Pouco a pouco vamos encorpando
o número de momentos marcantes ao longo das nossas vidas.
A expressão ficou-me retida há
uns anos. A caminho da pré-primária, meu Neto embirrava com a escola. Ao tentar
animá-lo dizia-lhe que era pouquinho tempo, que logo vinha para casa. Pelo
caminho, insistia comigo: “Ó avô, mas um pouquinho é muito, não é?
Chega a vez de António Costa. Então
presidente da Câmara de Lisboa. Preparava o assalto ao seu partido. Entendeu
que a vitória de António José Seguro, de 31,4 por cento com que ganhou as
eleições europeias em 2014, foi por “poucochinho”. O resto já se sabe. Apeou
Seguro numas primárias. E é líder do PS desde então.
Surge o coronavírus na China. A
OMS emite o primeiro alerta para a doença em 31 de dezembro de 2019. Depois das
autoridades chinesas notificarem casos de uma misteriosa pneumonia na cidade de
Wuhan. Metrópole chinesa com 11 milhões de habitantes. Sétima maior cidade da
China. E a número 42 do mundo. Na China, em 9 de janeiro de 2020, um homem de
61 anos foi a primeira vítima. 41 pessoas já haviam sido infetadas. Era ainda poucochinho
para aquela vastidão de gente. O medo não se instalara tanto como agora, numa
imensidão de casos de infeção e mortes. Extravasando já a China e
dispersando-se por quase todo o planeta. O poucochinho rapidamente se
transformou no muito.
Noutro contexto, continuamos a
assistir a muitos “poucochinhos” de pedaços da nossa vivência. De um momento
para o outro transformam-se em “muitos”.
Duas dezenas de dias marcantes
da última década deste século. Parcialmente já me referi por outras ocasiões.
Parecem poucochinhos momentos. Mas transformaram-se numa enormidade de
situações: adversas ou menos conseguidas.
As Primaveras Árabes em 2011.
Começaram aos poucochinhos. Mas depressa alastraram. Não mudaram a História. Mas
deixaram bem impressa na memória coletiva a vontade de os povos se apoderarem
dos seus destinos. Eram acontecimentos que prenunciavam uma mudança histórica
no mundo árabe. As imagens prendiam milhões de pessoas aos ecrãs das
televisões. Seguiu-se uma interminável ressaca. Culminou na tragédia síria. À
Tunísia, seguiu-se a Argélia, Egipto, Iémen, Bahrein, Líbia. Um fenómeno de
contágio. Foram temas comuns: a persistência de regimes autocráticos, ditadores
há décadas no poder, visibilidade da corrupção, uma imensa frustração social.
A troika foi chamada a Portugal em 2011. O seu programa ajudou a
definir o rumo económico, social e político do País, aos poucochinhos. Mas o
aceleramento não tarda. Do poucochinho passa-se ao muito, muito mesmo para além
da troika. Dia 6 de abril desse famigerado ano. O pontapé de saída para
mais uma era de austeridade. É poucochinho o que a generalidade dos portugueses
recebem. Tornar-se muito grande o rasgão das suas algibeiras. Do “desvio
colossal” ao “enorme aumento de impostos”.
Em 2019, a Cimeira do Clima –
COP25. No último dia com tudo em aberto. Assim chega a 25ª. Conferência das
Partes (CP25) da Convenção Quadro das Nações Unidas, em Madrid, com uma
incógnita: Será mesmo o seu último dia? Isto não é poucochinho?
Dia 13 de março de 2013. Anúncio
ao mundo da escolha de 115 cardeais reunidos em conclave. O novo Papa é um
jesuíta de 76 anos – o argentino Jorge Mario Bergoglio. Adota o nome de
Francisco.
