Segundo Saramago, “o grande
problema do nosso sistema democrático é que permite fazer coisas nada
democráticas democraticamente”, e assim também a desmesurada benevolência, a
desregulação, o facilitismo e a confiança exacerbada, levam muitas vezes às
situações de constante indignação na imprensa e redes sociais, e a vozearia nos
canais televisivos, e não só, com o tema, num ano de todos os perigos, como tem
vindo a acontecer, no caminho da corrupção. Procura-se depois o enferrujamento
de provas, para que no desiderato daquilo que terá sido considerado mais fácil,
não se venha levantar o véu da oxidação e levar à indesejada luz da verdade.
Todos os partidos se envolvem
nesta maldita teia, onde muitos dos seus apaniguados caem na tentação de também
provar a maçã de Eva. E, em vez de tentar repudiar os seus “traidores” procuram
antes encapotar o descaminho em que se envolveram, nalgumas desculpabilizações
saloias, algumas mesmo hilariantes.
Perdendo-se já o rescaldo das
últimas eleições europeias, não deixa, no entanto, de, perante os números da
abstenção, ver que a sua grande dimensão esmaga qualquer resultado, por mais
vitórias ou derrotas que sejam anunciadas.
Nunca tivemos um período tão
longo de paz na Europa. Talvez por isso a displicência, o deixa andar, o que se
lixem as eleições porque são todos iguais, levam a este pensamento de mandar às
malvas qualquer ato eleitoral.
A corrupção crónica continua a
arrastar-se pelos meios bancários e autárquicos e apesar de inúmeros exemplos,
ela grassa em todos os cantos e recantos deste Portugal desencantado. Esta
epidemia parece estender-se por toda a parte, enquanto nos vamos questionando,
tristemente, sob o tema que foi o 10 de junho – os desígnios da Nação.
Mereciam ser recordados os
programas de humor na RTP, da autoria de César de Oliveira e de Melo
Pereira, com os falecidos protagonistas
Camilo de Oliveira e Ivone Silva – “Sabadabadu”
– onde, entre os sketches mais conhecidos, ficou a canção “Ai Agostinho, Ai Agostinha”,
interpretando os papeis de embriagados, cantando uma cantiga com uma letra
atenta à situação do país de então, corriam os anos de 1981 e 1982.
Mas se recuarmos para 1975, também poderíamos recordar “Nicolau no País
das Maravilhas”, no célebre programa de humor que deu a conhecer o Sr. Feliz
(Nicolau Breyner) e o Sr. Contente (Herman José), em que Nicolau dá a conhecer
um outro artista em início de carreira, Herman José, passando os dois a formar
a célebre dupla, “Sr. Feliz e Sr. Contente”, onde, nesta rábula, a dupla
encantava o público com o seu “diga à gente, diga à gente, como vai este país…”
É indubitável que as pessoas sentem que a independência da Justiça face
ao poder executivo deve ser aumentada e não diminuída. Que um Ministério
Público constrangido politicamente tem efeitos desastrosos, e é inaceitável tal
conduta. É óbvio que todos reconhecem o desprestígio atual da classe política
portuguesa. E, neste contexto, os grandes problemas que se levantam no combate
à corrupção. Assim, há que haver a máxima atenção por todos os partidos no
sentido de não consentirem a aprovação de leis que venham desvirtuar o sentido
da democracia.
Recentemente fomos confrontados pela comunicação social com a notícia
de que o Grupo de Estados contra a Corrupção (Greco), criado em 1999 pelo
Conselho da Europa para acompanhar o cumprimento dos padrões anticorrupção
estabelecidos por este organismo está desiludido com Portugal. Segundo o
Relatório de Conformidade, conforme informação no Público de 28 de
junho, agora tornado público, mas, no entanto, aprovado em dezembro de 2017,
Portugal, das 15 recomendações que lhe tinham sido feitas com a necessidade de
reforçar a sua capacidade de prevenção e de combate à corrupção, desta vez, com
respeito, especificamente, aos nossos deputados, juízes e procuradores, só deu
cabal cumprimento a uma delas. Estes peritos estiveram no nosso país em meados
de 2015, contactaram com numerosas pessoas e instituições e formularam
recomendações que Portugal ignorou.
Segundo o Greco, o nosso país preocupa-se pouco com a prevenção da
corrupção, com os conflitos de interesses e com a capacidade de decisões. E os
resultados estão, há muito, à vista de todos. No entanto, no dia seguinte, o
Greco veio a reconhecer algum esforço anticorrupção e melhorou a nota de
Portugal, informando: “O Greco conclui, por conseguinte, que o atual nível
muito baixo de cumprimento das recomendações continua a ser ‘globalmente
insatisfatório’”.
Por isso mesmo, Joana Marques Vidal destacou na comunicação social,
recentemente, “redes de corrupção e compadrio, nas áreas da contratação
pública” que se disseminam entre vários organismos de ministérios e autarquias.
E, no meio desta amálgama de situações graves, quem paga as favas é o
Zé Povinho, que, muitas vezes já se marimba para tudo o que lhe querem enfiar,
através do seu manguito – Toma!... E, vai desta, “albarde-se o burro à vontade
do dono!”. “Escola não a tens, porque te podia fazer mal o puxar muito pela
cabeça nos estudos, e lá diz o ditado que ‘antes burro vivo’, como tu estás,
‘do que doutor morto’, como tão frequentemente se tem visto”.
E o nosso Zé Povinho continua, numa de desabafo: “Para continuares a
gozar o sumo bem da liberdade que te outorgamos, tu não tens que ter senão o
pequeno incómodo de pagar tudo o que isto custa, e de dar vivas do estilo,
sempre que a ocasião se ofereça, ao príncipe, à real família e às instituições que
vigem à sua custa”. (1)
“Finalmente, sempre que precisares do que quer que seja, trata de o
ganhar, porque ninguém já te dá nada. Adeus, Zezinho! Vai-te com Nossa
Senhora!”.
E com o Zé Povinho terminamos esta crónica, porque ele é imortal. Ora
submisso, com uma canga às costas feito burro de carga e vexado pelos
poderosos, ora irreverente, fazendo o “manguito” a quem o queira enganar,
tornando-se o ícone mais representativo do português. O símbolo de um povo
triste e subserviente que a espaços – mas só a espaços – é capaz de um gesto de
revolta. É o retrato concreto da nação que somos, entalada entre a admiração
basbaque e a indignação passiva, entre temíveis passados e futuros
desesperados.
Que o Governo esteja atento ao que Rafael Bordalo Pinheiro criou na
figura do Zé Povinho, há mais de um século, e que continua atual, para que ele
mesmo, e/ou os futuros não vejam cada vez mais o seu “manguito”.
João de Jesus Nunes
jjnunes6200@gmail.com
(1(1)
In
“Álbum das Glórias”, de Rafael Bordalo Pinheiro.
(In "Jornal fórum Covilhã", de 10-07-2019)
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