25 de junho de 2016

A “CUNHA” NA SOCIEDADE

Cunha (figurado): pedido especial realizado por alguém a favor de outra pessoa; recomendação; empenho (in “infopédia – Dicionário Porto Editora”).
Quem ainda não se serviu, ou “meteu uma cunha”, durante as várias vertentes da sua vida?
Durante o período escolar, ao longo da vida profissional, na ação pública, na política, ou noutra qualquer situação, a dona “cunha” sempre desempenhou o seu papel na sociedade. E cobre todas as classes sociais.
Obviamente que quando se é ainda muito jovem para exercer uma atividade profissional, como era antigamente, sem a “cunha” era difícil o rapazinho ou a menina entrar em qualquer lugar.
Aquilo que agora já não acontece com tanta facilidade, naqueles tempos, sem formação adequada para solicitar um emprego, as faces ficavam rosadas nalgum revés de entrevista, naquele gaguejo da inexperiência. E, por vezes, quem era competente ficava prejudicado por força do outro que entregou o assunto à dona “cunha”.
Recordo que durante o serviço militar obrigatório não quis satisfazer uma “cunha” que me caiu nas mãos, de um sargento, indiretamente vinda de um outro, seu superior, na sala de aula onde exercia as funções, no RAL 4, em Leiria, para que determinados recrutas na especialidade fossem classificados com notas mais elevadas que outros. Uma imediata denúncia ao comandante resolveu o assunto. Veio-se assim a descobrir que o filho de um industrial de tapetes obsequiava o interessado nestes bens… tapetes!... E os candidatos a beneficiados poderiam prejudicar outros seus camaradas, com este engodo, para as pautas de mobilização para as Colónias, sabia-se lá!
Se é para memorizar os efeitos, ou possíveis efeitos da “cunha”, então aí vai mais esta: em determinada fase da minha vida profissional vi-me confrontado com a responsabilidade de selecionar um candidato a empregado na empresa da qual era o gestor. As “cunhas” começaram imediatamente a surgir como formigas, por todos os cantos da Cidade, e não só. Eram de conhecidos, amigos, familiares, desconhecidos, do senhor inspetor da CP, de políticos que vinham desde logo dizer que não estavam afetos a quaisquer partidos, e sei lá que mais, pois jurei não voltar a aceitar tal missão.
Depois, ainda houve, no tempo da outra senhora, as “cunhas” com cartas de muita humildade, contando em choro a vida de infelicidade, dirigidas ao pai-previdência, que um emprego no Estado vinha resolver a vida infeliz do agregado familiar onde se inseria. Vi cartas dessas na Câmara Municipal da Covilhã dirigidas à D. Berta Craveiro Lopes, mulher do Presidente da República de então, general Craveiro Lopes.
Para entrada num Banco, o Padre Morgadinho por vezes dava uma ajuda, amigo que era da família do Dr. Miguel Quina, desde que a família não fosse comunista, porque consta que acusava aos senhores da ditadura quem era do contra, conforme constou do Dr. Castro Martins, assim me informou a esposa, Dr.ª Edite, ambos falecidos professores da Escola Industrial e Comercial Campos Melo, como eu sempre gostei de a tratar.
As cartas de recomendação de antigamente foram substituídas pelos cartões partidários de hoje, entre boys e girls, com altos vencimentos, muitos daqueles sem qualidade alguma, em detrimento dos que verdadeiramente andaram a queimar as pestanas e se viram defraudados por este enxame de admissões, sem rei nem roque.
Os partidos políticos tornaram-se com o tempo e a democracia um lugar da “cunha”. Maior ênfase é para os que acedem ao poder político central, mas também em grande quantidade no âmbito das autarquias.
E como reconheço que a pouca apetência para a leitura é evidente, sem que se acentue mais a iliteracia, e nem todos vão ler esta revista, que ajudei a fundar, digam-me lá, verdade ou mentira, se entendem que o Sr. Miguel Relvas não conversou com a dona “cunha”, vestida ou não de calças de ganga, ou de minissaia, para aquele “doutor” ser um inexistente licenciado, que isto de doutores é como chapéus há muitos.
Literalmente há milhares de “cunhas”, que aumentam quanto mais poderosas forem as funções daquele a quem se pede um favor.
Há, contudo, muitas centenas de “cunhas” para pessoas fora das altas burocracias do Estado mas que estão colocadas numa situação estratégica para o favoritismo de emprego e carreira.
A origem das “cunhas” atinge todas as classes sociais e todas as áreas da sociedade portuguesa.
Em Portugal é indubitável que a dona “cunha” faz parte da sua história social. E continua a ser essencial na vida dos portugueses, ainda que hoje tenha outros nomes, e outros meandros.

A proximidade com o poder, seja ele qual for, continua a ser uma enorme vantagem na obtenção de proveitos injustos e uma forma de bloquear o mérito.

(In "Ecos da APAE", Junho de 2016)

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