Dando seguimento a uma minha publicação de 01-02-2023, num quinzenário
algarvio, achei por bem, neste período dum estio quentíssimo, voltar a reunir memórias
bíblicas do que escreveu Andrea Tornielli sobre a Vida de Jesus, com a concordância
do Papa Francisco.
Estávamos então em agosto do ano 28 d.C. Os seus discípulos, uma dezena,
procuravam estar com Ele quando saía, quando encontrava as pessoas, quando pregava.
Ninguém era ainda capaz de dizer quem fosse verdadeiramente, de onde Lhe vinha
tanta força. Jesus, que olhava para eles com um olhar cheio de amor, de
compaixão, de amizade, naquele dia percebeu que chegara finalmente o momento de
dizer mais, de anunciar o Reino de Deus. A todos, não apenas aos Seus. Por
isso, depois de chamar os doze e de ficar algum tempo com eles, decidiu falar
às multidões que O esperavam.
Era de manhã e o sol brilhava já alto, iluminando com reflexos brilhantes
as águas, naquele dia calmíssimas, do mar da Galileia. Um dia de verão, mas sem
calor intenso.
Toda a natureza ao seu redor parecia predisposta a acolher aquilo que Ele
estava para dizer. Por trás, o “monte”, uma colina verdejante, do cimo do qual
começara a descer uma brisa que teria ajudado a que as Suas palavras chegassem
aos que estavam mais longe. Diante dele uma impressionante vastidão de pessoas,
vindas não apenas de Cafarnaum e de outras cidades galileias, mas também de
Jerusalém, de Sídon, de Tiro.
Estavam acampados procurando repousar à sombra de algum arbusto um pouco
mais alto. Alguns estavam vestidos apenas com farrapos, outros pareciam em
melhores condições. Mas o rosto de cada um exprimia mais do que as túnicas, os
trapos, os alforges. Em cada um deles havia uma pergunta, uma angústia
reprimida, uma dúvida, uma pena, um desejo, uma preocupação, uma ferida. Nenhum
deles se podia definir saciado ou em paz. Eram estas multidões que conseguiam
sempre provocar a compaixão de Jesus, uma compaixão visceral, divina e humana
ao mesmo tempo.
Depois de observar por longo tempo a multidão, fez sinal a todos para se
sentarem de modo a ouvirem melhor. Foi então que começou a gritar aquela
palavra, repetindo-a muitas vezes: “Bem-aventurados! Bem-aventurados! Bem-aventurados!”
Um silêncio irreal cobria a colina, desde as margens do lago até ao cume.
Mesmo os soluços e o choro dos mais pequenos se tinham calado. Do lado direito
do planalto, à sombra de uma oliveira, estava uma mulher que fora repudiada
pelo marido quando ficara grávida dele. Chama-se Rebeca. Era ainda muito
bonita, não obstante a vida de privações a que estava constrangida. Mantinha o
olhar baixo pela vergonha, não tinha coragem de o levantar em direção a Jesus,
nem sequer ao longe como se temesse cruzar o d’Ele. O seu filho, Yehoshua,
antes que ela conseguisse retê-lo, subira a correr para se aproximar do
Nazareno. Queria ouvi-Lo melhor. Enquanto o Mestre começava a falar, ele
sentara-se quase ao lado dos seus pés. Não chegara a tocar-lhe apenas porque
Pedro o agarrara. Yehoshua tinha seis anos, dois olhos vivos e caracóis castanhos
empastados de areia e suor. No pequeno ficaram impressas apenas umas poucas
palavras de Jesus. “Bem-aventurados os que choram porque serão consolados”. “Os
que choram…” como sua mãe, ela que não tinha de que viver e passava os dias à
procura de qualquer coisa para comer em troca de um qualquer serviço humilde,
envergonhando-se da sua condição de repudiada. O pequeno levantou-se
bruscamente e, antes que Pedro conseguisse detê-lo, precipitou-se para ao pé da
mãe. Jesus seguiu-o pelo canto do olho. Sim, falara também para ele, para
aquela criança, também para ela, por aquela mãe…
“Mãe, imma…” O pequeno aproximara-se dela para lhe dizer: “És bem-aventurada
também tu, porque choras… Foi Ele que disse! Disse que serás consolada!”
As lágrimas tornaram-se alegria, a pobreza riqueza. O Reino era prometido
aos perdedores, aos mansos, aos misericordiosos, aos esfomeados, aos que tinham
o coração ferido e sangrante, aos rejeitados, aos perseguidos, aos descartados,
aos não apresentáveis.
“Não há nada de verdadeiramente errado em mim”, pensou Rebeca. “Não sou
maldita…”, repetia, procurando reter as palavras de Jesus que eram uma só com o
seu olhar misericordioso. Só contemplando aquele olhar é que as palavras assumiam
o seu significado libertador e revolucionário. É verdade, as bem-aventuranças
prometiam algo para o futuro. Mas a consolação já podia experimentar-se no ser
olhada por Jesus. Rebeca ganhou finalmente a coragem e sentindo-se amada e
compreendida como nunca o fora até àquele momento na sua atormentada vida,
levantou os olhos para contemplar o Mestre que falava. Falava também para ela,
mesmo para ela.
Jesus retomou a palavra, convidava todos os que estavam a ouvi-l’O a ser sal
da terra e luz do mundo. E depois disse aquilo para que viera.
A Rebeca, abraçada ao seu pequeno Yehoshua, daquelas palavras
chegaram-lhe apenas fragmentos. Mas também desta vez percebeu que estava a
falar com ela e para ela, que falava dela, mulher e mãe repudiada sem ter
culpa.
João de Jesus Nunes
(In “Jornal Fórum
Covilhã”, de 18-09-2024)