Põe a Igreja a discutir a
homossexualidade, o aborto, o fim do celibato, a ordenação de mulheres. Força o
clero a encarar os abusos sexuais. Ao fim de oito anos não mexe na doutrina da
Igreja. Alimenta quilómetros de notícias. Já na qualidade de Papa escapula-se
do Vaticano para comprar óculos e sapatos. Trocado a limusine por um carro
utilitário. Renuncia ao luxuoso apartamento papal. Reside com os funcionários
da Santa Sé na Casa de Santa Marta. Despreza
os velhos símbolos do poder eclesial. Em vez dos famosos sapatos vermelhos calça
uns velhos sapatos pretos. Recusa fechar as portas da Igreja aos divorciados
recasados e aos homossexuais. Obriga padres, bispos e cardeais a olharem as
vítimas olhos nos olhos. Critica a opulência em que se refestelam muitos dos
representantes da Igreja Católica. Dos bens materiais e condições sociais quis
poucochinho para ele.
Ano 2014. Queda do BES. A sua
história é a história de um banco rico que afinal era pobre. O BES era afinal
um castelo vazio. Com acionistas sem capital e ativos sobrevalorizados. Os
supervisores (e os governos) eram distraídos. E durante duas décadas ignoraram
os sinais de falta de solidez do grupo. E as falhas de idoneidade de alguns
gestores. As mensagens de tranquilidade, poucochinhas, tinham partido nas
vésperas do resgate de Belém, de São Bento e do Banco de Portugal. Escondiam a
realidade: o Banco estava insolvente. Cavaco Silva enganou-nos. O poucochinho
transformou-se num muito de problemas, muitos mesmo.
Foi num domingo de verão, a
notícia em direto nas televisões: um dos bancos mais importantes da história de
Portugal estava prestes a cair.
10 de novembro de 2015.
António Costa quebrou “o Muro de Berlim”. Cavaco apela à rebelião dos deputados
do PS contra a estratégia de alianças à esquerda que Costa está a construir. Assinaturas
de António Costa, Catarina Martins, Jerónimo de Sousa e Heloísa Apolónia no
papel. O PS apresenta a moção de rejeição. A esquerda parlamentar levanta-se em
conjunto. Aprova-a. O Governo Passos – Portas cai. É a estreia da nova maioria.
Acabou-se o poucochinho.
A queda do Governo de Passos
leva Costa a primeiro-ministro. Portas faz, durante mais de vinte minutos, um
sistemático e violento ataque ao líder do PS. Do púlpito do hemiciclo de S.
Bento, Portas afirma: “Pedirei emprestado a Vasco Pulido Valente a definição da
vossa manobra. Não é bem um governo, é uma geringonça.”
12 de dezembro de 2015 – O
Acordo de Paris foi um marco. Há uma grande alegria. Adotado um acordo para
limitar as emissões de gases que aquecem o planeta. Mas o mundo está longe de
cumprir essas metas. A COP21, em Paris, fechou o primeiro documento. Todos os
países do mundo se comprometem com metas de redução de emissões de gases de
estufa. Foi um feito da diplomacia francesa, mas também produto de um acordo
prévio entre os EUA e a China. O mais importante documento saído destas
cimeiras promovidas pelas Nações Unidas tinha sido o Protocolo de Quioto, em
1997. Este só previa compromissos por parte dos países mais ricos. Desta vez,
era o mundo todo que se punha de acordo. Do poucochinho havia surgido o muito.
Segue-se um balde de águia
fria. Alertas sucessivos de que o mundo não está a seguir o caminho certo para
alcançar as metas ali estabelecidas. À escala global, há um conjunto de más
notícias: a eleição de Donald Trump. O anúncio de que pretende sair do acordo. Um
conjunto de fake news. Põem em causa a ciência, e o crescimento de
emissões. A boa notícia são as manifestações pelo clima à escala global. Estão aí,
constantes e bem visíveis. Lideradas, sobretudo por jovens. Entre eles, o nome
mais sonante é um dos mais improváveis. Uma sueca de apenas 16 anos. Chama-se
Greta Thunberg. Sozinha, iniciou uma greve às aulas pelo clima, em agosto de
2018.
23 de junho de 2016. O Reino
Unido decidiu encolher a União Europeia. Nada será como antes do referendo do
Brexit. Em seis décadas de integração e alargamento, nunca a construção
europeia se tinha feito a subtrair, só a adicionar. Os britânicos foram às
urnas para decidirem em referendo se queriam continuar na União Europeia e o “não”
venceu com 51,89% dos votos.
(In "Jornal fórum Covilhã", de 11-03-2020)
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