10 de julho de 2018

OS MAUS DA FITA


Lembram-se dos tempos dos filmes de “Charlot”, aquele vagabundo trapalhão, de calças largas, sapatos tortos, bengala e bigode aparado (o britânico Charles Spencer Chaplin), que nos deliciavam com frequência, no final da década de 50 e início da de 60 do século passado?

Pois era o tempo do cinema mudo em que os filmes tinham sempre uma personagem que dava o corpo a todas as maldades. O cinema cresceu, perdeu esta faceta ingénua das coisas, mas a expressão ficou sempre para designar os vilões, na personificação de todo o mal.

Vem o tema a propósito duma controvérsia gerada em abril passado sobre o Museu das Descobertas, que Fernando Medina, Presidente da Câmara de Lisboa, prometeu levar por diante aquando da sua campanha para a presidência da mesma.

Só que não há concordância com aquele nome por um grupo de mais de cem académicos, numa carta publicada pelo Expresso, vindo a crescer as vozes contrárias, referindo que, para os não europeus, a ideia de que foram “descobertos” é problemática: “Ter-se-ão os povos africanos, asiáticos e americanos, de histórias milenares, sentido ‘descobertos’ pelos portugueses?”

A face dos maus da fita vem depois de o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, em visita de abril de 2017 efetuada ao Senegal, na ilha de Gorée, antigo entreposto nas rotas atlânticas do tráfico de escravos, “não ter reconhecido a longa e sinuosa história da responsabilidade portuguesa no comércio e escravização de africanos, nem as outras formas de opressão que em nome do país foram praticadas e legalmente sustentadas nas colónias africanas até à extinção do regime colonial português em 1974/75”. As declarações do Presidente português reavivaram o branqueamento da opressão colonial, cujo projeto colonial português era visto como “missão civilizadora”.

Embora o Presidente da República tenha dito que Portugal reconheceu injustiça da escravatura quando a aboliu em 1761, pelo Marquês de Pombal, e depois alargámos essa abolição mais tarde, no século XIX, não pediu perdão pela escravatura, como já o havia feito em 1992, o Papa São João Paulo II. Curiosidade é que à Ilha de Gorée foram os navegadores portugueses os primeiros a chegar em 1444, à qual deram o nome de Ilha da Palma. Calcula-se que pelo menos 12 milhões de escravos africanos tenham sido capturados e retirados do continente, ao longo do triste período do comércio negreiro.

Historiadores dos EUA dizem que Portugal deve pedir desculpa por tráfico de escravos, focando esse pedido de desculpas como reconhecimento das consequências, terminando com a criação de um museu ou de um centro de investigação. É que, segundo dizem, embora não ajudassem  os 5,8 milhões de africanos tornados escravos e embarcados em navios com a bandeira de Portugal, nem tão-pouco aqueles que foram mortos em guerras causadas por tráfico de escravos, e por aqueles que sofreram há centenas de anos, seria, contudo, um passo em frente para melhorar a relação hoje em dia entre pessoas com cores diferentes.

Entretanto, Matilde Sousa Franco, vem dizer que há quase quatro décadas defende a criação deste museu com o nome de Museu da Interculturalidade de Origem Portuguesa, e não Museu das Descobertas, no nosso país, em que Portugal foi autor não só da primeira Globalização como, no século XXI, continua a destacar-se como “pioneiro” no diálogo intercultural.

Quando os portugueses chegaram ao Brasil, os índios descobriram que havia outras pessoas sem serem eles. Assim, o historiador João Paulo Oliveira e Costa considera que a designação Museu dos Descobrimentos seria inadequada. “O processo dos Descobrimentos é historicamente curto, dura só até meados do século XVI, deixando assim de fora 90% do que foi a Expansão portuguesa, com os aspetos mais negros da Expansão em que está previsto um núcleo dedicado à escravatura”.

Os argumentos a favor dos termos “Descobrimentos”, “Descobertas” ou “Expansão” foram objeto de substituição apresentada como o espaço museológico vir a chamar-se “A Viagem”. O que é certo e verdade é que desde D. João V, pelo menos, que Portugal se apresenta ao mundo como país dos Descobrimentos.

Para muitos estão ainda em causa alguns dos aspetos mais negros da Expansão, e em resposta a toda a controvérsia, António Costa disse que “não temos de ter uma relação complexada com os Descobrimentos. É preciso é ‘descolonizar os Descobrimentos’”. É que também a escravatura “faz parte da nossa História e não pode, não tem como e não deve ser ignorada”.

Outra forma de denominar o futuro museu é Museu Portugal Global, na opinião de outros historiadores, porque Portugal é dos poucos países do Mundo que de forma decisiva contribuíram para a História da Humanidade. Tal aconteceu quando, na expressão de Camões, demos novos mundos ao Mundo.

O ilustre pensador Eduardo Lourenço declarou então que se não vê necessidade de “crucificar” o passado de Portugal, independentemente das consequências negativas, como a escravidão, pois que as descobertas tiveram na génese uma motivação “louvável” e quando tantos países da Europa cometeram “crueldades” muito maiores. “Fomos os mais pacíficos, dos povos do sul da Europa”.

Já Rui Tavares, in Público, refere que “quem era escravo em Portugal continuou a sê-lo e, pior ainda, continuou a gerar filhos escravos, até que o Marquês de Pombal publicou em 1773 uma ‘lei do ventre livre’ segundo a qual os filhos e filhas das escravas nasceriam livres.”

A abolição da escravatura em toda a jurisdição portuguesa verificou-se em 29 de abril de 1878, ou seja, há 140 anos, sendo certo que em 1930 ainda havia em Lisboa gente que tinha nascido escrava.

Sobre este assunto muito haveria que dizer, mas não cabe neste espaço, pelo que oportunamente surgirá em livro editado, a ser apresentado em 8 de setembro.

(In "fórum Covilhã", de 10-10-2018)

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