18 de setembro de 2024

O SERMÃO DA MONTANHA E REBECA

 



Dando seguimento a uma minha publicação de 01-02-2023, num quinzenário algarvio, achei por bem, neste período dum estio quentíssimo, voltar a reunir memórias bíblicas do que escreveu Andrea Tornielli sobre a Vida de Jesus, com a concordância do Papa Francisco.

Estávamos então em agosto do ano 28 d.C. Os seus discípulos, uma dezena, procuravam estar com Ele quando saía, quando encontrava as pessoas, quando pregava. Ninguém era ainda capaz de dizer quem fosse verdadeiramente, de onde Lhe vinha tanta força. Jesus, que olhava para eles com um olhar cheio de amor, de compaixão, de amizade, naquele dia percebeu que chegara finalmente o momento de dizer mais, de anunciar o Reino de Deus. A todos, não apenas aos Seus. Por isso, depois de chamar os doze e de ficar algum tempo com eles, decidiu falar às multidões que O esperavam.

Era de manhã e o sol brilhava já alto, iluminando com reflexos brilhantes as águas, naquele dia calmíssimas, do mar da Galileia. Um dia de verão, mas sem calor intenso.

Toda a natureza ao seu redor parecia predisposta a acolher aquilo que Ele estava para dizer. Por trás, o “monte”, uma colina verdejante, do cimo do qual começara a descer uma brisa que teria ajudado a que as Suas palavras chegassem aos que estavam mais longe. Diante dele uma impressionante vastidão de pessoas, vindas não apenas de Cafarnaum e de outras cidades galileias, mas também de Jerusalém, de Sídon, de Tiro.

Estavam acampados procurando repousar à sombra de algum arbusto um pouco mais alto. Alguns estavam vestidos apenas com farrapos, outros pareciam em melhores condições. Mas o rosto de cada um exprimia mais do que as túnicas, os trapos, os alforges. Em cada um deles havia uma pergunta, uma angústia reprimida, uma dúvida, uma pena, um desejo, uma preocupação, uma ferida. Nenhum deles se podia definir saciado ou em paz. Eram estas multidões que conseguiam sempre provocar a compaixão de Jesus, uma compaixão visceral, divina e humana ao mesmo tempo.

Depois de observar por longo tempo a multidão, fez sinal a todos para se sentarem de modo a ouvirem melhor. Foi então que começou a gritar aquela palavra, repetindo-a muitas vezes: “Bem-aventurados! Bem-aventurados! Bem-aventurados!”

Um silêncio irreal cobria a colina, desde as margens do lago até ao cume. Mesmo os soluços e o choro dos mais pequenos se tinham calado. Do lado direito do planalto, à sombra de uma oliveira, estava uma mulher que fora repudiada pelo marido quando ficara grávida dele. Chama-se Rebeca. Era ainda muito bonita, não obstante a vida de privações a que estava constrangida. Mantinha o olhar baixo pela vergonha, não tinha coragem de o levantar em direção a Jesus, nem sequer ao longe como se temesse cruzar o d’Ele. O seu filho, Yehoshua, antes que ela conseguisse retê-lo, subira a correr para se aproximar do Nazareno. Queria ouvi-Lo melhor. Enquanto o Mestre começava a falar, ele sentara-se quase ao lado dos seus pés. Não chegara a tocar-lhe apenas porque Pedro o agarrara. Yehoshua tinha seis anos, dois olhos vivos e caracóis castanhos empastados de areia e suor. No pequeno ficaram impressas apenas umas poucas palavras de Jesus. “Bem-aventurados os que choram porque serão consolados”. “Os que choram…” como sua mãe, ela que não tinha de que viver e passava os dias à procura de qualquer coisa para comer em troca de um qualquer serviço humilde, envergonhando-se da sua condição de repudiada. O pequeno levantou-se bruscamente e, antes que Pedro conseguisse detê-lo, precipitou-se para ao pé da mãe. Jesus seguiu-o pelo canto do olho. Sim, falara também para ele, para aquela criança, também para ela, por aquela mãe…

“Mãe, imma…” O pequeno aproximara-se dela para lhe dizer: “És bem-aventurada também tu, porque choras… Foi Ele que disse! Disse que serás consolada!”

