27 de novembro de 2024

“DÁ-ME A NAVALHA SE NÃO FICAS SÓ”

 

Creio ser, nesta altura, quem escreve regularmente nos jornais há mais tempo nesta cidade, conhecida tanto pelo seu passado laneiro quanto pelo ambiente universitário atual, desde meados da década de sessenta do século XX. Entre cerca de trinta jornais e revistas distribuídos pela Covilhã, região beirã e outras partes do país, foi aqui que as digitalizações dos meus dedos, antes em máquinas de escrever e agora em computadores, transformaram inspiração e estudos em publicações impressas. Muitos desses jornais e revistas, vale notar, já não existem. 

E, porque estamos no final do ano e na aproximação da época natalícia, já se começam a fazer os arranjos alusivos com iluminações em muitas cidades e vilas de Portugal. A Covilhã não foge à regra. Em tempos, essas iluminações eram responsabilidade direta das edilidades, sendo realizadas, no caso específico da Covilhã, pelos antigos Serviços Municipalizados, sob a direção de Alexandre Galvão Aibéo, um homem de grande engenho. 

Almoços e jantares de Natal com grupos de amigos em coletividades, instituições ou de modo particular, já começaram a ser agendados, sendo que os da família têm um tratamento especial. Lá estarei na habitual “Couvada”, num desses eventos organizados no âmbito da “velha guarda” profissional e não só, com as memórias daqueles que, felizmente, ainda se podem reunir. Foi num desses ambientes, onde continuamos a partilhar nossos pontos de vista, que me foi “imposto” contar a história da atividade profissional que todos exercemos durante longos anos. Assim nasceu uma obra, envolvendo paradoxalmente aqueles que terminaram as suas carreiras e os que ainda a exercem, num denominador comum enriquecedor de cultura.

Para o Jornal Fórum Covilhã, trazemos, em ambiente descontraído, pedaços romanescos que dão substância à obra * na qual esses mesmos foram inseridos.

“O Zé do Megane interrompe e diz: - Meus amigos, há pouco falámos do ‘prémio’ que vinha do latim. A propósito, lembro-me de quando eu era menino e me preparava para fazer a primeira comunhão em Freixo de Espada à Cinta, onde vivia com os meus avós. Naquela época, a missa ainda era em latim, com o padre de costas voltadas para os fiéis. O sacristão precisava responder em latim durante a missa, e frequentemente alguns rapazes, já crescidos, faziam o papel do sacristão, ajudando o padre na Celebração Eucarística. 

Um desses rapazes tinha um canivete que usava na agricultura e brincava com ele entre os colegas, ainda na sacristia, antes de começar a missa.

O padre já o havia alertado para guardar o canivete, que era grande e, de certo modo, perigoso.  Naquele dia o rapaz ajudante acabou ficando sem a navalha, que o padre lhe retirou e guardou no bolso da batina preta, cheia de botões de cima a baixo, como se usava então.

A missa começa e quando o sacerdote dizia ‘Dominus vobiscum’ (‘O Senhor esteja convosco’), o sacristão ou o ajudante respondia ‘Et cum spiritu tuo’ (‘E com o teu espírito’). Era um sacramental antigo, uma saudação tradicional do clero no Rito Romano. Naquela época, os fiéis quase não respondiam a nada, e grande parte da missa era recitada apenas pelo padre e pelo sacristão, em latim. O rapaz estava distraído, pensativo: ‘O senhor Prior ficou-me com a navalha, raio do padre que me ficou com a navalha...’  

Um dos fiéis a seu lado bateu-lhe no ombro, lembrando-o de responder ao sacerdote, que já havia olhado para trás. Nessa altura, o padre repetiu ‘Dominus vobiscum!’  O rapaz, ainda a pensar na navalha, respondeu, em alta voz: ‘Et cum spiritu tuó, dá-me a navalha se não ficas só!’”


*In “O Documento Antigo – Uma outra forma de ver os Seguros”, com adaptação.


João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In “Jornal Fórum Covilhã”, de 27-11-2024)


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