8 de julho de 2020

A VOLUPTUOSIDADE NA HISTÓRIA DE PORTUGAL

Vários autores se têm dedicado aos romances históricos. Nesta linha podemos encontrar, por exemplo, Isabel Stilwell, Joaquim Vieira, ou mesmo o covilhanense João Morgado.
Sou um apaixonado por história. E se “a velhice é um tirano que proíbe, sob pena de morte, todos os prazeres da juventude”, segundo François de La Rochefoucauld, o que é certo e verdade é que “o envelhecimento ainda é o único meio que foi encontrado para viver muito tempo”, nas palavras de Charles Augustin Sainte-Beuve. Certo é que “o velho não pode fazer o que um jovem faz; mas faz melhor”, no dizer de Cícero. E fiquemos com “aqueles que realmente amam a vida são aqueles que estão envelhecendo”, no entendimento de Sófocles.
Falemos então um pedacinho do sexo e poder que se atravessou, e continua a prosseguir, na nossa história portuguesa. Os laços de sangue são particularmente relevantes em monarquia. Foi o regime em que Portugal viveu quase oito séculos.
Mas deixando este período para uma próxima crónica, queremos lembrar que também na República se passaram facetas da vida libidinosa entre personagens políticas ou da vida social. Para falar de casos de sensacionalismo, os tais que fazem vender muitos exemplares do jornal, e o prendem à sôfrega leitura, há periódicos apropriados e sobejamente conhecidos.
O escândalo Ballet Rose aconteceu no tempo de Salazar sob o mandato presidencial do almirante Américo Tomaz. Naquele dia 10 de dezembro de 1967. A pouco mais de um mês de eu iniciar em Tavira o serviço militar obrigatório. Eu era então funcionário da edilidade covilhanense. O escândalo tentou ser abafado.
O jornal britânico The Sunday Telegraph publicava um artigo do repórter Barry O’Brien com o título “Escândalo sexual abala o governo português”. Referia-se assim ao envolvimento de vários homens ligados ao regime de Salazar, incluindo o seu ministro da Economia, José Gonçalo da Cunha Sottomayor Correia de Oliveira (nomeado em 19-03-1965 e exonerado em 27-09-1968). Encontrávamo-nos no XVII Mandato e 56º Ministério. Foi então o envolvimento numa rede de prostituição feminina em que haviam sido abusadas algumas crianças a partir dos 9 anos de idade. Quem diria que anos mais tarde, este flagelo continuaria com o famigerado processo Casa Pia, também com figuras dos vários quadrantes da sociedade portuguesa, e outros que os órgãos da comunicação social vão colocando no poder da informação.
A principal proxeneta era uma prostituta que alugara, como centro de atividades, um sétimo andar na Rua Marquês da Fronteira, em Lisboa, onde recebia clientes, que consumavam os seus apetites sexuais em quartos preparados no piso superior. Ela própria alimentara no passado os desejos de gente da elite. Caso de algumas figuras da realeza estrangeira exilados na Linha do Estoril. Entre elas, o príncipe Juan Carlos, filho de Juan de Bourbon e futuro rei de Espanha. Então ainda solteiro. A proxeneta referia-se a Juan Carlos desta maneira: “Ele era ótimo, lindo e muito melhor do que o príncipe Vítor Emanuel, com quem também dormi e que era muito frio e fechado”. Vítor Emanuel era filho do rei Humberto II, de Itália. Encontrava-se refugiado em Cascais desde 1946.
“Mas com a rede que montara aos poucos e passara a comandar a partir dos finais de 1950, importava sobretudo corresponder às obsessões pedófilas de diversas figuras do universo político, económico e empresarial português, que em regra orbitavam em torno do executivo salazarista”.