As lágrimas tornaram-se alegria, a pobreza riqueza. O Reino era prometido aos perdedores, aos mansos, aos misericordiosos, aos esfomeados, aos que tinham o coração ferido e sangrante, aos rejeitados, aos perseguidos, aos descartados, aos não apresentáveis.

“Não há nada de verdadeiramente errado em mim”, pensou Rebeca. “Não sou maldita…”, repetia, procurando reter as palavras de Jesus que eram uma só com o seu olhar misericordioso. Só contemplando aquele olhar é que as palavras assumiam o seu significado libertador e revolucionário. É verdade, as bem-aventuranças prometiam algo para o futuro. Mas a consolação já podia experimentar-se no ser olhada por Jesus. Rebeca ganhou finalmente a coragem e sentindo-se amada e compreendida como nunca o fora até àquele momento na sua atormentada vida, levantou os olhos para contemplar o Mestre que falava. Falava também para ela, mesmo para ela.

Jesus retomou a palavra, convidava todos os que estavam a ouvi-l’O a ser sal da terra e luz do mundo. E depois disse aquilo para que viera.

A Rebeca, abraçada ao seu pequeno Yehoshua, daquelas palavras chegaram-lhe apenas fragmentos. Mas também desta vez percebeu que estava a falar com ela e para ela, que falava dela, mulher e mãe repudiada sem ter culpa.

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In “Jornal Fórum Covilhã”, de 18-09-2024)

 

PARADOXALMENTE

 


Por razões que se prendem com uma conversa de amigos que se manifestaram interessados em trazer à baila um artigo que publiquei num semanário covilhanense, cuja publicação remonta a 27-02-2004, ou seja, há vinte anos, então sob o título “O Paradoxo”, vou reportar-me a esse texto, uma vez que os interessados são conhecedores das personagens no mesmo inseridas e das facetas que envolveram a situação da emigração dos anos 60 do século XX.

Naquela altura, meados dos anos 60, vivíamos numa pobreza e falta de liberdade a todos os títulos devastadora, onde nem sequer se pensava no desenvolvimento do ensino, perspetivando algumas boas almas remar contra a maré na criação do ensino superior para além de Lisboa, Porto, Coimbra e Évora. Não se conheciam nem estavam para tão rápido a implantação das novas tecnologias e sistemas digitais, que se desconheciam no país, e que só, a pouco e pouco foram surgindo, muito lá para a frente.

Faz-me muita confusão e até estranho que na Beira Baixa, distrito de Castelo Branco, só agora tenha chegado, finalmente, o ensino secundário, no concelho de Vila Velha de Ródão, que era o único deste distrito em que não havia esta oferta (JF de 08-08-2024).

O resultado de dois estudos recentes da empresa de cibersegurança NordVPN mostra como as pessoas utilizam os smartphones em dois dos espaços mais privados. Os dados revelaram que uma maioria significativa (83%) leva os dispositivos inteligentes para a cama, 65% usam os smartphones na casa de banho. Estas informações ilustram como os telemóveis se tornaram indispensáveis em muitos contextos das nossas rotinas diárias. Embora estas pessoas realcem o papel significativo que os smartphones passaram a desempenhar no dia a dia, mesmo em ambientes privados, há muitas pessoas que ainda não estão sensibilizadas para os hábitos de segurança online.

Já num outro meu artigo, inserido noutro semanário covilhanense, em 09-01-2018, sob o título “O Paradoxo de Portugal em 2017” referia que “o ano que findou mostrou-nos duas facetas bem distintas na sua rotação dos 365 dias. E entre o copo meio cheio e o copo meio vazio não podemos deixar de nos firmar na realidade dos acontecimentos surgidos, uns, excessivamente otimistas, outros, justificadamente pessimistas”. O ano de 2017 foi o ano em que a economia cresceu mais do que o privado, o desemprego continuou a baixar e os juros da dívida caíram a pique. Portugal conseguiu dar um pontapé nas agências de rating e saiu do lixo. Foi ainda o ano em que Portugal foi eleito como o melhor destino turístico do mundo. Ainda neste ano António Guterres subiu ao mais alto duma organização mundial, como secretário-geral das Nações Unidas, onde ainda se mantém e Mário Centeno, hoje Governador do Banco de Portugal, havia sido eleito para presidente do Eurogrupo.

