27 de setembro de 2017

A MINHA ALDEIA – VILA DO CARVALHO

A história vai seguindo o caminho que lhe vamos difundindo ao longo do tempo. Ele vai correndo. Umas vezes mais lento, como as águas das ribeiras da minha aldeia, no estio; ou duma forma mais veloz, como a agitação das mimosas-acácias, na primavera, por alguns ventos.
A altaneira Pousadinha, lugar um tanto ou quanto alcantilado, onde nasci, teve o seu cordão umbilical na Aldeia do Carvalho (atualmente Vila do Carvalho); depois, ventos mais fortes levaram-na para Cantar Galo; mas uma outra ventania entrelaçou-a na União de Freguesias de Cantar Galo e Vila do Carvalho. Que raio! Já a esta lhe haviam subtraído uma parcela importante – o Canhoso – face à sua independência. E, assim, se transformou geograficamente esta aldeia, hoje vila.
Em agosto, o carvalhense José Salcedas Rogeiro, que saiu da sua Terra com quatro anos de idade, apresentou, com grande galhardia, as memórias desta freguesia global, sob o título “Aldeia/Vila do Carvalho – Das Origens Medievais ao Ano de 2010 – Uma Evocação”.
Deixei a Pousadinha, onde nasci e residia, naquele sábado de 12 de fevereiro de 1955, quase a completar 9 anos, rumo à Covilhã.
Memórias deste local panorâmico, implantado como que de um presépio se tratasse; e de Aldeia do Carvalho; não ficam na penumbra do tempo.
Decorria ainda a I Grande Guerra. João de Brito, pedreiro, que residia na Pousadinha, ali casou com Rita Passarinha, covilhanense, que residia à Fonte das Galinhas. Não aprenderam a ler e escrever. O trabalho infantil atraía, mormente na monoindústria – os lanifícios – uma féria para colmatar brechas na economia do lar, onde os recursos dos pais eram escassos. Aos 52 anos o casal comprou um pedaço de terra naquela encosta da serra. Aí fizeram uma pequena casa de altos e baixos. João fartava-se de trabalhar, aparelhando a pedra, fazendo os alicerces. Depois de tudo pronto, aos domingos metia homens para subir as pedras. Como não tinha dinheiro para pagar ao pessoal, Rita ia para o mercado da Covilhã vender galinhas, transportando-se numa burra. Quando já não havia casa para construir, existiam as hortas para tratar, uma courela, aquela leira para deixar o alfobre, já que, em tempo de ainda se poderem cultivar os cereais, existia a eira, e o recordar da ceifa, com a utilização dos manguais.
Luz, água e saneamento, naqueles anos das décadas de 30 a 50 do século passado, eram uma quimera.
José Martins Nunes, então regente escolar do curso noturno da Casa do Povo do Bairro do Rodrigo, foi colocado na Borralheira (Bairro de São Vicente de Paulo), no então criado Posto Escolar Masculino, em 12 de fevereiro de 1938, ficando assim com dois cursos. Depois de passar pela Escola Central da Covilhã, em outubro de 1945 foi colocado na Escola Masculina de Aldeia do Carvalho, com a 2.ª e 4ª. classes, como diretor escolar. E, assim, nas poucas horas vagas, ainda dava aulas particulares a rapazes e raparigas na Pousadinha, onde casara e passara a residir.
Ainda hoje, um ou outro seu antigo aluno, recordam o professor do seu tempo.
A então falta de luz elétrica, e maus caminhos, na Pousadinha, tornavam-na uma zona de difícil acesso, principalmente para viaturas. Quando havia um acidente, ou um incêndio, face à fragosidade do terreno, era de temer. À noite, uma escuridão. Somente no horizonte aquele luzeiro da cidade e das freguesias vizinhas; o luar, ou as miríades de estrelas no firmamento. De dia, uma zona paradisíaca, com os muitos pomares, animais de capoeira, e, na rua, pombais, e um infindável prazer de vida.
Decorria o dia de inverno de 18 de janeiro do ano 1952 quando, na Pousadinha, pelas 19 horas, já noite escura, assisti, aterrorizado, ao alarme dos habitantes, face aos gritos alucinantes que, do Alto das Lapinhas se ouviram. Muitas pessoas com candeeiros e archotes, entre os quais os vizinhos Mário Eufrásio, D. Conceição, e as filhas, Lucinda, Zezinha e Angelina, acorreram ao local e depararam com o jovem de 14 anos, Mário da Conceição Rodrigues, que todas as tardes passava com um sorriso nos lábios à minha porta, havia sido vítima de desastre, fraturando o crânio com um pinheiro que transportava para lenha, e lhe caíra em cima. Transportado pelo pai para sua casa, a poucos metros do local do sinistro, veio ali a falecer. Ficou escavada numa rocha uma cruz assinalando o triste acontecimento. Em maio de 2013 procurei no local essa memória granítica, com a ajuda da atual proprietária do terreno, natural de Verdelhos, e, por debaixo de caruma, não é que ainda lá está, volvidos mais de seis décadas?
Quando havia um incêndio nalguma casa; onde numa ficou uma criança, e gado, carbonizados; era um espetáculo dantesco.
Aos domingos era o dia de ir à missa, vestindo os fatos domingueiros. E lá se ia, a pé, por terra batida, até à Igreja de São Vicente de Paulo, na Borralheira, ou então, mais frequentemente, à antiga Igreja de Aldeia do Carvalho (cuja padroeira é Nª. Sª. da Conceição). No final da missa, havia sempre um leilão de ofertas que faziam os paroquianos, a favor da Igreja, enquanto à porta, um habitual feirante, vendia bolos. Do leilão, entre os quais havia cabritos, via-se o velho sacristão António Vicente, a coxear, de açafate na mão e opa vermelha vestida, depois de ter vindo da taberna do Zé Patareco. De tarde, quando havia futebol era altura de “ir à bola”. No regresso, nas tabernas ouviam-se os comentários “daquela defesa incrível do António José” (depois, o Rita); “os dribles estonteantes e potentíssimo remate do francês Simonyi”; mais tarde do espanhol Suarez e do brasileiro Tonho (eu que só ouvia falar nos “Tonhos do Pelourinho”…).
Era o tempo do pároco António de Oliveira Pita, com o qual eu fiz a minha Primeira Comunhão. Tinha uma mota com que se fazia transportar. Depois foi o Padre José Nabais Pereira que gostava de futebol (mais tarde seria meu professor de Canto Coral, na Escola Industrial). Aquando do batizado do meu primo Tó Zé Brito, pediu-nos para irmos mais cedo porque queria ir ao Santos Pinto assistir ao jogo do Sporting da Covilhã com o Benfica. Contentei-me por ouvir o relato na telefonia da única taberna que existia na Pousadinha, do Francisco Oliveira. Os leões serranos ganharam o encontro por 2-1.

Muito haveria para contar, mas não cabe neste espaço. Não esqueço os muitos pirilampos que, por esses caminhos fora, em direção à Pousadinha, se viam à noite, e as flores campestres, bem como o cheiro campesino.

(In "Notícias da Covilhã", de 28/09/2017)

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