Hoje é sábado. São quinze horas e
quinze minutos. Dia 24 de agosto que teima na canícula.
Os altíssimos pinheiros,
juntinhos, tentam acalmar o sol escaldante. Benditas e frondosas árvores que,
mesmo assim, e apesar de algumas brisas, de quando em vez, pelas frestas deixam
passar alguns raios de sol. Fazem-me mudar de lugar. Para outra mesa e banco de
madeira mais a jeito. Quase sempre disponível e solitário.
Acabam de sair uns miúdos com os
papás. A bicicleta de um dos petizes vem de encontro à minha mesa. O pai pede
desculpa. Sorrio. Chegam uns emigrantes, agora simpáticos, sem sobranceria e os
“avec” de entre os anos 60 e 90 do século passado. São outros tempos, em que a
emigração de hoje agora é de cérebros.
Venho procurar inspiração para a
minha escrita. Nesta silly season sobressaem os fogos da Madeira, com a
Laurissilva, essa memória ecológica, a mostrar-se em fumo. Por outro lado, a
Ucrânia volta a surpreender o mundo com a sua incursão do início deste mês, por
territórios onde os russos travaram algumas intensas batalhas contra os nazis.
Esta incursão tem um enorme peso histórico e surpreendeu inimigo e aliados.
Enquanto noutra mesa uma família
chegada dá satisfação aos seus estômagos, memorizo essa passagem do Eça, aliás,
várias passagens do grande escritor, recordando, em síntese, algo sobre os
prazeres da comida, cujo pecado ou também não posso olvidar.
Essa do Eça ter romances racistas
como “Os Maias”, vamos passar em frente. A investigadora cabo-verdiana que me
perdoe, embora a questão racial não seja ignorada, mas agora estão em cima da
mesa os momentos eloquentes do Eça de Queirós sobres os comes e bebes.
Então vejamos, aleatoriamente,
“uma côdea de ideal e duas garrafas de filosofia” como diria Eça n’Os Maias. É,
pois, do “retrato de uma sociedade nas suas contradições, vícios e inércias”
que o Presidente da República assim considera o autor. Não há dúvida que Eça de
Queirós é o escritor português cuja obra em maior escala menciona a gastronomia
como parte da sua fabulação. Nem mesmo em Camilo ou Aquilino são tão
frequentes, abundantes e verdadeiramente quase avassaladoras as alusões,
referências, descrições e sequências de natureza gastronómica como na obra do
grande escritor.
Uma breve pausa para ir apanhar
uma folha de papel que o vento me levou já que não tenho aqui o computador e
escrevo, desta vez, à moda antiga. Mas voltemos ao assunto dessa do Eça ter a
farta mesa literária do escritor bom garfo. A gastronomia marca presença em
grande escala ao longo de toda a sua obra. Há descrições avassaladoras de
comida e refeições. Alguns jantares memoráveis. Em “O Crime do Padre Amaro” e
“A Cidade e as Serras” os livros são pródigos em relatos de comilanças que
fazem crescer água na boca. Em “Os Maias”, João da Ega adiou o jantar no Hotel
Central para convertê-lo numa “festa de cerimónia em honra de Cohen”. Como
aperitivo foi servido vermute. Os criados serviram as ostras. Vinho branco:
Bucelas; peixe sole normande; vinho tinto: St. Emidion; poulet aux champignons;
ervilhas em molho branco; petits pois à la Cohen; champanhe, ananases, nozes,
café; chartrenses e licores; conhaque. O texto tem 24 páginas do romance.
Em “A Cidade e as Serras”, à
chegada de Jacinto à quinta de Tormes, segue-se a primorosa narrativa do
chamado “jantarinho de Suas Incelências que não demorará um credo”.
E na Correspondência de Fradique
Mendes, a cada instante, em cartas, em conversas, se lastima Fradique de não
poder conseguir “um cozido vernáculo!”.
E, para terminar, e me ir embora
deste local pitoresco, já que um miúdo se magoou no baloiço, grita e incomoda,
mas não a uma família à frente acomodada numa mesa a deliciar-se com a comida,
com uma bonita toalha estendida sobre a mesa, recordo que também viva e
abundante é a presença de bebidas alcoólicas nos livros de Eça, onde constam
nada menos do que 1302 referências a bebidas, sendo 227 a vinhos, de absinto a
zurrapa.
Em a “Tragédia da Rua das Flores”
serve-se o vinho do lavrador; uma canada de tinto bebem os estudantes de
Coimbra. Nesta cidade, o estudante Fradique Mendes encharcava-se de carrascão
na tasca do Camelas. Os vinhos que mais aparecem nas páginas de Eça são o do
Porto, o de Colares e o bom vinho verde. Todos os da sua época. O bom vinho
branco das vinhas senhoriais é vendido a vasilha. O lenhador bebe o pichel de
vinho com o pão de sêmea; os odres e vinho pendiam de ganchos de ferro; as
pipas de vinho enfeitadas de louro eram vendidas pelo servo do castelo.
João de Jesus Nunes
(In “O Olhanense”, de 01-09-2024)
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