No contraste sentimos a amargura dos famigerados incêndios em Pedrógão Grande, que ceifou muitos cidadãos e destruiu imenso património principalmente florestal.

Mas vamos ao assunto a que no início faço referência para o contexto do que me propus escrever.

Os imigrantes, há vinte anos, já eram 5% da população portuguesa, tendo atingido 500 mil no final do ano 2003, com supremacia para os brasileiros.

Por todas as cidades e aldeias do nosso país se instalaram, e muitos vieram a ser acolhidos, cidadãos de diferentes nacionalidades, num cosmopolitismo e multiculturalismo jamais visto até finais da década de sessenta do século XX. Deixámos de estranhar os trajes e modos de vida dos muçulmanos, dos indianos, africanos, e outros, por essas ruas, becos e travessas fora, o que não acontecia há 60 anos em que um homem de cor geralmente só se via integrado numa equipa de futebol.

Hoje, felizmente, são milhares e milhares de homens e mulheres, geralmente fugindo das guerras e da fome, que encontram no nosso país aquele paraíso com que sonharam, contribuindo, desta forma, para que o défice de demografia não seja mais elevado, se ocupem nos trabalhos de subsistência, que, em muitos casos, os portugueses rejeitam, sendo, inclusive, os maiores contribuidores, com os descontos nos seus salários, para a sustentabilidade do sistema da Segurança Social.

Portanto, o que se passa atualmente, e há já uns anos atrás, é exatamente paradoxal ao que aconteceu nos finais da década de 50 e início da de 60 do século XX, onde um forte índice de emigração surgiu, preferencialmente para França, Alemanha, Suíça e Luxemburgo.

Nas Câmaras Municipais era o andar num rodopio diário, para os que pretendiam sair do país legalizados, ao contrário dos que partiam de assalto, muitas vezes em condições infra-humanas, na esperança de encontrar o eldorado, ultrapassando assim dificuldades e sacrifícios.         

O concelho da Covilhã também não ficou incólume a essa avalanche de gente a contribuir para a desertificação das suas terras, mas, por outro lado, a avolumar a remessa dos emigrantes que caíam muito bem nos cofres do Estado Novo.  

Este formigueiro humano vinha principalmente das freguesias rurais, a norte e a sul do Concelho: Minas da Panasqueira, S. Jorge da Beira, Casegas, Sobral de S. Miguel, Unhais da Serra, Tortosendo, Paul, Ourondo, como também de Vale Formoso, Orjais, Teixoso e Aldeia do Carvalho.         

As funcionárias da Câmara Municipal da Covilhã, e um funcionário, naquela época, batiam incessantemente as teclas das máquinas de escrever, tratando da documentação dos que pretendiam emigrar, os quais algumas vezes faziam fila pelo corredor do município, ao tempo dos presidentes da Câmara, Dr. Baltazar e Eng.º Vicente Borges Terenas. Cá fora, havia a recompensa, dos que pretendiam emigrar, para as incansáveis funcionárias, pelo menos algumas…, geralmente com produtos das suas terras, onde não faltavam alguns animeis de capoeira. Os queijos e os presuntos também compunham alguns cabazes, contribuíam para que pudessem ver o adiantamento e informação, sobre a sua documentação, na frente, bem depressa, que o país das patacas ou a terra prometida estava à espera.

 Essas recompensas davam ânimo e um certo dinamismo às senhoras funcionárias administrativas do município, encarregadas da emigração, enquanto o chefe da contabilidade, apesar da escolaridade obrigatória, conhecido influencer da edilidade, na sua popularidade, passava parte do tempo, numa salinha ao lado dos gabinetes do Presidente da Câmara e do Chefe da Secretaria, com os empreiteiros que participavam em concursos de obras municipais, principalmente quando havia Sessões de Câmara.

O Terceiro Oficial da edilidade que fora guarda-redes dos primórdios do Sporting Clube da Covilhã, aos domingos rumava ao Santos Pinto para fazer os comentários do clube serrano que depois, como correspondente do Record e d’A Bola, fazia o seu serviço via telefónica, para os jornais, após os jogos, utilizando o seu telefone da edilidade, mas a expensas dos clubes, obviamente.

