Enquanto redijo é encantador ouvir no meu escritório uma
chilreada, emanada dum “convívio” de passarinhos sobre a árvore do quintal do
meu vizinho. São às dezenas. Também eles têm as suas tertúlias…
Há estórias interessantíssimas das nossas histórias de vida,
principalmente naqueles períodos nefastos em que se misturavam sofrimento com
ansiedade, tristezas com alegrias, e, por que não, o roçar de algumas revoltas
naquele período de juventude que nos fez passar, quase num ápice, de jovens
para adultos de barba rija.
E, já agora, enquanto aguardava a minha consulta, no Centro
Cirúrgico de Coimbra, fui dando uma olhadela pela revista “Olhares” cujo tema é
a dor. Vem a propósito deste meu texto.
A dor é um mecanismo que nos assegura a sobrevivência. É
impossível viver sem ela, mas não é preciso viver com ela. A dor de um não é
igual à dor do outro.
“Viver sem dor, significa perigo de vida. Por muito que nos
doa, precisamos desta resposta ou mecanismo sinalizador, que tem consequências
benéficas para o nosso organismo. É este sinal de alarme (dor aguda) que nos
avisa que algo não está bem, seja um traumatismo ou uma queimadura. A dor tem
esta função de fazer disparar o alarme, protegendo-nos de agressões”.
E, como a nossa vida é uma peça de teatro que não permite
ensaios, nesta perspetiva, trata-se duma passagem muito breve e, por isso, cada
momento é vivido em tempo real. Não são permitidos ensaios. Contudo, na
generalidade do caso de cada um de nós, convencemo-nos que a vida será melhor
depois de acabar os estudos; depois de ter trabalho; quando tivermos um
automóvel melhor; sei lá, a verdade é que a vida está cheia de “depois”…
Os obstáculos surgem do acaso e sem esperarmos. Seremos mais
felizes se vivermos em pleno os bons momentos que surgem.
“O tamanho da dor é uma experiência sensorial e emocional e
cada uma sabe qual o tamanho da sua. Pessoas diferentes sentem e reagem à dor
de forma variada. A questão étnica e cultural também conta e, nascer na Líbia
ou na Grã-Bretanha, equivale a ter mais ou menos resistência à dor; tal como
nascer homem ou mulher”.
Na vida de antigos Combatentes, e mesmo de todos quantos
cumpriram o serviço militar obrigatório; longo, em tempo de guerra fria e da
chamada guerra subversiva nas então designadas Províncias Ultramarinas, sempre
no frenesim de vir a ser-se chamado para a guerra do Ultramar; os
acontecimentos passaram também pelas famílias, pois ainda tenho presente, na
minha memória, os choros dos familiares, por essas estações de caminhos-de-ferro
fora, incluindo apeadeiros que agora já não há, aquando da despedida dos seus
queridos filhos, irmãos, sobrinhos, netos, namorados das filhas, e até alguns
já maridos, e pais, com o destino do embarque para as Colónias.
Neste apontamento, também não posso deixar de recordar um
triste acontecimento com a despedida dum antigo combatente desta cidade, meu
antigo colega da escola primária, o Carlos Alberto Garcia da Cruz, num fatídico
dia de setembro de 1966 (há quase meio século) na sua mobilização para S. Tomé
e Príncipe. Era um domingo e, com alguns seus amigos, entre os quais o Zé
Augusto Ferreira e o Valentim (mais tarde também antigos combatentes do
Ultramar) havia-se despedido de sua mãe e outros seus familiares, quando, já na
gare da estação dos caminhos-de-ferro da Covilhã, aguardando o comboio das 17
horas, é subitamente confrontado com pessoas que acorrem a dar-lhe a infausta
notícia de que sua mãe se encontrava muito mal. Residindo perto da estação, o
Carlos entra numa louca correria até sua casa (ainda não havia telemóveis), e
depara com sua mãe em lágrimas que lhe diz: “Nunca mais te vou ver, meu filho!”
E, num ápice, cai e sucumbe. Nesta dor da separação, o Carlos Alberto mais nada
pôde fazer que estar presente no funeral realizado no dia seguinte, 2.ª feira,
para, na 3.ª feira, partir de comboio para Santa Margarida e, na 4.ª feira,
embarcar para São Tomé e Príncipe.
“A dor inútil é a segunda causa de internamento e, em
Portugal, afeta mais de três milhões de pessoas. Depois de cumprida a sua
função de alerta, a dor não deve ser vivida e, se for crónica, é completamente
inútil. É um mecanismo que nos assegura sobrevivência e que serve de alerta,
quando é uma dor aguda. Ou seja, com uma duração limitada no tempo e com uma
causa geralmente conhecida. Contudo, quando a dor dura mais de três meses e tem
causa mal definida ou desconhecida, a dor deixou de cumprir a sua função. O
mecanismo de alerta passa a funcionar inadequadamente, porque surgiram doenças
que se tornaram crónicas”.
É por isso que os jornais, nos seus textos de opinião,
crónicas, páginas ou entrevistas adequadas ao tema, como este, podem e devem
ser; para além dum encontro de memórias (que também as há alegres), emanadas
das muitas gentes que viveram a Guerra do Ultramar (gentes da minha geração); como
que um bálsamo momentâneo pelas marcas deixadas no corpo, e na mente, de muitos
sofredores ainda; carne para canhão do satânico período do salazarismo.
É no encontro, crescente em número, em vontade, e em dinamismo,
dos participantes em tertúlias e convívios de memórias do passado que se sente uma
outra estrela que nos guia, numa almejada camaradagem, geralmente não vista
noutros encontros.
Se este tema – a dor – pode ter alguns resquícios de enfado,
o que é certo e verdade é que ela também se pode ver através da chamada dor da
alma, que é uma outra, para além da física; é invisível aos olhos, abstrata e pode
atingir intensidades insuportáveis. Contudo, esta dor nunca deixará de existir,
pois ela não existe só no corpo. A dor psíquica facilmente se torna numa dor
invisível que transpõe os sentimentos do corpo e atormenta, em surdina, para a
qual não há analgésicos. Muitas pessoas consideram que a dor psíquica é mais
difícil de suportar do que a dor física.
Vejamos o caso, de há umas semanas, da morte do jovem André
Sousa Bessa, filho da jornalista sobejamente conhecida da televisão, Judite de
Sousa, que destruiu o coração da sua mãe e certamente da sua vida profissional
de excelência. Têm-se visto, na comunicação social, sentimentos profundos de
dor daquela mãe. Este é um dos casos mais “emblemáticos” da dor – “Uma parte de
mim morreu com o meu André”.
Falando nas várias vertentes da dor, ela não é maior nem
menor que a dos outros, não é pior ou melhor que a dos outros, nem é mais ou
menos insuportável que a dor dos outros. Não é, de todo, a maior dor do mundo,
mas é a maior dor do nosso mundo.
(In "fórum Covilhã", de 19.08.2014)
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