Uma denúncia por “atentado ao pudor” e “corrupção de menores” chega à Polícia Judiciaria. Começa a investigar. Detém a responsável com a sua agenda de contactos. São recolhidos vários nomes. Além de Correia de Oliveira, também o do contra-almirante Fernando Quintanilha de Mendonça Dias (nomeado em 14-08-1958 e exonerado em 19-08-1968 como ministro da Marinha). O concessionário do Casino Estoril e dono de diversos estabelecimentos turísticos – José Teodoro dos Santos – igualmente fazia parte da lista. E bem assim o 4.º conde de Caria, Bernardo Viana Machado Mendes de Almeida, dono do Vidago Palace Hotel e das Águas Vidago. O 3.º conde da Covilhã, Júlio Anahory do Quental Calheiros, jurista, fundador da empresa de pneus Mabor e presidente da administração do Banco Borges & Irmão, natural de Avô, uma aldeia da Serra da Estrela, também fazia parte deste rol. Foi uma das figuras mais destacadas no campo social e económico que ao Sporting Clube da Covilhã deu forte contribuição, nas décadas de 50 e 60 do século passado, chegando a ser presidente da Direção. Também constavam outros nomes, como Jorge Monte Real, conde Monte Real e corredor de automóveis. Outro era o 4.º marquês da Graciosa, João Filipe de Meneses Pita. E também Rogério Cândido da Silva, administrador do Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa; e Manuel da Silva Carvalho, corretor da bolsa e administrador empresarial. “Constava ainda de um padre conhecido pelo seu poder de comunicação televisiva e futuro protagonista de uma relevante carreira na hierarquia da Igreja”.
Alguns foram interrogados para o processo. Outros não. É que, entretanto, se terão desencadeado manobras de bastidores para abafar o seu envolvimento.
Manuel da Silva Carvalho afirmou aos inquiridores que “sempre senti prazer em proporcionar a estas raparigas uma vida que jamais teriam vivido, dar-lhes a comer o que jamais teriam comido, vesti-las como elas nunca pensaram que o pudessem fazer”.
Julgamento à porta fechada. Havia que evitar todo e qualquer sinal de escândalo. Nenhum destes protagonistas foi condenado. Excetuavam-se as “medidas de segurança provisórias” aplicadas a Teodoro dos Santos e Cândido da Silva. As únicas condenadas, com pena de prisão, foram a chefe da rede e outra prostituta.
A audiência judicial consumara-se. O jornal britânico publicou a notícia do escândalo. Chamaram-lhe ballet rose (ou roses) por analogia com um caso ocorrido oito anos antes em França, e protagonizado também por personagens proeminentes, entre ela o presidente do Senado. A informação sobre o processo português fora passada para o exterior por um funcionário judicial – o escrivão à guarda de quem estavam os autos –, chocado pela forma como tudo fora encoberto.
O regime do Estado Novo ficou embaraçado internacionalmente. Reagiu com a perseguição aos supostos autores da fuga de informação para a imprensa estrangeira. Mário Soares, que teria posto Barry O’Brien em contacto com o escrivão e com o advogado de uma das menores prostitutas, foi detido pela 12ª vez, pela PIDE. Acusou-o de “divulgação de notícias falsas, no estrangeiro, suscetíveis de prejudicar o bom nome de Portugal” e, no interrogatório, foi-lhe dito: “Desta vez, o senhor pôs em causa pessoalmente a moralidade do senhor presidente do Conselho, injúrias gravíssima”. Resultado: Mário Soares passou na prisão o Natal e o réveillon de 1967, sem qualquer processo ou julgamento, apenas por decisão discricionária do ditador. Foi deportado para a ilha de São Tomé por tempo indeterminado. Foi preciso que Salazar ficasse irremediavelmente incapacitado por doença, em setembro de 1968, para que o seu sucessor, Marcello Caetano, decidisse ordenar o fim da deportação, sem a elaboração de nenhuma queixa judicial contra o advogado oposicionista.

(In "Jornal fórum Covilhã", de 08-07-2020)

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