Não era este o tema que tinha inicialmente previsto para a crónica desta
semana. Mas, recordando o acompanhamento que tivemos com os filhos até ao
ensino universitário e já com os netos a viverem os momentos do secundário e
até mesmo o superior, ficam as marcas das reminiscências dos avós que já
passaram a fasquia dos 70 anos.
Os tempos doutrora são incomparáveis aos dias de hoje, em todos os
aspetos, desde o habitacional ao social, para não referir outros básicos, como
o económico.
Se bem que com exceções como manda a regra, pelo menos para quem se
embrenha nos meios solidários, os jovens de hoje não têm razão para não
disputarem os valores da vida no empenhamento do saber até à opção vocacional.
As famílias já não são iletradas, embora se vão dando alguns pontapés na
gramática. Certo é que os hábitos de leitura são escassos e falar de cultura é
dum enfado confrangedor para muitas das pessoas, onde os jornais desportivos
são os apelativos e o sensacionalismo do Correio da Manhã não deixa de
atrair.
Hoje já não existe uma casa de habitação sem uma casa de banho, o que não
acontecia no meu tempo de estudante, duma forma generalizada. Surgida a época
dos exames, com o calor dentro das casas, agravadas pelo sarilho da barulheira
de quem tinha mais irmãos, restava-nos pegar nos livros pela manhazinha e
procurar uma sombra, só ou acompanhado, para aí ser o local mais sossegado e
inspirador para o estudo, as revisões da matéria para as várias disciplinas.
Era no Jardim Municipal, nas escadas ou bancos do Monumento de Nossa Senhora da
Conceição, algumas sombras de oliveiras da então Avenida Salazar (hoje Avenida
25 de Abril), antes de se terem lá erguido algumas vivendas, e por aí fora. Não
menos agradável era o ambiente acolhedor da antiga Biblioteca Municipal, ao
Jardim. E não havia automóveis para a deslocação, mas tão só o caminhar com os
livros debaixo do braço.
Certo é que, ainda que paradoxalmente, havia um pouco mais de propiciação
para se estudar (nessa altura em que decorar era a forma de ensino adequada ao
tempo), já que não havia os meios de hoje que são objeto de distração mesmo em
tempo de estudo: televisão, telemóveis, redes sociais, e por aí fora…
Não havia dinheiro para uma merenda quotidiana, um sumo ou um gelado do
Cardona, pelo que, na rua, a água duma fonte era bendita.
E os cérebros lá se tinham de esforçar sem o combustível necessário para
o manter saudável. Ainda me recordo de, neste tempo então mais abundante de
fruta, as mãezinhas se preocupavam em fazer um esforço adicional à aquisição
das novidades, como os figos, as cerejas ou outra cobiçada, “porque se estava
na altura dos exames” e havia que não deixar chegar algum fastio. Cérebros com
carburante reforçado…
Se a Física e a Química, o Direito
Comercial e a Economia Política eram as disciplinas que mais me levavam a
retirar-me para uma concentração no estudo, não me posso esquecer que, duma
transição do mesmo curso, que frequentava durante o dia, para o noturno, que
obrigava a mais um ano, e por forma a não ficar deste modo com uma disciplina
em atraso, vi-me forçado a esse então famigerado exame de transição, ter que
gramar, durante todas as férias do verão, ao invés de aliviar a carga, estudar
o Segundo Volume da História Universal, sem explicadores, naquela de “seja o
que Deus quiser”. E, vai daí, a matéria dessa disciplina de um ano letivo
completo marrei-a em dois meses!...
Pois é, levo com o exame de História e também
com outro de Francês, que, para esse efeito de transição penso que eram só
provas orais, e, por obra e graça do Divino Espírito Santo, saí-me bem perante
o júri constituído pelos falecidos professores Drª. Maria Irene Portela e Dr.
José de Oliveira Dias. Corria o ano da graça de 1963.
Arrumavam-se os livros e cadernos numa pasta,
onde não havia secretárias em casa como nos dias de hoje, mormente quando há
vários irmãos. Não se folheavam fotocópias nem havia marcadores fluorescentes ou
post-it coloridos, porque não havia mesmo (os professores
utilizavam os stencils da Escola para os testes).
Querer tirar dúvidas com um colega ao telefone
não era viável pois quase nenhum tinha este aparelho (só em casas mais
abastadas) e, telemóvel, ainda era inexistente, a léguas de distância. Quando
muito, ia-se a pé e batia-se à porta do colega, o qual, por vezes, morava
longe. Era uma carga de nervos quando parecia que já todos estavam mais
adiantados no estudo ou, então, que todos estavam mais desesperados do que eu.
Para o exame final, volvidos três anos, lá
combinámos, com o Manuel José Torrão, o falecido Tomé, do BNU, que foi viver
para Abrantes, irmos trocar impressões e estudar para casa do então genro do
José Vicente Milhano, por sua sugestão, mas que vivia longe, lá para as bandas
do Campos Melo. Já tarde, esgotados, depois de um dia de trabalho e perto da
meia-noite, vinha-me pôr a casa no seu Citroen boca de sapo.
É que, os nossos professores de Contabilidade,
em final de ano, foram forçados a interromper as aulas. Primeiro, foi o Dr.
Fernando Carneiro, que era chamado pela segunda vez para o serviço militar, para
depois ser mobilizado para o Ultramar; depois foi um professor novo que teve
igual sorte, pelo que, quase em vésperas do último exame – Aptidão Profissional
– vem salvar a contenda o Dr. Duarte Simões. Do júri constava então também o
industrial de lanifícios, Dr. Fernando Lopes Alçada.
Nessa altura eu fumava e o cinto das calças já
reduzia mais um furo.
Agora pergunto a mim próprio, por que me deu
na real gana de lembrar pecados velhos, ou algo nostálgico, em vez de falar no
desplante de Joe Berardo; que em 45 anos, cinco Presidentes da República
Portuguesa entregaram 9477 comendas; que a “coisa” pode piorar, segundo a
versão de Rui Rio; que foi há 100 anos que Einstein se tornou uma popstar;
que
a Europa está sem ilusões; ou a doença do capitalismo; a ignóbil farsa do
SIRESP; ou que surge a interrogação se a Theresa May não será o mal menor?
Bom, tudo isto seria diferente, mas não era a
mesma coisa, pois não?
(In Jornal fórum Covilhã", de 12-06-2019)
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