Hoje, paradoxalmente, em substituição de uma emigração que agora é de cérebros, subsiste a imigração a rodos, com que as instituições de solidariedade social se veem confrontadas nos pedidos de ajuda em todas as vertentes para além da indigência propriamente dita.

Ficamos por aqui.

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In “O Olhanense”, de 15-09-2024)

5 de setembro de 2024

ESSA É DO EÇA

 

Hoje é sábado. São quinze horas e quinze minutos. Dia 24 de agosto que teima na canícula.

Os altíssimos pinheiros, juntinhos, tentam acalmar o sol escaldante. Benditas e frondosas árvores que, mesmo assim, e apesar de algumas brisas, de quando em vez, pelas frestas deixam passar alguns raios de sol. Fazem-me mudar de lugar. Para outra mesa e banco de madeira mais a jeito. Quase sempre disponível e solitário.

Acabam de sair uns miúdos com os papás. A bicicleta de um dos petizes vem de encontro à minha mesa. O pai pede desculpa. Sorrio. Chegam uns emigrantes, agora simpáticos, sem sobranceria e os “avec” de entre os anos 60 e 90 do século passado. São outros tempos, em que a emigração de hoje agora é de cérebros.

Venho procurar inspiração para a minha escrita. Nesta silly season sobressaem os fogos da Madeira, com a Laurissilva, essa memória ecológica, a mostrar-se em fumo. Por outro lado, a Ucrânia volta a surpreender o mundo com a sua incursão do início deste mês, por territórios onde os russos travaram algumas intensas batalhas contra os nazis. Esta incursão tem um enorme peso histórico e surpreendeu inimigo e aliados.

Enquanto noutra mesa uma família chegada dá satisfação aos seus estômagos, memorizo essa passagem do Eça, aliás, várias passagens do grande escritor, recordando, em síntese, algo sobre os prazeres da comida, cujo pecado ou também não posso olvidar.

Essa do Eça ter romances racistas como “Os Maias”, vamos passar em frente. A investigadora cabo-verdiana que me perdoe, embora a questão racial não seja ignorada, mas agora estão em cima da mesa os momentos eloquentes do Eça de Queirós sobres os comes e bebes.

Então vejamos, aleatoriamente, “uma côdea de ideal e duas garrafas de filosofia” como diria Eça n’Os Maias. É, pois, do “retrato de uma sociedade nas suas contradições, vícios e inércias” que o Presidente da República assim considera o autor. Não há dúvida que Eça de Queirós é o escritor português cuja obra em maior escala menciona a gastronomia como parte da sua fabulação. Nem mesmo em Camilo ou Aquilino são tão frequentes, abundantes e verdadeiramente quase avassaladoras as alusões, referências, descrições e sequências de natureza gastronómica como na obra do grande escritor.

Uma breve pausa para ir apanhar uma folha de papel que o vento me levou já que não tenho aqui o computador e escrevo, desta vez, à moda antiga. Mas voltemos ao assunto dessa do Eça ter a farta mesa literária do escritor bom garfo. A gastronomia marca presença em grande escala ao longo de toda a sua obra. Há descrições avassaladoras de comida e refeições. Alguns jantares memoráveis. Em “O Crime do Padre Amaro” e “A Cidade e as Serras” os livros são pródigos em relatos de comilanças que fazem crescer água na boca. Em “Os Maias”, João da Ega adiou o jantar no Hotel Central para convertê-lo numa “festa de cerimónia em honra de Cohen”. Como aperitivo foi servido vermute. Os criados serviram as ostras. Vinho branco: Bucelas; peixe sole normande; vinho tinto: St. Emidion; poulet aux champignons; ervilhas em molho branco; petits pois à la Cohen; champanhe, ananases, nozes, café; chartrenses e licores; conhaque. O texto tem 24 páginas do romance.

Em “A Cidade e as Serras”, à chegada de Jacinto à quinta de Tormes, segue-se a primorosa narrativa do chamado “jantarinho de Suas Incelências que não demorará um credo”.

E na Correspondência de Fradique Mendes, a cada instante, em cartas, em conversas, se lastima Fradique de não poder conseguir “um cozido vernáculo!”.

