutras ocasiões, mas por escrito, que era mais uma declaração que um juramento,
na qualidade de funcionário duma Câmara Municipal, mas em tempos de ditadura
(anos 60 do século XX), se é que queria emprego ou então levava um pontapé no
rabo. Deduz-se que os investidos, sejam eles o cantoneiro, o diretor-geral ou o
ministro são pessoas de bem. Todos optam por servir-se do Estado. Ao longo da estrada, quando o pó começa a
tirar a graxa aos sapatos, por vezes surgem os imponderáveis. Esperemos que os
exemplos que pesaram agora nas decisões desta votação, contrariamente ao
esperado, possam avivar a memória do que é honrar a Pátria e ser um exemplo
clarificador da inexistência de contradições, oportunismos e mal-entendidos.
Mas vamos então falar de João de Deus. Nasceu
em S. Bartolomeu de Messines,
no Algarve. Primeiros estudos na sua terra natal, em 1849, para depois se
matricular na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Por ali andou
dez anos a tirar um curso que normalmente se tira em cinco. Formou-se em 1849,
ficando em Coimbra mais três anos. Foi nessa altura que se relacionou com moços
que depressa viriam a ser glórias das letras nacionais: Antero, Eça de Queirós,
Teófilo Braga, Alberto Sampaio. De 1862 a 1864 entregou-se ao jornalismo em
Beja. Passados quatro anos, foi eleito deputado pelo círculo de Silves.
Entretanto, foi-se tornando popularíssimo e a sua poesia era considerada como
um soluçar de alma da Nação. Em 8 de março de 1895, a mocidade académica de
Lisboa envolveu-o numa carinhosa e significativa homenagem, que teve foros de
consagração nacional. Morreu em 11 de janeiro de 1896.
João de Deus deixou-nos estas duas obras: Cartilha Maternal (1876), e Campo de Flores (1893).
João de Deus escreveu esta obrazinha – “Cartilha Maternal” – para as
crianças aprenderam a ler. As Cortes declararam-na método nacional em 1888. Foi
o livrinho acarinhado por muitas pessoas, entre as quais D. Carolina Micaelis;
mas também alvo de ataques verrinosos, que, em prosa e verso, o autor pretendeu
neutralizar.
Com a ajuda de Teófilo Braga, compilou João de Deus todas as suas
poesias, em parte já publicadas, e reuniu-as juntamente com uma peçazinha de
teatro numa obra a que deu o romântico título de Campo de Flores.
João de Deus só cantou o que
sentia na alma como autenticamente seu. É natural que ficasse impressionado com
leituras da Bíblia, de Dante e de Petrarca, de Camões e de Tomás António
Gonzaga, até mesmo de Vítor Hugo. Mas estes poetas não exerceram no seu estro
outro influxo que não fosse o tornar conscientes as preocupações do seu mundo
íntimo, talvez pouco variado e pouco complicado, mas precioso e delicadíssimo: o
amor, a religião, a afetividade e a concórdia.
Confessa o poeta que tinha pelo
tema do amor uma inclinação quase doentia, que o amor era para ele uma espécie
de ideia fixa. E ninguém como ele, depois de Camões, fez vibrar o encantamento
do amor em melodias tão suaves e tão espirituais.
Todavia, o amor em João de Deus
não é uma pura abstração. Quase todos os seus poemas eróticos se exprimem na
segunda pessoa. Quer dizer que são diálogos com supostas amadas. Mas o poeta
ignora o amor sensual; não desfere tons de carnalidade como José Anastácio da
Cunha e Garrett. A mulher que canta é a mulher-anjo; e o amor de que ela
é objeto é o amor-adoração.
A mulher
surge na poesia de João de Deus retratada sobretudo através das qualidades
morais: “graça aérea, pureza, ingenuidade, timidez, candura, quanto há de
frágil e delicado”
João de Deus não se notabilizou
pelo arrojo das imagens, como Herculano e Soares de Passos, por exemplo. A sua
natural simplicidade satisfez-se com figuras vulgarmente poéticas. As metáforas
que usa, se bem que delicadas, são muito repetidas. Carrega-as, porém, de
expressividade, uma vez enfiando-as em ladainha, outras vezes colocando-lhes
ainda por cima atributos.
Repare-se na enumeração anafórica das metáforas com que nos
dá a ideia da fugacidade da vida – dia, ai, sombra, nuvem, sonho, fumo,
flor, sopro, estrela cadente, pena caída:
A vida é o dia de hoje, /a vida é ai
que mal soa, /a vida é sombra que foge, /
a vida é nuvem que voa;/a vida é
sonho tão leve/que se desfaz como a neve/
e como o fumo se esvai:/a vida dura
um momento, /mais leve que o pensamento, /
a vida leva-o o vento, /a vida é
folha que cai! / A vida é flor na corrente, /
a vida é sopro suave, /a vida é
estrela cadente, /voa mais leve que a ave. /
Nuvem que o vento nos ares, / onda
que o vento nos mares/uma após outra lançou:
a vida, pena caída/ da asa de ave ferida,
/ de vale em vale impelida,
a vida o vento a levou! (A Vida)
Se bem
notámos, o dia é de hoje, o ai mal soa, a sombra foge, a
nuvem voa, etc., o que torna a ideia de brevidade, inerente às imagens,
de uma expressividade ímpar.
João de
Jesus Nunes
(In “O Olhanense”, de 15-03-2024)
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