A história vai seguindo o
caminho que lhe vamos difundindo ao longo do tempo. Ele vai correndo. Umas
vezes mais lento, como as águas das ribeiras da minha aldeia, no estio; ou duma
forma mais veloz, como a agitação das mimosas-acácias, na primavera, por alguns
ventos.
A altaneira Pousadinha, lugar
um tanto ou quanto alcantilado, onde nasci, teve o seu cordão umbilical na
Aldeia do Carvalho (atualmente Vila do Carvalho); depois, ventos mais fortes levaram-na
para Cantar Galo; mas uma outra ventania entrelaçou-a na União de Freguesias de
Cantar Galo e Vila do Carvalho. Que raio! Já a esta lhe haviam subtraído uma
parcela importante – o Canhoso – face à sua independência. E, assim, se
transformou geograficamente esta aldeia, hoje vila.
Em agosto, o carvalhense José
Salcedas Rogeiro, que saiu da sua Terra com quatro anos de idade, apresentou,
com grande galhardia, as memórias desta freguesia global, sob o título “Aldeia/Vila do Carvalho – Das Origens
Medievais ao Ano de 2010 – Uma Evocação”.
Deixei a Pousadinha, onde
nasci e residia, naquele sábado de 12 de fevereiro de 1955, quase a completar 9
anos, rumo à Covilhã.
Memórias deste local
panorâmico, implantado como que de um presépio se tratasse; e de Aldeia do
Carvalho; não ficam na penumbra do tempo.
Decorria ainda a I Grande
Guerra. João de Brito, pedreiro, que residia na Pousadinha, ali casou com Rita Passarinha,
covilhanense, que residia à Fonte das Galinhas. Não aprenderam a ler e
escrever. O trabalho infantil atraía, mormente na monoindústria – os lanifícios
– uma féria para colmatar brechas na economia do lar, onde os recursos dos pais
eram escassos. Aos 52 anos o casal comprou um pedaço de terra naquela encosta
da serra. Aí fizeram uma pequena casa de altos e baixos. João fartava-se de
trabalhar, aparelhando a pedra, fazendo os alicerces. Depois de tudo pronto,
aos domingos metia homens para subir as pedras. Como não tinha dinheiro para
pagar ao pessoal, Rita ia para o mercado da Covilhã vender galinhas,
transportando-se numa burra. Quando já não havia casa para construir, existiam
as hortas para tratar, uma courela, aquela leira para deixar o alfobre, já que,
em tempo de ainda se poderem cultivar os cereais, existia a eira, e o recordar
da ceifa, com a utilização dos manguais.
Luz, água e saneamento,
naqueles anos das décadas de 30 a 50 do século passado, eram uma quimera.
José Martins Nunes, então
regente escolar do curso noturno da Casa do Povo do Bairro do Rodrigo, foi
colocado na Borralheira (Bairro de São Vicente de Paulo), no então criado Posto
Escolar Masculino, em 12 de fevereiro de 1938, ficando assim com dois cursos.
Depois de passar pela Escola Central da Covilhã, em outubro de 1945 foi colocado
na Escola Masculina de Aldeia do Carvalho, com a 2.ª e 4ª. classes, como
diretor escolar. E, assim, nas poucas horas vagas, ainda dava aulas
particulares a rapazes e raparigas na Pousadinha, onde casara e passara a
residir.
Ainda hoje, um ou outro seu
antigo aluno, recordam o professor do seu tempo.
A então falta de luz elétrica,
e maus caminhos, na Pousadinha, tornavam-na uma zona de difícil acesso,
principalmente para viaturas. Quando havia um acidente, ou um incêndio, face à
fragosidade do terreno, era de temer. À noite, uma escuridão. Somente no
horizonte aquele luzeiro da cidade e das freguesias vizinhas; o luar, ou as
miríades de estrelas no firmamento. De dia, uma zona paradisíaca, com os muitos
pomares, animais de capoeira, e, na rua, pombais, e um infindável prazer de
vida.
Decorria o dia de inverno de
18 de janeiro do ano 1952 quando, na Pousadinha, pelas 19 horas, já noite
escura, assisti, aterrorizado, ao alarme dos habitantes, face aos gritos
alucinantes que, do Alto das Lapinhas se ouviram. Muitas pessoas com candeeiros
e archotes, entre os quais os vizinhos Mário Eufrásio, D. Conceição, e as
filhas, Lucinda, Zezinha e Angelina, acorreram ao local e depararam com o jovem
de 14 anos, Mário da Conceição Rodrigues, que todas as tardes passava com um
sorriso nos lábios à minha porta, havia sido vítima de desastre, fraturando o
crânio com um pinheiro que transportava para lenha, e lhe caíra em cima.
Transportado pelo pai para sua casa, a poucos metros do local do sinistro, veio
ali a falecer. Ficou escavada numa rocha uma cruz assinalando o triste
acontecimento. Em maio de 2013 procurei no local essa memória granítica, com a
ajuda da atual proprietária do terreno, natural de Verdelhos, e, por debaixo de
caruma, não é que ainda lá está, volvidos mais de seis décadas?
Quando havia um incêndio
nalguma casa; onde numa ficou uma criança, e gado, carbonizados; era um
espetáculo dantesco.
Aos domingos era o dia de ir à
missa, vestindo os fatos domingueiros. E lá se ia, a pé, por terra batida, até
à Igreja de São Vicente de Paulo, na Borralheira, ou então, mais
frequentemente, à antiga Igreja de Aldeia do Carvalho (cuja padroeira é Nª. Sª.
da Conceição). No final da missa, havia sempre um leilão de ofertas que faziam
os paroquianos, a favor da Igreja, enquanto à porta, um habitual feirante, vendia
bolos. Do leilão, entre os quais havia cabritos, via-se o velho sacristão António
Vicente, a coxear, de açafate na mão e opa vermelha vestida, depois de ter
vindo da taberna do Zé Patareco. De tarde, quando havia futebol era altura de
“ir à bola”. No regresso, nas tabernas ouviam-se os comentários “daquela defesa
incrível do António José” (depois, o Rita); “os dribles estonteantes e
potentíssimo remate do francês Simonyi”; mais tarde do espanhol Suarez e do
brasileiro Tonho (eu que só ouvia falar nos “Tonhos do Pelourinho”…).
Era o tempo do pároco António
de Oliveira Pita, com o qual eu fiz a minha Primeira Comunhão. Tinha uma mota
com que se fazia transportar. Depois foi o Padre José Nabais Pereira que gostava
de futebol (mais tarde seria meu professor de Canto Coral, na Escola
Industrial). Aquando do batizado do meu primo Tó Zé Brito, pediu-nos para irmos
mais cedo porque queria ir ao Santos Pinto assistir ao jogo do Sporting da
Covilhã com o Benfica. Contentei-me por ouvir o relato na telefonia da única
taberna que existia na Pousadinha, do Francisco Oliveira. Os leões serranos
ganharam o encontro por 2-1.
Muito haveria para contar, mas
não cabe neste espaço. Não esqueço os muitos pirilampos que, por esses caminhos
fora, em direção à Pousadinha, se viam à noite, e as flores campestres, bem
como o cheiro campesino.
(In "Notícias da Covilhã", de 28/09/2017)
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