E, para terminar, e me ir embora deste local pitoresco, já que um miúdo se magoou no baloiço, grita e incomoda, mas não a uma família à frente acomodada numa mesa a deliciar-se com a comida, com uma bonita toalha estendida sobre a mesa, recordo que também viva e abundante é a presença de bebidas alcoólicas nos livros de Eça, onde constam nada menos do que 1302 referências a bebidas, sendo 227 a vinhos, de absinto a zurrapa.

Em a “Tragédia da Rua das Flores” serve-se o vinho do lavrador; uma canada de tinto bebem os estudantes de Coimbra. Nesta cidade, o estudante Fradique Mendes encharcava-se de carrascão na tasca do Camelas. Os vinhos que mais aparecem nas páginas de Eça são o do Porto, o de Colares e o bom vinho verde. Todos os da sua época. O bom vinho branco das vinhas senhoriais é vendido a vasilha. O lenhador bebe o pichel de vinho com o pão de sêmea; os odres e vinho pendiam de ganchos de ferro; as pipas de vinho enfeitadas de louro eram vendidas pelo servo do castelo.

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In “O Olhanense”, de 01-09-2024)


4 de setembro de 2024

A IGREJA DE SANTO ANTÓNIO DO BAIRRO DO RODRIGO FOI INAUGRADA HÁ 70 ANOS

 

Era o início do mês que iria dar lugar a um tempo mais fresco, situado então entre o solstício de verão e o equinócio de outono. Mas não deixava de continuar a ser verão.

Estávamos no ano de 1954 e em 24 de julho desse ano, o Sporting Clube da Covilhã inaugurava a sua Feira Popular localizada no recinto da Cidade.

Os Leões da Serra, então ainda na primeira divisão nacional, já sem o famoso André Simonyi, sofriam de um castigo imposto pela FPF, referente a um jogo da Taça de Portugal da época passada, consequência do qual esteve a jogar fora, no Campo do Tortosendo, durante os quatro primeiros jogos em casa.

Na Covilhã, tinha-se iniciado uma campanha de “Lembranças para os soldados e crianças da Índia Portuguesa, iniciativa da Cruz Vermelha Portuguesa, Cáritas Portuguesa e Diário Popular”. Prestava a sua colaboração o Núcleo do Corpo Nacional de Escutas. A guarnição militar da Índia havia sido reforçada com tropas metropolitanas. O general comandante da 3ª região militar fazia declarações carinhosas sobre a  forte impressão que lhe causou a magnífica festa militar, a que assistiu na Covilhã, “e que o Batalhão de Caçadores 2 dedicou ao seu contingente expedicionário”.

Entretanto, no princípio deste ano de 1954, iniciaram-se as obras de construção da nova capela do Rodrigo. O pároco de Nossa Senhora da Conceição, a que este bairro pertence, padre José de Andrade, acompanhou bastante de perto os trabalhos de terraplanagem, viu cavar os alicerces, subir as pedras quase uma a uma, encorajou os operários e orientou os trabalhos.

De há muito que se fazia sentir no Bairro do Rodrigo a falta de uma capela que proporcionasse aos moradores a assistência à missa dominical, dado o seu relativo afastamento da Igreja Paroquial de Nossa Senhora da Conceição. A Eucaristia vinha sendo celebrada, há cerca de dois anos, numa das salas das escolas primárias.

Mas a capela acabaria por ver a sua construção concluída e no domingo, dia 5 de setembro do ano da graça de 1954, há 70 anos, era a mesma inaugurada sob a invocação de Santo António, com que ficaria a ser conhecida. “É de linhas sóbrias, mas elegantes, a Capelinha de Santo António”, referia o NC de 04-09-1954 e acrescentava que o traçado é obra da responsabilidade da edilidade covilhanense, que soube “aliar o estilo das moradias às exigências litúrgicas”. “Olha a norte pelo lado do altar-mor, com um arco circular, cavado na parede cimeira. As grandes janelas rasgadas pelo corpo da única nave traduzem decisão e energia e iluminam o interior do templo com uma luz suficiente mas discreta. As três janelas do fundo, quase geminadas espreitam o adro e a linda avenida da frente. Vista de fora, fazendo um todo com o lindo bairro, quase se confunde com as outras casas brancas. Entrando dentro da mesma, a grande porta escancarada, no jeito da entrada das antigas fortalezas medievais, é como dois braços aberto convidando a todos para a calma religiosidade interior. O coro, que a porta fez subir, mais do que as proporções exigiam, tem o sentido da utilidade. Os tetos, em madeira, não são ricos, mas dizem bem na seriedade do templo. O altar-mor que não se ajustará, porventura, com o todo da construção, tem o valor de uma preciosa recordação. Veio da demolida Capela de Santa Marinha. O estado de conservação do seu bom e eterno castanho permitiu que o altar fosse reconstituído, respeitando, no geral, a sua antiga forma. No trono do altar, Santo António preside. Ele é o patrono. Santo António deve sorrir na casa nova e lavada que a fé de um bairro pobre mas cristão quis erguer à memória do mais português dos santos. As duas sacristias, mais espaçosa uma, outra de menores dimensões, servem admiravelmente ao fim a que se destinam. O campanário tem originalidade e sobriedade.”

A inauguração precedeu de um tríduo preparatório, todos os dias, pelas 21 horas, com pregação adequada. Na festa da inauguração teve a presença do Bispo da Guarda, que benzeu a capela e celebrou a missa solene, com sermão, havendo ainda procissão e Bênção do Santíssimo. De tarde foi arrematação de ofertas e quermesse, sendo abrilhantada pela Banda da Covilhã.

Entretanto, em 16 de janeiro de 2004, reportava-me aos cinquenta anos da inauguração da Capela do Rodrigo, em artigo com publicação no NC, onde colaborava, então sob a égide do pároco Padre Fernando Brito dos Santos, que muito tem dedicado parte da sua vida a todo um trabalho hercúleo de entusiasmo em prol das gentes deste Bairro, e de toda a Paróquia, Cidade e instituições em que está envolvido, com assistência resiliente aos mais necessitados, e num sentido para que nada lhes falte. Aqui neste Bairro do Rodrigo, na vontade inquebrantável do seu pensamento, ainda esteve presente a ideia de fazer surgir um Centro de Dia, colaboração em que também me envolveu, juntamente com outros companheiros, mas tal não foi possível, depois de muita labuta. No entanto, na mente do Padre Fernando Brito – o protetor dos pobres e dos jovens, muito empenhado da sua forte experiência dos movimentos operários no seu lema de “Ver, Julgar e Agir”, olhou para a Capela, hoje Igreja, a necessitar de ampliações e alterações adequadas aos novos tempos, num melhor conforto, e eis que eu próprio me vejo também envolvido na colaboração para as obras de remodelação da Igreja que se viriam a concluir em dezembro de 2001, sendo as Eucaristias dominicais celebradas por deferência do Grupo Instrução e Recreio, na sua Sede.

Desta Comissão, de que eu também fiz parte, constavam ainda os paroquianos José Manuel de Brito, Gregório Marques Esgalhado, José Martins (atualmente Diácono) e Manuel Pina Soares.

Nas alterações efetuadas há 23 anos, para salvaguardar a riqueza histórica do altar-mor que foi objeto de total substituição, por outro mais adaptável aos dias de hoje, houve o cuidado do aproveitamento de duas colunas desse antigo altar, oriundo da demolida Igreja de Santa Marinha e parte da pintura em madeira do mesmo, que se comtempla em dois quadros frontais.

O grande entusiasmo do incansável Padre Fernando Brito dos Santos, hoje Cónego, foi ver em grande destaque a imagem de Cristo Ressuscitado, a qual foi adquirida e colocada na altura destas alterações com fortes beneficiações na Igreja de Santo António do Bairro do Rodrigo, no ano 2001.

Hoje, o Padre Fernando Brito, como é mais conhecido, recentemente homenageado pelos seus 65 anos de sacerdócio, e a caminho de nove décadas de vida, não temendo a sua longevidade mas tendo no entanto a fragilidade da sua saúde, é o exemplo de Homem íntegro que deixou já fortes marcas na vida citadina.

Por isso, o dia 5 de setembro de 2024, na comemoração dos 70 anos da inauguração da Igreja de Santo António do Bairro do Rodrigo, é mais uma pedra deste templo a brilhar na alma do Reverendo Pároco.

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In “Jornal Fórum Covilhã”, de 04-09-2024)